quarta-feira, 28 de agosto de 2019

RESENHA DE “EPISTEMOLOGY”, DE JEPPE SINDING JENSEN









Por João Florindo Batista Segundo

“Epistemologia” trata-se da tradução por Eduardo Rodrigues da Cruz do Capítulo 1.3 da coletânea organizada por Michael Stausberg e Steven Engler, que tem por título The Routledge Handbook of Research Methods in the Study of Religion. (Londres: Routledge, 2011, p.40-53). O texto é de autoria de Jeppe Sinding Jensen, professor do Departamento de Cultura e Sociedade da Universidade de Aarhus, Dinamarca; já o tradutor é professor titular do Programa de Estudos Pós-graduados em Ciências da Religião da PUC-SP e a ação fez parte de um projeto iniciado pela REVER em 2011, com o fim de verter para o português parte deste compêndio (seis capítulos), preocupada com questões epistemológicas e metodológicas de fundo em Ciências das Religiões em face dos recentes desenvolvimentos na área no mundo anglo-saxônico e norte-europeu.
Jeppe Sinding Jensen, embora proeminente membro da IAHR, com inegável contribuição à reflexão metateórica no âmbito das Ciências das Religiões, ainda é pouco estudado no Brasil. Nesse texto, percebe-se como ele debruça-se sobre a Epistemologia de uma maneira incomum aos leitores de obras acadêmicas brasileiras.
Jensen inicia seu texto afirmando que a Filosofia da Ciência e seus componentes, tais como questões epistemológicas, são necessários a um estudo mais robusto das religiões, capaz de contemplar e resolver alguns dos seus problemas.
 De início, deve-se considerar quão diametralmente opostas são as alegações científicas e as religiosas, dado que estas últimas não podem ser validadas pela ciência, especialmente no que tange às verdades ou agentes, o que não inviabiliza o estudo da religião enquanto comportamentos humanos, ideias e instituições perscrutados sob a ótica das ciências humanas e sociais. Contudo, há certos pontos que merecem destaque em relação à Epistemologia, a saber: a questão da natureza dos dados, os modos de raciocínio inferencial, as consequências do relativismo; as razões de argumentação e justificação, a questão da “virtudes epistêmicas”, e o problema do “conhecimento dos inobserváveis”.
Por Epistemologia entenda-se a teoria do conhecimento, do que este consiste, de como obtê-lo e de como defendê-lo e justificá-lo. Suas principais abordagens são:
(1) Empirismo: o conhecimento do mundo é oriundo da experiência, por meio de sensações nas quais baseamos as crenças básicas e realizamos asserções, de modo que o conhecimento procede da indução. Não há conhecimentos inatos e tampouco verdades a priori, e até os conceitos abstratos e universais partem de fatos concretos.
(2) Racionalismo: emprego de mecanismos cognitivos na formação da experiência, os quais atuam como operação mental, discursiva e lógica para se chegar a constatar se uma ou outra proposição é verdadeira, falsa ou provável, de modo que a razão sobrepuja a experiência do mundo sensível como via de acesso ao conhecimento. Baseia-se nos princípios da busca da certeza, demonstração e análise, de modo que o conhecimento não é inato, mas decorrente exclusivamente do emprego da razão.
(3) Construtivismo: afirma a responsabilidade; as forças sociais são responsáveis pelo conhecimento e pelos processos de formação do conhecimento, com foco na intersubjetividade e na viabilidade pragmática.
O autor procura então responder onde o questionamento termina em cada uma dessas abordagens, propondo como solução a “conciliação” de Susan Haack: para ela, o melhor conhecimento deve se encaixar tanto nas evidências disponíveis quanto nas teorias atualmente consideradas válidas.
Além disso, o autor descreve o positivismo enquanto o ato da ciência se concentrar nas questões cujo conhecimento é positivo e confiável, do qual se beneficiou o estudo da religião em suas investigações; hoje, o positivismo está em descrédito e o conhecimento busca incluir as premissas para pesquisa. E o reducionismo também é considerado depreciativo no estudo da religião.
Por reducionismo metodológico entenda-se a ideia de que as explicações científicas devem ser reduzidas às entidades mais simples possíveis, de modo a melhor compreendê-las e assim apreendermos o todo. Para tanto, um método, uma técnica são essenciais, pelo qual o objeto de estudo seja particionado em busca de verdade cientifica. Pode-se considerá-lo ainda uma explicação que considere certas ordens de fenômenos sujeitas a leis mais bem estabelecidas.
No âmbito das ciências humanas e sociais, a formação do conhecimento tem descurado da busca de princípios básicos e justificativas confiáveis, chegando ao ponto de serem considerados campos não-científicos. Constata-se aí a apologética religiosa na formação do conhecimento em estudos das religiões, vez que têm estado sob a influência de um modelo derivado da cristandade ocidental. Demonstra ainda que enquanto as ciências naturais são nomotéticas, vez que busca leis naturais gerais, as ciências humanas e sociais são ideográficas, pois explicam fenômenos singulares, de modo que sem trabalhos comparativos é impossível haver generalização ou testes de hipóteses.
Em seguida, Jensen apresenta os tipos e níveis de explicações prevalentes entre os filósofos da ciência em uma escala do nomotético e causal até o ideográfico e contextual:
1. Explicações de “lei de cobertura”: ou explicação dedutiva-nomológica, especifica uma relação lógica entre o que deve ser explicado (o explanandum) e as condições que o explicam (o explanans), de modo que algo é explicado se pode ser comprovadamente deduzido como uma consequência necessária de uma lei geral e uma série de condições iniciais.
2. Explicações causais: intimamente ligadas a explicações nomológico-dedutivas, porém é cada vez mais difícil definir o que é uma “causa”.
3. Explicações estatísticas: comum nas ciências sociais e no estudo da religião e tem uma força preditiva, ainda que seja um conceito filosoficamente e logicamente dúbio.
4. Explicações disposicionais: explicações de motivos e razões, “intencionais” ou ligadas a propósitos. Encontradas na análise psicológica de sonhos, em discurso astrológico e em sistemas religiosos, pois estão profundamente enraizadas na cognição humana.
5. Explicações “contextuais” ou posicionais: generalizada nas ciências humanas e sociais, podem tratar de estruturas e mecanismos subjacentes em vários níveis teóricos; explicam o significado de algo em um contexto.
6. Explicações funcionais: subconjunto das explicações posicionais abundante no estudo da religião, da cultura e da sociedade; concentram-se nas propriedades funcionais de fenômenos religiosos, a exemplo das funções sociais da adivinhação e oráculos nos processos políticos da sociedade antiga. Podem ser geralmente reveladoras, mas a direção de causa-efeito deve ser monitorada de perto e criticamente.
No que concerne a interpretação e explicação, atualmente entende-se como sendo atividades mutuamente compatíveis, vez que a interpretação inclui geralmente uma medida de explicação. Exemplo disso que os produtos humanos, como culturas, línguas e religiões são composições semânticas e semióticas que necessitam ser explicados para serem compreendidos, de modo que para a análise de ações e instituições humanas, o caráter explicativo da interpretação pode ser ainda mais estendido conforme seja adequado. À guisa de exemplo, Levi-Strauss explicou a natureza simbólica de sistemas de parentesco da forma seguinte:

Porque são sistemas de símbolos, os sistemas de parentesco fornecem ao antropólogo um campo privilegiado, no qual seus esforços quase (e insistimos no quase) atingem os da ciência social mais desenvolvida, isto é, a linguística. Mas a condição desse encontro, de que se pode esperar uma melhor compreensão do homem, é jamais perder de vista o fato de que, tanto no caso do estudo sociológico como no do estudo linguístico, estamos em pleno simbolismo. E se é legítimo, até inevitável, em certo sentido, recorrer à interpretação naturalista para tentar compreender o surgimento do pensamento simbólico, uma vez dado este, a explicação deve mudar radicalmente de natureza, tanto quanto o fenômeno recém-surgido difere de todos os que o precederam e prepararam. (LEVI-STRAUSS apud JENSEN, 2013, p. 182).

Jensen lembra que os dados são dependentes da teoria e interpretados por indução, abdução e dedução. A dedução, indispensável às ciências naturais como uma ferramenta de previsão, goza de reputação conturbada nas Ciências das Religiões, vez que é predominante em questões normativas em Teologia e Filosofia. Já a abdução consiste em se fazer inferências e melhores suposições com base no que é conhecido, o que se pode prever e o que melhor se ajusta a nossos modelos e teorias. Em Ciências das Religiões vem-se debatendo a construção e aperfeiçoamento de modelos, de modo que alguns se tornaram obsoletos, a exemplo do “fetichismo”, “pré-animismo” ou “dinamismo”.
Além dos acima expostos, também são critérios para a caracterização da ciência, as relações coerentes entre teoria e dados empíricos e a busca de leis e princípios gerais. Para Jensen, a descoberta científica é um achado que foi estabelecido com base em métodos reconhecidos como científicos, ainda que não existam correlações abrangentes o suficiente para contemplar todas as ciências, ao que se apresenta como solução “Epistemologia pluralista” de “realismo promíscuo”.
Patente então que a ciência enquanto conjunto de práticas que buscam o conhecimento revela-se como uma mistura de teoria, evidência e normas institucionais, ao que nosso autor complementa afirmando a impossibilidade de sustentar uma versão forte da unidade científica (defendida por reducionistas clássicos) e a impossibilidade de uma demarcação entre o que é ou não é ciência.
Jensen afirma ainda que há padrões epistemológicos normativos disponíveis e que são muito diferentes das práticas estabelecidas, sendo necessário uma “virtude epistemológica” que trate da sensibilidade à realidade empírica, de premissas plausíveis, da coerência com outras coisas conhecidas, da exposição das críticas de uma ampla variedade de fontes etc.
De acordo com o pesquisador, ao se ampliar o conceito de ciência, resolve-se o problema da demarcação e permite-se uma maior amplitude das Ciências das Religiões em termos teóricos e metodológicos, abrindo mão do emprego de cópias de desatualizadas concepções cientificistas da ciência.
E no tocante às implicações metodológicas constata-se que os métodos e procedimentos de pesquisa também devem primar pela objetividade, imparcialidade, honestidade, reflexividade e autocrítica. Deste modo, conhecer virtudes epistêmicas, em tese, leva por conseqüência à prática de virtudes metodológicas que resultarão em uma investigação marcada pela “virtude epistemológica”. Este é um norte a ser seguido, ainda que sua prática seja mais difícil que o mero discurso a respeito. Neste sentido:

A ciência, interpretada simplesmente como o conjunto de praticas que buscam conhecimento, às quais se atribui aquele título, revela-se como uma mistura. O papel da teoria, evidência e normas institucionais irá variar muito de uma área da ciência para a próxima. A minha sugestão de que a ciência deve ser vista como um conceito de semelhança familiar parece implicar não apenas que não se pode sustentar nenhuma versão forte da unidade científica do tipo defendida por reducionistas clássicos, mas também que não pode haver resposta possível ao problema da demarcação [ou seja: a distinção entre o que é ciência e o que não é ciência] (DUPRÉ apud JENSEN, 2013, p. 186).

Quanto ao conhecimento de assuntos inobserváveis (questões incompreendidas), estas vieram a colidir com as nascentes ferramentas e teorias certas a lhes solucionarem, citando o autor, à guisa de exemplo, a demonstração científica da gravidade; o lapso de tempo entre o conhecimento por experiência e a demonstração à luz da ciência e sua confluência final denota que a observação empírica e o conhecimento teórico caminham lado a lado.
No âmbito das Ciências das Religiões, as tradições religiosas são prenhes de reivindicações quanto à existência de agentes e ações “invisíveis” e “transcendentes” (logo, não observáveis), mas, à luz da Epistemologia, tais idéias já não são inobserváveis, vez que já se tornaram tópicos em sistemas simbólicos e de linguagem e até alçaram-se à condição de fatos sociais. Percebe-se nas Ciências Sociais que vários dos temas capitais à vida humana são inobserváveis e saber como adquirir conhecimento a respeito deles e traduzi-los epistemicamente é basilar a ditos campos. Aí a importância dos conceitos para o entendimento das ações observadas e de textos lidos para a composição de metalinguagens conceituais e acadêmicas, mediações essenciais à expansão do conhecimento humano, no qual os “dados brutos” são traduzidos não apenas como fatos científicos, mas também como fatos sociais e postulados culturais.
No âmbito acadêmico, conceitos são construídos a fim de traduzir em linguagens teóricas significados diferentes às palavras anteriormente conhecidas, de modo a perceber as coisas, discorrer sobre elas, elaborar teorias a respeito, ainda que tais “coisas” não existam “realmente”. É sob este enfoque que as “coisas” não observáveis – ideias, crenças e convicções, por exemplo – ganham vida. Os rituais das diversas religiões são exemplo de observação tangível de conceitos abstratos que seriam inobserváveis a princípio, o que demonstra uma mútua dependência teórica e escopo interpretativo.
Por fim, Jensen assevera que apresentou soluções desestressantes para muitas das cotidianas preocupações epistemológicas, defendendo que as virtudes científicas são extensões e continuações das faculdades humanas que evoluíram ao longo do tempo. Há uma semelhança entre a prática científica e as práticas humanas em geral, perceptível quando somamos ao estudo as obrigações da vida social e a normatividade da linguagem. Logo, para Jensen, devemos buscar um cenário “virtuoso” e abrangente em detrimento da busca por um conjunto de regras rígidas e estanques no estudo das Ciências das Religiões.

  
REFERÊNCIAS:

JENSEN. Jeppe Sinding. Epistemology. In: The Routledge Handbook of Research Methods in the Study of Religion. Michael Stausberg et Steven Engler (organizadores). Londres: Routledge, 2011. p. 40-53.

JENSEN. Jeppe Sinding. Epistemologia. Eduardo Rodrigues da Cruz (tradução). Rever. ano 13. n. 02. jul-dez. 2013. Disponível em: <https://revistas.pucsp.br/index.php/rever/article/download/18418/13662>. Acesso em: 12 nov. 2018.

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