Por Fabrice Hadjadj
A genealogia de Cristo manifesta
ainda melhor o quanto os mais sombrios dramas sexuais podem ser convertidos em
nascimento virgem. Os monges cantam-na na aurora, nas matinas de Natal, num tom
gregoriano cujo som traz certas reminiscências de sinagoga. Ainda essa fantástica
inspeção da carne, essa longa litania de nomes próprios ligados uns aos outros
por um “autem genuit: Abraham genuit
Isaac. Isaac autem genuit Jacob. Jacob autem genuit Judam et fratres ejus.,
Judas autem ...”, esse encadeamento de três vezes catorze gerações, quando
o ouço, me abala a ponto de eu chorar. Mais que qualquer ensinamento moral.
Mais, até, que muitas parábolas. Porque aí está o tangível da história, aquela
que passa pelos sexos, aquela que precisou de patriarcas e de matriarcas: não
certa doutrina universal, com conceitos acima do tempo, mas este aqui e aquela
ali, Josafá, Roboão, Zorobabel, com suas digníssimas esposas, toda uma cadeia
de amor e de gestação que leva ao lar de José, onde o Verbo se encarnou.
Nessa genealogia em que são
listados os pais, são mencionadas algumas mulheres, muito raras e, portanto,
muito bem escolhidas. São as que precedem a Santa Virgem. Esperaríamos modelos
de virtude: no mínimo, Sara, Rebeca, Raquel. Só encontramos figuras do vício.
Na sucessão de homens, em que se misturam tantos idólatras, cada mulher
assinalada é uma irregular, como se a imaculada concepção fosse o coroamento de
uma sequência de máculas: “É preciso admitir que a linhagem carnal de Jesus é
assustadora. Poucos homens, outros homens, tiveram talvez tantos ancestrais
criminosos, e tão criminosos. Particular e carnalmente criminosos. É em parte
isso que dá ao mistério da Encarnação todo o seu valor, toda a sua profundidade
...”.58
A primeira a ser nomeada
pelo evangelista folgazão é Tamar. Ela é primeiro mulher daquele Er que,
durante o ato sexual, fez algo que desagradou a Deus, tão perverso que foi fulminado
onde estava. Depois, ela se casa com seu irmão Onã, que lançou sua semente por
terra, e foi acometido por mais uma apoplexia. A jovem viúva não tem filhos, e
Judá tem medo de lhe dar seu terceiro filho. Ela então se disfarça de
prostituta, coloca-se na entrada de Enaim e atrai o sogro, que não a reconhece
atrás do véu. Depois de algum tempo, sabendo que ela engravidou após ter-se prostituído,
ele quer queimá-la viva. Porém, ela lhe dá a entender que é o pai, que foi ele o
cliente. Judá então a reconhece: “Ela é mais
justa do que eu, porquanto não lhe dei meu filho Sela” (Gênesis 38,26). Nascerão
gêmeos, dos quais Farés, a “brecha”, prolonga a linhagem messiânica.
Segunda mulher: Raab de Jericó,
a puta de grande coração. Foi ela quem escondeu os batedores dos hebreus para protegê-los
contra seu povo. Depois, quando Jericó for anatematizado, só ela e sua casa se salvarão,
mas ela verá todos os seus clientes e todos os seus concidadãos exterminados, casando-se
então com um de seus carrascos. Terceira mulher: Rute, a estrangeira, a moabita
(raça descendente do incesto de Ló com sua filha mais velha). Recordamos que os
hebreus, no deserto, perverteram-se com as filhas de Moab. Essa menina, a serviço
de Noemi, sua sogra, acabara se casando com Booz, o famoso adormecido. Prova de
que a estrangeira de raça maldita pode ser uma bênção. Quarta mulher: é chamada
de “a mulher de Urias”, mas seu laço é com outro. Com esse viés, Mateus ressalta
o adultério cometido por Davi e Betsabeia, adultério seguido de assassinato desse
que é ao mesmo tempo o esposo desta e soldado dedicado daquele. O rei Davi é assim
mencionado não em seu esplendor, mas na maior treva de seu reino, aquela graças
à qual “a espada não se apartará mais da tua
casa” (2Samuel 12,10). Assim, recapitulando: um incesto, uma prostituição,
um casamento desigual, um adultério temperado por assassinato. Essas são as uniões
apontadas por essa genealogia, as quais vão dar nas castíssimas núpcias de Maria
e José.
É esse o estado civil da Redenção.
Não há outra matriz para dramática moral esboçada anteriormente. Ela não diz que
o pecado é bom, mas que, de um ponto de vista superior, que não pode ser o daquele
que se propõe a uma ação má, “o pecado também serve”.59 Especialmente
o pecado da carne, que fere com o desejo e que pode retirar o pecado mais grave,
o do espírito. Nos corações mais duros, ele faz entrar o outro, o irredutível. Cada
mulher irregular vem quebrar um orgulho: com Tamar, é o orgulho do moralismo (a
mãe escolhida tem um filho de uma relação ilícita); com Raab, o orgulho da vitória
(ela faz parte dos vencidos); com Rute, o orgulho da nação eleita (ela é de outra
raça); com Betsabeia, o orgulho da soberania, seja a do rei, a do profeta, ou a
do poeta (ela tira do trono o senhor salmista). Assim se revela nossa miséria, e
essa miséria, para nossa maior alegria, pode ser o trono de uma misericórdia.
A união de um homem e uma mulher
toca os três sinais. O drama pode começar. Dessa fonte primeira, por geração, outros
dramas virão, ora mais luminosos, ora mais sombrios. Cada nascimento reabre a história
do mundo e, em sua inocência, carrega o resíduo de todas as faltas anteriores. Ela
se torna sua continuação pesada. Porém, é também a remissão possível. A filha do
incesto e do parricídio se levanta para recordar “as leis inquebrantáveis dos deuses”.
A longa noite de errância cai e, por cair, sempre cada vez mais baixa, sempre mais
sombria, à meia-noite se choca com a manjedoura de Belém.
NOTAS:
58 – Charles Péguy,
Victor-Marie, Comte Hugo. ln: CEuvres Completes en Prose. Gallimard, 1992, t.
III, p. 239. (Coleção
Bibl. de la Pléiade).
59 – Paul Claudel, Le
Soulier de Satin. Terceiro
Dia, cena VIII, op. cit., p. 819.
REFERÊNCIA:
HADJADJ,
Fabrice. A profunidade dos sexos:
por uma mística da carne. Pedro Sette-Câmara (tradução). São Paulo: É
Realizações, 2017. p. 138-141.
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