Por
Mario Sales
“É
preciso amar as pessoas
Como se
não houvesse amanhã.
E se
você parar pra pensar,
Na
verdade não há.”
Trecho de “Pais e
Filhos”, de Renato Russo
Refletir sobre o óbvio é
sempre difícil.
As coisas mais complexas de
descrever são aquelas que julgamos conhecer tão bem que, aparentemente, supomos
desnecessária uma explicação. São intuitivas, no sentido que essa palavra –
intuição – tem em filosofia. Abrimos os olhos e lá estão elas, dadas
gratuitamente pela percepção, sem a intermediação do intelecto.
É assim com o dia, que
contemplamos sem considerar seu aspecto temporal ou astronômico, a posição do
planeta no seu contínuo movimento de rotação, que permite o sol iluminar a
nossa parte da Terra.
O dia sem considerações
sobre ele é apenas isto: luz no lugar das trevas, cheiro de café (quando há
café), pássaros cantando (quando existem pássaros), sem que pensemos sobre isso
(café, pássaros, etc.); olhar e ver a natureza, assim, dada, sem pensar a
natureza. É claro que levamos apenas alguns segundos assim. Intuir o mundo é um
fenômeno fugidio, rápido.
Logo, viciados que somos em
interpretar o mundo em vez de simplesmente contemplá-lo, começamos a pensar o
mundo visível à nossa frente ou que atinge nossos outros sentidos além da
visão.
O cheiro de café nos traz a
imagem do alimento, a lembrança da fome, do horário, dos compromissos da manhã.
Já não estamos no período intuitivo da percepção: agora estamos pensando. E
como coçar e pensar é só começar, o pensamento segue célere à nossa frente, via
de regra, sem nenhum pudor.
Este é o mecanismo primário
da ansiedade. Ela se baseia em um descompasso entre o fato e as considerações
sobre o fato. Uma separação temporal, a perda da simultaneidade entre e
refletir e agir. Mais que isso: a ansiedade perverte a nossa percepção do
presente.
Por duas maneiras
antecipamos o futuro: por ansiedade ou por planejamento. O planejamento é uma
antecipação intelectual do futuro, mas planejamento não é ansiedade, é
preparação. O que diferencia o planejador e o ansioso é a carga emocional que
ele coloca na antecipação.
Planejar é antecipar com
prazer e calma, certo da distância no tempo entre o desejo e a realização do
desejo e contando com esta distância, com este tempo.
Ansiar é antecipar com sofrimento,
sem clareza entre o momento do desejo e da realização do desejo, sofrendo com
esta confusão entre ambos os momentos, com perda da distinção clara de que o
tempo é uma condição linear e sucessiva de presente e futuro.
Para o planejador o futuro
virá normalmente após o presente. Para o ansioso, só existe o futuro: o
presente, para ele, está perdido. É, portanto um sinal de sabedoria não se
deixar dominar pela ansiedade.
O sábio permite que o fluxo
do tempo siga seu rumo sem interrupções ou aumento de velocidade. Ele contempla
o fluxo à sua frente impassível, como o homem sentado na margem do rio, olhando
para águas aparentemente sempre iguais, mas que na verdade nunca são as mesmas.
O sábio conhece o segredo do fluxo: o presente não é estático, mas puro
movimento, como o trecho do rio a sua frente. Embora o trecho do rio seja o
mesmo, ele é pleno de mudanças. O aqui e agora é um processo em andamento e Sábio
é o indivíduo que sabe vivenciar o aqui - agora, intuitivamente.
Uma conhecida parábola
budista sobre o assunto diz que em uma de suas caminhadas o Buda encontrou,
perto de um rio largo, um sadhu, um
homem de renúncia. Este, tendo reconhecido o mestre, disse-lhe:
–
Veja Gautama, medito aqui neste local há 50 anos, em busca de autodomínio.
Consegui grande poder e graças a este poder posso fazer grandes coisas. Veja!
E
dizendo isso se levantou e caminhou sobre as águas do rio, até o outro lado e
retornou sobre elas. O Buda tudo contemplou com enfado e indiferença. Então,
quebrando o silêncio, disse:
–
Você meditou 50 anos para poder fazer isto?
Perplexo
e contrariado, o sadhu desafiou:
–
Então me diga qual milagre você pode realizar maior que o que eu demonstrei?
Ao
que Buda respondeu:
–
Meus milagres são estes: quanto tenho fome como,quando tenho sede , bebo, e
quando tenho sono, durmo.
E seguiu em frente seu
caminho.
Qual de nós pode realizar
tais milagres?
“Quando tenho fome, como.”
Comer, totalmente absorto
pelo ato, em silêncio, atento aos sabores e aos odores do alimento, agradecido
por estar sendo satisfeito, fascinado pelas cores, pela textura, pela
temperatura das coisas que mastigamos. Sem preocupações, sem pressa. Não comer
pela indução da propaganda, que estimula a alimentação desnecessária, mas como
resposta ao desejo instintivo, nem mais, nem menos.
Qual de nós é assim? Qual de
nós come assim?
“Quando tenho sono, durmo.”
Qual de nós tem um sono
tranquilo e sem horários? Dormimos por que precisamos ou porque temos que
dormir?
Os ritmos sociais dirigem
nosso ritmo biológico. O natural há muito tempo se afastou de nós.
Sim, as coisas simples e
naturais são o milagre. Milagre da harmonia e da sincronia entre o biológico e
o cósmico, que o intelecto e sua artificialidade desfez. E assim surge o
paradoxo: o mesmo intelecto, o mesmo poder de abstração, que nos permite
elaborar e aperfeiçoar o real nos afasta e interfere na nossa percepção do
real.
Ato e ideia do ato são hoje
coisas distintas porque existe o pensamento, aquele que abstrai, que retira do
sólido sua substância ou que infunde no sólido sua interpretação, seu
significado.
O abstrato é o invisível. E
assim, mais uma vez, como o ar que nos dá a vida, o invisível sustenta o
visível. O visível é consequência do invisível.
Nossa educação é este
invisível que molda nossa percepção do mundo. Muitas vezes, ela molda desejos
em nós absolutamente falsos. É preciso que aprendamos a separar os desejos
reais daqueles artificiais. Seria um primeiro passo na melhoria de nosso mundo
visível e no aperfeiçoamento de sua operação. Mente educada mente tranquila,
sem ansiedade.
“Quando tiver fome, coma;
quando tiver sede, beba; quando tiver sono, durma.” Ritmos naturais. Suaves. Autênticos.
Sem ansiedade. Sem receios. Sem medo.
O medo, no entanto,faz parte
da vida. Ele nos garante a prudência e a autopreservação. Quando, então, o medo
se transforma em inimigo? Quando está distorcido pelo apego. Não é o medo, mas
o medo de perder, alguém ou alguma coisa, que nos torna frágeis e inseguros. O
medo de perder é o pai da ansiedade. Ele nos induz ao erro e à precipitação. O
medo de perder (com a ajuda de sua filha, a ansiedade) é o ladrão do presente.
Sem o medo de perder, surge
a confiança no futuro, produto de um presente sólido e bem vivenciado. Não há
mais tanta necessidade de respostas. Podemos prestar mais atenção às perguntas.
E como a resposta já está na pergunta, desaparece a dúvida, ou o medo da
dúvida. Sem a ansiedade, o tempo se dilata. Recuperamos o tempo roubado, e podemos
analisar com calma a pergunta formulada.
Assim, a pessoa sábia mostra
sua sabedoria convivendo sem angústia com a dúvida. Quando diante de algo que
não compreende ou que não conhece, apenas medita com tranquilidade sobre a
questão. Sabe que a resposta virá, pois sempre a informação vem aos pares:
pergunta e resposta, dúvida e esclarecimento.
Sem a ansiedade, ela não se
precipita em inventar histórias para preencher as lacunas de seu conhecimento.
Aguarda firme que as lacunas sejam preenchidas aos poucos, pelas peças que
gravitam, naturalmente, para suas posições naquele mosaico. Ela sabe agora que
está em harmonia com o Universo, que tudo é uma questão de tempo.
Tempo, entretanto, não é
mais problema.
REFERÊNCIA:
SALES, Mário. O sábio e a dúvida. In: O Rosacruz. n. 275. verão 2011. Curitiba: AMORC-GLP, 2011. p. 24-27.
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