quinta-feira, 6 de abril de 2023

PURUṢAMĒDHA

 
 

Por João Florindo Batista Segundo

 

De acordo com o cristianismo, Adão e Eva foram seduzidos pela serpente (Gn 3:3) e comeram do fruto da árvore do conhecimento, que assim como a árvore da vida, crescia no centro do Éden (Gn 2:9). Por infringir a proibição imposta por Deus (Gn 2:17), o primeiro casal humano (Gn 1:27) foi expulso do jardim (Gn 3:23), como prevenção para que não comesse da árvore da vida e se tornasse imortal (Gn 3:22).

E pela morte na cruz e ressurreição, Deus em Jesus Cristo – o Novo Adão (Rm 5:12-21), concebido pelo Espírito Santo (Mt 1:20; Lc 1:35) – cumpre Seu plano de salvação da humanidade, vence o diabo e seus demônios (Mc 1:12-13; 1:23-27; 1:32-33; 1:39;1 Jo 3:8; Hb 2:14-15) e reabre o caminho do homem para o paraíso (Lc 23:43). Crucificado no Gólgota, centro do mundo, lugar onde Adão foi criado e também sepultado, Jesus banhou com seu sangue o crânio do primeiro homem, que estava exatamente ao pé da cruz, e assim o resgatou (ELIADE, 1974, p. 158).

Todavia, lembremos que, como afirma Jung (1990, p. 20), é graças a uma compreensão superficial e equivocada da imitatio Christi, que a maioria dos cristãos, ao invés de seguir Seu modelo – o que os levaria ao pleno desenvolvimento interior –, optam por elevar essa personificação de Deus a objeto externo de veneração, o que os impede de se transformarem na totalidade que o modelo expressa.

Assim, uma vez que o mediador divino permanece totalmente exterior, o indivíduo continua fragmentário, pois lança seus pecados sobre Cristo na intenção de fugir de sua responsabilidade. Para Jung, tal formalismo e afrouxamento deram causa à Reforma, porém o protestantismo continuou a praticá-lo (ibid., p. 21-22). De fato, os reformadores protestantes se concentraram na crença da potência salvífica da ressurreição e da ascensão de Cristo e relutaram em abordar questões sobre o que ocorre para além do mundo temporal (WIDDICOMBE, 2003, p. 150).

Á guisa de exemplo, em Uma meditação sobre a paixão de Cristo, de 1519, Lutero afirma que ainda que a Paixão seja apropriadamente contemplada, somente pela graça o fiel pode reconhecer a gravidade do pecado e abrandar o coração. E, além da contrição e da penitência, quem busca a paz necessita lançar seus pecados sobre o corpo ressuscitado de Cristo: “O pecado não pode permanecer em Cristo, pois foi absorvido por sua ressurreição. Agora você não vê nenhuma ferida, nenhuma dor nele, e nenhum sinal de pecado.” (LUTERO apud WIDDICOMBE, 2003, p. 151)1.

Face às afirmações acima, Cristo é sempre o canal de purgação dos pecados pessoais de toda a humanidade. Deste modo, há muitos (pretensos) cristãos que passam a vida a tentar impor a fé cristã a outros, sem, contudo, demonstrarem em seu cotidiano a vivência de qualquer religiosidade. Para tais pessoas, basta “ter fé no nome de Jesus” para alcançar a salvação (a vida eterna no paraíso futuro).

Perguntamo-nos então se foi realmente essa a mensagem (Boa Nova) de Jesus Cristo?

De início, vejamos que há trechos da pregação de Jesus que evocam a chegada iminente do Reino de Deus (cf. Mc 1:15; 9-1; 13;30, 32), enquanto noutros, o Reino já está presente (Lc 17:20-1; Mc 4:26-29, 30-32; Mc 13:33). Disso, podem resultar duas interpretações possíveis de sua mensagem: 1) a iminência do Reino, anunciada pelos profetas, e “o fim do mundo histórico”; e 2) a vivência do Reino no presente atemporal da fé. Entende Eliade (2011, p. 297) que essa segunda interpretação é a mais concorde com o fato de Jesus jamais ter afirmado que era o khristós (“ungido”; “messias”).

De acordo com a antiquíssima cultura védica, há quatro pilares que sustentam a vida espiritual, a saber, misericórdia (ahiṁsā), veracidade (satyam), pureza (śaucam) e austeridade (tapas). Contrariamente, há quatro atividades nefastas que impedem o desenvolvimento da espiritualidade: violência, jogatinas, promiscuidade sexual e intoxicação. No hinduísmo, tais pilares devem ser uma constante na vida do fiel. Entendemos que tais definições e sua sistematização possuem um nível de coesão que lhes permitem a aplicação no tema sob comento. Entendemos ainda que sendo apresentados a esses quatro pilares, fieis de qualquer religião serão unânimes em concordar com a veracidade deles.

Dito isto, vejamos então algumas poucas passagens da Boa Nova que demonstram a necessidade de se praticar esses quatro pilares agora, ao invés de apenas viver a esperança de uma vida melhor no futuro.

Misericórdia: “amai os vossos inimigos e orai pelos que vos perseguem: desse modo vos tornarei filhos do vosso Pai que está nos Céus” (Mt 5:44-45).

Veracidade: “Precavei-vos cuidadosamente de qualquer cupidez, pois, mesmo na abundância, a vida do homem não é assegurada por seus bens.” (Lc 12:15). “Como quereis que os outros vos façam, fazei também a eles.” (Lc 6:32).

Pureza: “Eu, porém, vos digo: todo aquele que olhar para uma mulher com desejo libidinoso já cometeu adultério com ela em seu coração.” (Mt 5:28).

Austeridade: “Cuidado para que vossos corações não fiquem pesados pela devassidão, pela embriaguez, pelas preocupações da vida, e não se abata repentinamente sobre vós aquele Dia, como um laço;” (Lc 21:34-35).

Do ponto de vista prático, no relato sobre a mulher adúltera (Jo 8:1-11) vemos Jesus pôr em prática esses quatro pilares.

Tendo a multidão conduzido à presença de Jesus uma mulher flagrada em adultério, questionaram-lhe reiteradamente qual seria o posicionamento dele a respeito, tendo em vista que na tradição mosaica tal ato era punido com a morte por apedrejamento (cf. Lv 20:10). Em face do interrogatório, respondeu o rabi da Galileia: “Quem dentre vós estiver sem pecado, seja o primeiro a lhe atirar uma pedra!” (Jo 8:7) e então todos se retiraram, restando apenas Jesus e a mulher no local. Em seguida, o Cristo disse a ela: “Vai, e de agora em diante não peques mais” (Jo 8:11).

Nesta passagem, podemos ver Cristo praticar/exigir a misericórdia (ao não condenar a mulher à morte), a veracidade (ao confrontar os populares para que fossem verazes e admitissem que também lhes faltava a retidão moral que exigiam da pecadora), a pureza (ao orientá-la a não mais praticar sexo ilícito) e a austeridade (pois apenas alguém sóbrio está em condições de agir adequadamente diante de circunstâncias inesperadas como foi tal “julgamento”).

Além disso, podemos ainda nos perguntar: por que Ele diria “não peques mais” se fosse impossível parar de pecar? Ele não disse que ela poderia ir embora e continuar pecando e pedindo perdão!

Por essa passagem, vê-se claramente que a Boa Nova é um conhecimento prático, a ser executado agora e sempre.

Em nenhum momento da pregação de Cristo, o Evangelho é algo a ser experenciado apenas num futuro distante, bastando ter fé e sem operar qualquer mudança interior.

Podemos sintetizar a finalidade dos ensinamentos de Jesus em Sua seguinte frase: “Portanto, deveis ser perfeitos como o vosso Pai celeste é perfeito.” (Mt 5:48)

Aqui ele dá um modelo a ser seguido e que não deve ser minimizado ao nível dos preceitos humanos. Quem verdadeiramente aceita a Cristo como seu salvador deve estar imbuído de uma disposição sincera de adesão imediata à vontade de Deus, de atender aos seus irmãos na fé no que for legitimamente necessário e até mesmo de amar os próprios inimigos.

Uma leitura completa dos quatro Evangelhos sinópticos porá por terra qualquer ideia de que a salvação pregada na Boa Nova consiste em o cristão colocar sob os ombros de Jesus o fardo dos seus pecados pessoais, ou em deixar para depois a transformação interior, mantendo a crença em Jesus no patamar de um “conhecimento intelectual”. Em Lucas 9:23, Ele disse “Se alguém quer vir após mim, renuncie a si mesmo, tome sua cruz e siga-me”. Ele não disse que aceitava carregar a cruz dos outros, enquanto estes estariam livres para continuarem a praticar todo tipo de atividades infames.

Podemos concluir então que ser cristão é aceitar se tornar imediatamente responsável por seus erros e acertos, arrepender-se dos erros e adotar uma conduta moral nas relações com o outro e com o mundo que lhe permita alcançar a mais alta liberdade existencial.

 

1 - Sin cannot remain on Christ, since it is swallowed up by his resurrection. Now you see no wounds, no pain in him, and no sign of sin. (LUTERO apud WIDDICOMBE, 2003, p. 151; tradução nossa).

 

REFERÊNCIA: 

BATISTA SEGUNDO, João Florindo. O trajeto antropológico da imagética pictórica de Jacob Boehme: do Olho das Maravilhas à Imagem Figurativa. 2022. Tese (Doutorado) – Programa de Pós-Graduação em Ciências das Religiões – Universidade Federal da Paraíba - UFPB, 2022.
 
BÍBLIA. Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Editora Paulus, 2000.
 
ELIADE, Mircea. História das Crenças e das Ideias Religiosas, v. II: de Gautama Buda ao Triunfo do Cristianismo. Roberto Cortes de Lacerda (trad.). 1. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2011.

2 comentários:

  1. Muito maravilhosa essa aproximação dos Evangelhos com os pilares dos Veda. Há um abismo no discurso religioso Católico entre as palavras dos Evangelistas e a realidade da vida cotidiana de um uma pessoa. Teoria e prática dissociada.

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    1. Obrigado, usuári@ anônim@! Na verdade, há um abismo enorme entre o Evangelho e o discurso de várias denominações cristãs. Mas, falar algo e não agir de acordo é uma falha de caráter presente em pessoas que professam as mais diversas religiões (e até em pessoas ateias ou agnósticas). É um grande desafio para a maioria das pessoas aprender que o momento da mudança é agora e que o único tempo que temos é o presente. Obrigado pela postagem! Volte sempre aqui!

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