Por
João Florindo Batista Segundo
De
acordo com o cristianismo, Adão e Eva foram seduzidos pela serpente (Gn 3:3) e
comeram do fruto da árvore do conhecimento, que assim como a árvore da vida,
crescia no centro do Éden (Gn 2:9). Por infringir a proibição imposta por Deus
(Gn 2:17), o primeiro casal humano (Gn 1:27) foi expulso do jardim (Gn 3:23),
como prevenção para que não comesse da árvore da vida e se tornasse imortal (Gn
3:22).
E pela
morte na cruz e ressurreição, Deus em Jesus Cristo – o Novo Adão (Rm 5:12-21), concebido
pelo Espírito Santo (Mt 1:20; Lc 1:35) – cumpre Seu plano de salvação da
humanidade, vence o diabo e seus demônios (Mc 1:12-13; 1:23-27; 1:32-33; 1:39;1
Jo 3:8; Hb 2:14-15) e reabre o caminho do homem para o paraíso (Lc 23:43).
Crucificado no Gólgota, centro do mundo, lugar onde Adão foi criado e também
sepultado, Jesus banhou com seu sangue o crânio do primeiro homem, que estava
exatamente ao pé da cruz, e assim o resgatou (ELIADE, 1974, p. 158).
Todavia,
lembremos que, como afirma Jung (1990, p. 20), é graças a uma compreensão
superficial e equivocada da imitatio
Christi, que a maioria dos cristãos, ao invés de seguir Seu modelo – o que
os levaria ao pleno desenvolvimento interior –, optam por elevar essa
personificação de Deus a objeto externo de veneração, o que os impede de se
transformarem na totalidade que o modelo expressa.
Assim,
uma vez que o mediador divino permanece totalmente exterior, o indivíduo
continua fragmentário, pois lança seus pecados
sobre Cristo na intenção de fugir de sua responsabilidade. Para Jung, tal formalismo
e afrouxamento deram causa à Reforma, porém o protestantismo continuou a praticá-lo
(ibid., p. 21-22). De fato, os reformadores protestantes se concentraram na
crença da potência salvífica da ressurreição e da ascensão de Cristo e relutaram
em abordar questões sobre o que ocorre para além do mundo temporal (WIDDICOMBE,
2003, p. 150).
Á
guisa de exemplo, em Uma meditação sobre
a paixão de Cristo, de 1519, Lutero afirma que ainda que a Paixão seja
apropriadamente contemplada, somente pela graça o fiel pode reconhecer a
gravidade do pecado e abrandar o coração. E, além da contrição e da penitência,
quem busca a paz necessita lançar seus pecados sobre o corpo ressuscitado de
Cristo: “O pecado não pode permanecer em Cristo, pois foi absorvido por sua
ressurreição. Agora você não vê nenhuma ferida, nenhuma dor nele, e nenhum
sinal de pecado.” (LUTERO apud
WIDDICOMBE, 2003, p. 151)1.
Face
às afirmações acima, Cristo é sempre o canal de purgação dos pecados pessoais
de toda a humanidade. Deste modo, há muitos (pretensos) cristãos que passam a
vida a tentar impor a fé cristã a outros, sem, contudo, demonstrarem em seu
cotidiano a vivência de qualquer religiosidade. Para tais pessoas, basta “ter
fé no nome de Jesus” para alcançar a salvação (a vida eterna no paraíso futuro).
Perguntamo-nos
então se foi realmente essa a mensagem (Boa Nova) de Jesus Cristo?
De
início, vejamos que há trechos da pregação de Jesus que evocam a chegada
iminente do Reino de Deus (cf. Mc 1:15; 9-1; 13;30, 32), enquanto noutros, o
Reino já está presente (Lc 17:20-1; Mc 4:26-29, 30-32; Mc 13:33). Disso, podem
resultar duas interpretações possíveis de sua mensagem: 1) a iminência do
Reino, anunciada pelos profetas, e “o fim do mundo histórico”; e 2) a vivência
do Reino no presente atemporal da fé. Entende Eliade (2011, p. 297) que essa
segunda interpretação é a mais concorde com o fato de Jesus jamais ter afirmado
que era o khristós (“ungido”; “messias”).
De
acordo com a antiquíssima cultura védica, há quatro pilares que sustentam a vida
espiritual, a saber, misericórdia (ahiṁsā), veracidade (satyam),
pureza (śaucam) e austeridade (tapas). Contrariamente, há quatro atividades
nefastas que impedem o desenvolvimento da espiritualidade: violência,
jogatinas, promiscuidade sexual e intoxicação. No hinduísmo, tais pilares devem
ser uma constante na vida do fiel. Entendemos que tais definições e sua
sistematização possuem um nível de coesão que lhes permitem a aplicação no tema
sob comento. Entendemos ainda que sendo apresentados a esses quatro pilares, fieis
de qualquer religião serão unânimes em concordar com a veracidade deles.
Dito
isto, vejamos então algumas poucas passagens da Boa Nova que demonstram a
necessidade de se praticar esses quatro pilares agora, ao invés de
apenas viver a esperança de uma vida melhor no futuro.
Misericórdia: “amai os vossos inimigos e orai
pelos que vos perseguem: desse modo vos tornarei filhos do vosso Pai que está
nos Céus” (Mt 5:44-45).
Veracidade: “Precavei-vos cuidadosamente de
qualquer cupidez, pois, mesmo na abundância, a vida do homem não é assegurada
por seus bens.” (Lc 12:15). “Como quereis que os outros vos façam, fazei também
a eles.” (Lc 6:32).
Pureza: “Eu, porém, vos digo: todo aquele
que olhar para uma mulher com desejo libidinoso já cometeu adultério com ela em
seu coração.” (Mt 5:28).
Austeridade: “Cuidado para que vossos corações
não fiquem pesados pela devassidão, pela embriaguez, pelas preocupações da
vida, e não se abata repentinamente sobre vós aquele Dia, como um laço;” (Lc
21:34-35).
Do
ponto de vista prático, no relato sobre a mulher adúltera (Jo 8:1-11) vemos
Jesus pôr em prática esses quatro pilares.
Tendo
a multidão conduzido à presença de Jesus uma mulher flagrada em adultério,
questionaram-lhe reiteradamente qual seria o posicionamento dele a respeito,
tendo em vista que na tradição mosaica tal ato era punido com a morte por
apedrejamento (cf. Lv 20:10). Em face do interrogatório, respondeu o rabi da
Galileia: “Quem dentre vós estiver sem pecado, seja o primeiro a lhe atirar uma
pedra!” (Jo 8:7) e então todos se retiraram, restando apenas Jesus e a mulher
no local. Em seguida, o Cristo disse a ela: “Vai, e de agora em diante não
peques mais” (Jo 8:11).
Nesta
passagem, podemos ver Cristo praticar/exigir a misericórdia (ao não condenar a
mulher à morte), a veracidade (ao confrontar os populares para que fossem
verazes e admitissem que também lhes faltava a retidão moral que exigiam da pecadora),
a pureza (ao orientá-la a não mais praticar sexo ilícito) e a austeridade (pois
apenas alguém sóbrio está em condições de agir adequadamente diante de
circunstâncias inesperadas como foi tal “julgamento”).
Além
disso, podemos ainda nos perguntar: por que Ele diria “não peques mais” se
fosse impossível parar de pecar? Ele não disse que ela poderia ir embora e
continuar pecando e pedindo perdão!
Por
essa passagem, vê-se claramente que a Boa Nova é um conhecimento prático, a ser
executado agora e sempre.
Em
nenhum momento da pregação de Cristo, o Evangelho é algo a ser experenciado
apenas num futuro distante, bastando ter fé e sem operar qualquer mudança
interior.
Podemos
sintetizar a finalidade dos ensinamentos de Jesus em Sua seguinte frase: “Portanto,
deveis ser perfeitos como o vosso Pai celeste é perfeito.” (Mt 5:48)
Aqui ele
dá um modelo a ser seguido e que não deve ser minimizado ao nível dos preceitos
humanos. Quem verdadeiramente aceita a Cristo como seu salvador deve estar
imbuído de uma disposição sincera de adesão imediata à vontade de Deus, de
atender aos seus irmãos na fé no que for legitimamente necessário e até mesmo de
amar os próprios inimigos.
Uma
leitura completa dos quatro Evangelhos sinópticos porá por terra qualquer ideia
de que a salvação pregada na Boa Nova consiste em o cristão colocar sob os ombros
de Jesus o fardo dos seus pecados pessoais, ou em deixar para depois a
transformação interior, mantendo a crença em Jesus no patamar de um “conhecimento
intelectual”. Em Lucas 9:23, Ele disse “Se alguém quer vir após mim,
renuncie a si mesmo, tome sua cruz e siga-me”. Ele não disse que aceitava
carregar a cruz dos outros, enquanto estes estariam livres para continuarem a
praticar todo tipo de atividades infames.
Podemos
concluir então que ser cristão é aceitar se tornar imediatamente responsável
por seus erros e acertos, arrepender-se dos erros e adotar uma conduta moral nas
relações com o outro e com o mundo que lhe permita alcançar a mais alta
liberdade existencial.
1
- Sin cannot remain on Christ, since it is swallowed up by his resurrection.
Now you see no wounds, no pain in him, and no sign of sin. (LUTERO apud
WIDDICOMBE, 2003, p. 151; tradução nossa).
REFERÊNCIA:
Muito maravilhosa essa aproximação dos Evangelhos com os pilares dos Veda. Há um abismo no discurso religioso Católico entre as palavras dos Evangelistas e a realidade da vida cotidiana de um uma pessoa. Teoria e prática dissociada.
ResponderExcluirObrigado, usuári@ anônim@! Na verdade, há um abismo enorme entre o Evangelho e o discurso de várias denominações cristãs. Mas, falar algo e não agir de acordo é uma falha de caráter presente em pessoas que professam as mais diversas religiões (e até em pessoas ateias ou agnósticas). É um grande desafio para a maioria das pessoas aprender que o momento da mudança é agora e que o único tempo que temos é o presente. Obrigado pela postagem! Volte sempre aqui!
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