segunda-feira, 10 de junho de 2019

O SÁBIO E A DÚVIDA



























Por Mario Sales

“É preciso amar as pessoas
Como se não houvesse amanhã.
E se você parar pra pensar,
Na verdade não há.”

Trecho de “Pais e Filhos”, de Renato Russo



Refletir sobre o óbvio é sempre difícil.
As coisas mais complexas de descrever são aquelas que julgamos conhecer tão bem que, aparentemente, supomos desnecessária uma explicação. São intuitivas, no sentido que essa palavra – intuição – tem em filosofia. Abrimos os olhos e lá estão elas, dadas gratuitamente pela percepção, sem a intermediação do intelecto.
É assim com o dia, que contemplamos sem considerar seu aspecto temporal ou astronômico, a posição do planeta no seu contínuo movimento de rotação, que permite o sol iluminar a nossa parte da Terra.
O dia sem considerações sobre ele é apenas isto: luz no lugar das trevas, cheiro de café (quando há café), pássaros cantando (quando existem pássaros), sem que pensemos sobre isso (café, pássaros, etc.); olhar e ver a natureza, assim, dada, sem pensar a natureza. É claro que levamos apenas alguns segundos assim. Intuir o mundo é um fenômeno fugidio, rápido.
Logo, viciados que somos em interpretar o mundo em vez de simplesmente contemplá-lo, começamos a pensar o mundo visível à nossa frente ou que atinge nossos outros sentidos além da visão.
O cheiro de café nos traz a imagem do alimento, a lembrança da fome, do horário, dos compromissos da manhã. Já não estamos no período intuitivo da percepção: agora estamos pensando. E como coçar e pensar é só começar, o pensamento segue célere à nossa frente, via de regra, sem nenhum pudor.
Este é o mecanismo primário da ansiedade. Ela se baseia em um descompasso entre o fato e as considerações sobre o fato. Uma separação temporal, a perda da simultaneidade entre e refletir e agir. Mais que isso: a ansiedade perverte a nossa percepção do presente.
Por duas maneiras antecipamos o futuro: por ansiedade ou por planejamento. O planejamento é uma antecipação intelectual do futuro, mas planejamento não é ansiedade, é preparação. O que diferencia o planejador e o ansioso é a carga emocional que ele coloca na antecipação.
Planejar é antecipar com prazer e calma, certo da distância no tempo entre o desejo e a realização do desejo e contando com esta distância, com este tempo.
Ansiar é antecipar com sofrimento, sem clareza entre o momento do desejo e da realização do desejo, sofrendo com esta confusão entre ambos os momentos, com perda da distinção clara de que o tempo é uma condição linear e sucessiva de presente e futuro.
Para o planejador o futuro virá normalmente após o presente. Para o ansioso, só existe o futuro: o presente, para ele, está perdido. É, portanto um sinal de sabedoria não se deixar dominar pela ansiedade.
O sábio permite que o fluxo do tempo siga seu rumo sem interrupções ou aumento de velocidade. Ele contempla o fluxo à sua frente impassível, como o homem sentado na margem do rio, olhando para águas aparentemente sempre iguais, mas que na verdade nunca são as mesmas. O sábio conhece o segredo do fluxo: o presente não é estático, mas puro movimento, como o trecho do rio a sua frente. Embora o trecho do rio seja o mesmo, ele é pleno de mudanças. O aqui e agora é um processo em andamento e Sábio é o indivíduo que sabe vivenciar o aqui - agora, intuitivamente.
Uma conhecida parábola budista sobre o assunto diz que em uma de suas caminhadas o Buda encontrou, perto de um rio largo, um sadhu, um homem de renúncia. Este, tendo reconhecido o mestre, disse-lhe:
– Veja Gautama, medito aqui neste local há 50 anos, em busca de autodomínio. Consegui grande poder e graças a este poder posso fazer grandes coisas. Veja!
E dizendo isso se levantou e caminhou sobre as águas do rio, até o outro lado e retornou sobre elas. O Buda tudo contemplou com enfado e indiferença. Então, quebrando o silêncio, disse:
– Você meditou 50 anos para poder fazer isto?
Perplexo e contrariado, o sadhu desafiou:
– Então me diga qual milagre você pode realizar maior que o que eu demonstrei?
Ao que Buda respondeu:
– Meus milagres são estes: quanto tenho fome como,quando tenho sede , bebo, e quando tenho sono, durmo.
E seguiu em frente seu caminho.
Qual de nós pode realizar tais milagres?
“Quando tenho fome, como.”
Comer, totalmente absorto pelo ato, em silêncio, atento aos sabores e aos odores do alimento, agradecido por estar sendo satisfeito, fascinado pelas cores, pela textura, pela temperatura das coisas que mastigamos. Sem preocupações, sem pressa. Não comer pela indução da propaganda, que estimula a alimentação desnecessária, mas como resposta ao desejo instintivo, nem mais, nem menos.
Qual de nós é assim? Qual de nós come assim?
“Quando tenho sono, durmo.”
Qual de nós tem um sono tranquilo e sem horários? Dormimos por que precisamos ou porque temos que dormir?
Os ritmos sociais dirigem nosso ritmo biológico. O natural há muito tempo se afastou de nós.
Sim, as coisas simples e naturais são o milagre. Milagre da harmonia e da sincronia entre o biológico e o cósmico, que o intelecto e sua artificialidade desfez. E assim surge o paradoxo: o mesmo intelecto, o mesmo poder de abstração, que nos permite elaborar e aperfeiçoar o real nos afasta e interfere na nossa percepção do real.
Ato e ideia do ato são hoje coisas distintas porque existe o pensamento, aquele que abstrai, que retira do sólido sua substância ou que infunde no sólido sua interpretação, seu significado.
O abstrato é o invisível. E assim, mais uma vez, como o ar que nos dá a vida, o invisível sustenta o visível. O visível é consequência do invisível.
Nossa educação é este invisível que molda nossa percepção do mundo. Muitas vezes, ela molda desejos em nós absolutamente falsos. É preciso que aprendamos a separar os desejos reais daqueles artificiais. Seria um primeiro passo na melhoria de nosso mundo visível e no aperfeiçoamento de sua operação. Mente educada mente tranquila, sem ansiedade.
“Quando tiver fome, coma; quando tiver sede, beba; quando tiver sono, durma.” Ritmos naturais. Suaves. Autênticos. Sem ansiedade. Sem receios. Sem medo.
O medo, no entanto,faz parte da vida. Ele nos garante a prudência e a autopreservação. Quando, então, o medo se transforma em inimigo? Quando está distorcido pelo apego. Não é o medo, mas o medo de perder, alguém ou alguma coisa, que nos torna frágeis e inseguros. O medo de perder é o pai da ansiedade. Ele nos induz ao erro e à precipitação. O medo de perder (com a ajuda de sua filha, a ansiedade) é o ladrão do presente.
Sem o medo de perder, surge a confiança no futuro, produto de um presente sólido e bem vivenciado. Não há mais tanta necessidade de respostas. Podemos prestar mais atenção às perguntas. E como a resposta já está na pergunta, desaparece a dúvida, ou o medo da dúvida. Sem a ansiedade, o tempo se dilata. Recuperamos o tempo roubado, e podemos analisar com calma a pergunta formulada.
Assim, a pessoa sábia mostra sua sabedoria convivendo sem angústia com a dúvida. Quando diante de algo que não compreende ou que não conhece, apenas medita com tranquilidade sobre a questão. Sabe que a resposta virá, pois sempre a informação vem aos pares: pergunta e resposta, dúvida e esclarecimento.
Sem a ansiedade, ela não se precipita em inventar histórias para preencher as lacunas de seu conhecimento. Aguarda firme que as lacunas sejam preenchidas aos poucos, pelas peças que gravitam, naturalmente, para suas posições naquele mosaico. Ela sabe agora que está em harmonia com o Universo, que tudo é uma questão de tempo.
Tempo, entretanto, não é mais problema.


REFERÊNCIA:
SALES, Mário. O sábio e a dúvida. In: O Rosacruz. n. 275.  verão 2011. Curitiba: AMORC-GLP, 2011. p. 24-27.

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