terça-feira, 11 de junho de 2019

POWAQQATSI




O que seria O jogo das contas de vidro, centro do último romance de Hermann Hesse (1877-1962)? Iniciado em 1931 e publicado na Suíça em 1943, após ter sido rejeitado para publicação na Alemanha, o livro foi mencionado na citação de Hesse para o Prêmio Nobel de Literatura de 1946.
Seu título remete a uma atividade lúdica, mas puramente intelectual, cujas raízes remontam a Pitágoras, renascendo na gnose, no humanismo renascentista, com ressonâncias em Descartes e Leibniz. Seria a ideia utópica de encerrar o universo espiritual em círculos concêntricos, unindo a beleza viva da arte à magia formal das ciências exatas.
Seu nome remonta ao teórico musical Bastian Perrot, natural de Calw, Alemanha (cidade natal do autor), que empregou contas de vidro em lugar de signos gráficos na notação das melodias.
No romance, que se passa por volta do ano 2200, uma comunidade utópica de sábios reunidos em Castália, para além do estudo da música, da astronomia e da matemática, se deleita com a prática de uma atividade lúdica complexa e requintada.
O herói, Joseph Knecht (José Servo, na tradução brasileira), representa a vida que o autor teria almejado. Ele tem a missão de ensinar o jogo aos monges beneditinos do Rochedo Santa Maria, onde, em contato com o Padre Jacobus, descobre o valor da história, questiona seu universo e rebela-se. Unindo a sabedoria do Ocidente e do Oriente, Hesse nos conduz a um desfecho surpreendente.
No trecho a seguir, através de um ofício, José Servo expõe à hierarquia da ordem todas as motivações que o levam a resignar do cargo de Magister Ludi e se devotar ao ofício de professor de crianças. Num texto que é parte do mais alto grau da produção artística de Hermann Hesse, a circular é prenhe de assertivas ainda hoje absolutamente atuais, dentre outras, tanto no que se refere a pessoas enredadas pelas instituições a que pertencem (e que não lhes permite a busca de sua singularidade) quanto no que toca à mercantilização do saber para um fim eminentemente utilitarista (principalmente em épocas de crise).


A CIRCULAR


Por Hermann Hesse


Ofício do Magister Ludi à Direção Geral do Ensino

Diversas considerações determinaram-me, a mim, o Magister Ludi, a formular diante das autoridades uma solicitação muito especial neste relatório em separado e de modo algum privado, em vez de incluí-la na minha solene prestação de contas.
Junto, é verdade, este requerimento à relação oficial que ora deve ser entregue e aguardo o seu despacho oficial, considerando-o, porém, antes uma espécie de circular colegial aos meus colegas magísteres.
Pertence aos deveres do Magister alertar as autoridades se, por acaso, óbices venham a impedir o desempenho fiel do cargo ou se há perigos que o ameaçam. Pois bem, embora eu tenha assumido o compromisso de servir o cargo com todas as minhas forças, o desempenho dele está (ou parece estar) ameaçado por um perigo que mora dentro da minha pessoa, ainda que não se origine unicamente em mim. Pelo menos considero o perigo moral de um enfraquecimento da minha aptidão pessoal para Mestre do Jogo de Avelórios, ao mesmo tempo um perigo objetivo e que subsiste fora de mim. Sintetizando: comecei a duvidar da minha capacidade de conduzir validamente o meu cargo, porque devo considerar o meu cargo e o próprio Jogo de Avelórios, que devo preservar e cuidar, ameaçados.
A intenção deste oficio é apresentar aos olhos das autoridades que o perigo indicado existe e que este perigo, uma vez conhecido por mim, me chama com insistência a outro lugar diferente deste onde estou. Seja­-me permitido ilustrar a situação por uma comparação. Alguém no seu quarto de sótão ocupa-­se com um trabalho sutil de erudição e de repente nota que irrompeu fogo debaixo da casa. Ele não irá cogitar se é próprio do seu cargo ou não tomar providências, ou se não seria melhor passar as tabelas a limpo, mas ele descerá correndo e envidará todos os esforços para salvar a casa. Do mesmo modo estou eu sentado num dos andares mais elevados de nosso edifício castálico, ocupado com o Jogo de Avelórios, trabalhando só com instrumentos delicados e sensíveis, e de repente sou advertido pelo instinto, pelo olfato, de que embaixo, em alguma parte, está pegando fogo, que nosso edifício inteiro está ameaçado e em perigo e que o que eu tenho a fazer agora não é analisar música ou diferençar as regras do jogo, mas correr para o local onde fumega.
A instituição de Castália, da Ordem, nossa atividade científica e escolar junto com o Jogo de Avelórios parecem à maioria de nossos confrades tão evidentes como a cada homem o ar que ele respira e o chão que ele pisa. Ninguém pensa seriamente que este ar e este chão poderiam talvez não existir, que o ar poderia um dia faltar e o chão poderia desaparecer sob nossos pés. Temos a sorte de viver bem protegidos num pequeno mundo, limpo e pequeno, e a grande maioria de nós vive, por mais estranho que isso possa parecer, na ficção de que este mundo sempre existiu e que nós nascemos nele. Eu mesmo vivi meus anos de juventude nesta ilusão agradabilíssima conhecendo, contudo, perfeitamente bem a realidade, ou seja, que eu não nasci em Castália, mas que fui enviado aqui pelas autoridades e aqui educado. Sabia perfeitamente que Castália, a Ordem, as autoridades, as casas de ensino, o Arquivo e o Jogo de Avelórios de modo algum existiam desde sempre ou eram uma obra da natureza, mas sim uma criação da vontade humana, tardia, nobre e, como tudo o que é criado, passageira. Eu sabia de tudo isso, mas não tinha para mim realidade, eu não pensava nisso, via-o apenas de relance e sei que mais de três quartos de nós vivem e hão de morrer nesta espantosa e agradável ilusão.
Mas, assim como houve séculos e mais séculos sem a Ordem e sem Castália, também no futuro haverá tempos semelhantes. Se hoje eu lembro aos meus colegas e às veneráveis autoridades este fato, esta verdade elementar, e os conclamo a dirigir o olhar aos perigos que nos ameaçam, se eu portanto, por um momento, assumo o papel de um profeta, de um admonitor e de um pregador de penitência, papel antipático e tão facilmente suscetível de zombaria, estou contudo preparado para suportar possíveis zombarias, mas é minha esperança que a maioria de vós leia até o fim o meu ofício e que alguns de vós me deem até razão em pontos isolados. Já seria muito.
Uma instituição como nossa Castália, um pequeno estado do espírito, está exposta a perigos internos e externos. Os perigos internos, ou pelo menos muitos deles, nos são conhecidos e são observados e combatidos por nós. Estamos sempre mandando de volta um ou outro aluno das Escolas da Elite porque descobrimos neles propriedades e instintos incorrigíveis, que os tornam imprestáveis e perigosos para nossa comunidade. A maior parte deles, assim o esperamos, não são por causa disso homens de menor valor, mas apenas inadequados para a vida castálica e podem, voltando ao mundo, encontrar condições de vida apropriadas e se tornarem homens capazes. Nossa maneira prática de proceder a tal respeito tem dado provas de si e, de modo geral, pode-se dizer de nossa comunidade que ela se preocupa muito com a sua dignidade e autodisciplina, e basta à sua missão representar uma camada superior, uma nobreza do espírito e formá-la sempre de novo. Provavelmente não temos indignos e negligentes vivendo entre nós além do que é natural e suportável.
Já menos corretamente sucede conosco em relação à presunção da Ordem, ao orgulho de classe pelo qual toda nobreza, toda gente em posição privilegiada acaba sendo seduzida e ao qual também costuma ser imputado a toda nobreza com ou sem razão. Na história da sociedade, acontece sempre a tentativa de formar uma nobreza, ela é a culminância e a coroa da sociedade. Uma certa forma de aristocracia, de domínio dos melhores, parece ser o fim e o ideal próprio, ainda que nem sempre confessado, de todas as tentativas de formação de sociedade. O poder, seja ele monárquico ou anônimo, sempre se encontrou preparado para promover, através de proteção e privilégios, uma nobreza nascente, quer se trate de uma nobreza política ou de outra qualquer coloração, nobreza de sangue e nascimento ou nobreza de elite e educação. A nobreza favorecida sempre se fortalece sob esse sol, mas o ficar ao sol e o gozo de privilégios, a partir de certo estádio em diante, sempre se tornam uma tentação para ela e a conduziram à corrupção.
Se considerarmos agora nossa Ordem como uma nobreza e tentarmos examinar até que ponto a nossa atitude para com o povo em geral e o mundo justifica a nossa posição especial, até que ponto a enfermidade característica da nobreza, a hybris, o desprezo, a presunção, o orgulho de classe, a pretensão, os benefícios não reconhecidos já nos atacaram e nos infeccionaram, se procedermos a este exame, então é bem possível que muitos escrúpulos assomem à nossa mente. Pode ser que ao castálico de hoje não faltem a obediência para com as leis da Ordem, a aplicação, a espiritualidade cultivada. Mas não lhe falta frequentemente bastante visão de sua ordenação à estrutura do povo, ao mundo, à história? Tem ele consciência do fundamento de sua existência, reconhece que pertence na qualidade de folha, flor, ramo ou raiz a um organismo vivo, tem alguma ideia dos sacrifícios que o povo faz, sustentando-o, vestindo-o e possibilitando a sua formação e os seus variados estudos? Preocupa-se muito com o sentido da nossa existência e situação privilegiada, tem ele realmente uma clara concepção da finalidade de nossa Ordem e vida? Salvo muitas e honrosas exceções, inclino-me a responder negativamente a todas essas interrogações.
O castálico médio considera o homem do mundo e o não-erudito talvez sem desprezo, sem inveja, sem ódio, mas não o considera como irmão, não vê nele aquele que lhe dá o pão, nem se sente absolutamente responsável por aquilo que acontece lá fora no mundo. O fim último de sua vida parece ser o cultivo das ciências por elas mesmas, ou o passeio aprazível no jardim de uma cultura que se gaba com prazer de universal, sem sê-lo assim tão inteiramente. Em breves palavras, esta cultura castálica, uma elevada e nobre cultura, à qual por certo sou profundamente grato, não é na maioria de seus possuidores e representantes um órgão e um instrumento, não está ativamente dirigida a metas, não serve conscientemente a algo maior e mais profundo, mas se inclina um pouco à autos-satisfação e ao auto-elogio, à formação e ao aperfeiçoamento de especialistas espirituais.
Sei que existe um grande número de castálicos íntegros e altamente valiosos que realmente não querem outra coisa senão servir, são os professores educados entre nós, nomeadamente aqueles que lá fora no país, longe do clima agradável e das facilidades espirituais de nossa Província, prestam um serviço cheio de renúncias mas incalculavelmente grande às escolas do mundo.
Esses bravos professores lá fora são, no sentido estrito, propriamente os únicos de nós que preenchem realmente a finalidade de Castália e por cujo trabalho pagamos ao país e ao povo todo o bem que eles nos fazem.
Todo confrade sabe muito bem que a missão mais elevada e sagrada que temos consiste em manter e conservar para o país e o mundo o seu fundamento espiritual, que se tem afirmado também como um elemento moral da mais alta eficácia, ou seja, o senso de verdade sobre o qual, entre outras coisas, repousa também o direito. Todos sabem disso, mas a maioria dos castálicos deveria confessar que para eles o bem do mundo, a conservação da honestidade e pureza intelectual também fora dos limites da Província mantida com tanta beleza e pureza, não é absolutamente importante, muito menos ainda o principal. Também deveríamos confessar que nós deixamos com gosto os bravos professores que militam lá fora cobrir com o seu trabalho dedicado a dívida que contraímos com o mundo e de algum modo justificar para nós, jogadores de avelórios, astrônomos, musicistas e matemáticos, o gozo de nossos privilégios.
Relacionado com o já aventado orgulho e espírito de casta, está o fato de que nós não nos preocupamos com a intensidade requerida de saber se merecemos nossos privilégios pelos serviços prestados, o fato também de que não poucos entre nós até se gabam da sobriedade de nosso passado material, como se fosse uma virtude exercitada puramente por si mesma, quando ela não é senão o mínimo oferecido em compensação pela possibilidade de existir que o país nos dá.
Contento-me com a alusão a esses danos e perigos internos. Eles não são tão inofensivos quanto se pensa, ainda que em tempos tranquilos de nossa existência não sejam realmente ameaçadores. Mas nós castálicos não dependemos unicamente de nossa moral e de nossa razão. Dependemos também e essencialmente da situação do país e da vontade do povo. Comemos nosso pão, usamos nossas bibliotecas, construímos nossas escolas e arquivos, mas se o povo não tiver mais vontade de nos possibilitar isto ou se o país, por causa de empobrecimento, guerra, etc, tornar-se incapaz de fazê-lo, então no mesmo instante será o fim de nossa vida de estudos. São pois estes perigos que nos ameaçam de fora, que o país considere um dia Castália e nossa cultura como um luxo, que ele não se possa mais permitir e até mesmo olhar como parasitas e prejudiciais, hereges e inimigos, em vez de estar de boa vontade orgulhoso de nós como até agora.
Se eu tentasse pôr diante dos olhos de um castálico médio estes perigos, eu teria, antes de tudo, de fazê-lo por meio de exemplos tirados da história e me esbarraria numa certa resistência passiva, numa ignorância quase diria infantil e num total desinteresse. O interesse pela história universal entre nós castálicos, vós o sabeis, é extremamente fraco, falta à maioria de nós não somente interesse, mas eu diria até justiça para com a história e consideração por ela. Esta repugnância em ocupar-se da história universal, misto de indiferença e superioridade, excitou-me muitas vezes à pesquisa. Encontrei duas causas para ela. Primeiro, o conteúdo da história – não falo, evidentemente, da história do espírito e da cultura que nós cultivamos – nos parece ser coisa de valor inferior; a história universal consiste, na medida em que podemos ter dela uma ideia, de brutais batalhas pelo poder, pelas riquezas, por terras, matérias-primas, dinheiro, enfim, pelo que é material e quantitativo, por coisas que nós encaramos como estranhas ao espírito e desprezíveis. Para nós, o século XVII é a época de Descartes, Pascal, Froberger, Schütz, não de Cromwell ou Luís XIV.
A segunda razão de nosso horror pela história universal está em nossa desconfiança herdada e, em grande parte, conforme minha opinião, justificada, contra uma certa maneira de considerar e escrever a história, muito em voga na época de decadência, antes da fundação de nossa Ordem, na qual, a priori, não depositamos a mínima confiança: a assim chamada filosofia da história, cujo florescimento mais brilhante e ao mesmo tempo o efeito mais perigoso encontramos em Hegel, mas que, porém, no século seguinte conduziu às mais abomináveis falsificações da história e à desmoralização do senso de verdade. A predileção por essa pretensa filosofia da história como uma das principais características daquela época de depressão espiritual e lutas políticas pelo poder de grandes proporções, que de vez em quando denominamos o ‘século das guerras’ e com maior frequência a ‘época folhetinesca’.
Sobre os escombros daquela época, do combate e da vitória sobre o seu espírito – ou falta de espírito – nasceu nossa cultura atual, nasceram a Ordem e Castália. É consequência do orgulho espiritual esta nossa atitude de rejeição em relação à história universal, nomeadamente a moderna, mais ou menos assim como o asceta e eremita do cristianismo primitivo se situava em relação ao teatro do mundo. A história parece-me a arena dos instintos e das modas, da cobiça, da avidez de riquezas e poder, do prazer de matar, da violência, das destruições e das guerras, dos ministros ambiciosos, dos generais vendidos, das cidades metralhadas e bombardeadas, e esquecemos com demasiada facilidade que este é apenas um dos seus muitos aspectos. E esquecemos sobretudo que nós mesmos somos um pedaço da história, uma criatura, alguma coisa que está condenada a morrer, se vier a perder a capacidade de continuar a transformar­-se. Nós somos, nós mesmos, História e somos co-responsáveis da história universal e de nossa posição nela. Falta-nos muito a consciência desta responsabilidade.
Lançando um olhar à nossa própria história à época do surgimento de nossas Províncias pedagógicas, em nosso país como em tantos outros, ao nascimento das diversas Ordens e hierarquias, das quais somos uma, vemos imediatamente que nossa Hierarquia e pátria, nossa querida Castália, de modo algum foi fundada por gente que se comportava tão resignada e altivamente em relação à história universal como nós. Nossos predecessores e fundadores começaram o seu trabalho no final da era das guerras, um mundo destruído. Estamos habituados a explicar unilateralmente as condições do mundo daquele tempo, que começou com o que se chama a Primeira Guerra Mundial, dizendo que naquele tempo o espírito não tinha nenhum valor e que para os violentos detentores do poder fora apenas um meio de combate usado oportunamente e subordinado, no que vemos apenas apenas uma consequência da corrupção folhetinesca. Ora, é fácil verificar a falta de espiritualidade e a brutalidade com que aquelas lutas pelo poder foram conduzidas. Se as designo como materiais, não o faço porque não veja seus efeitos poderosos em inteligência e metodologia, mas porque temos o hábito e fazemos questão de considerar o espírito em primeira linha, como vontade de verdade, e o que naquelas lutas foi consumido de espírito nada tem a ver com a vontade de verdade.
A desgraça daquele tempo foi não haver nenhuma ordem moral suficientemente sólida que se contrapusesse à agitação e dinamismo originados pela multiplicação incrivelmente rápida do gênero humano; o que restava da ordem moral foi varrido pelos slogans da moda e nos deparamos no decorrer daquelas lutas com fatos estranhos e terríveis. Muito semelhantemente à cisão da Igreja provocada por Lutero, quatro séculos antes, de repente o mundo se encheu de fantástica agitação. Por toda parte se formaram frentes de batalha, por toda parte surgiu cruel inimizade de morte entre o novo e o velho, entre pátria e humanidade, entre vermelho e branco. Nós hoje não somos mais capazes de reconstituir o poder e a dinâmica interna do ‘vermelho’ e do ‘branco’, nem o conteúdo e os significados de todas aquelas divisas e gritos de guerra, quanto mais entendê-los e senti-los. Do mesmo modo como no tempo de Lutero, vemos em toda a Europa, mais ainda, na metade da terra, crentes e hereges, jovens e velhos, propugnadores do ontem e propugnadores do amanhã, se engalfinharem uns com os outros, cheios de entusiasmo ou de desespero. Muitas vezes as frentes de batalha corriam atravessando o mapa dos países, dividindo povos e famílias e não temos o direito de duvidar que para a maioria dos próprios combatentes ou pelo menos para seus chefes, tudo isso tinha sentido e não podemos negar a muitos dos dirigentes e porta-vozes daquelas lutas uma certa robusta boa-fé, um certo idealismo, como então se chamava. Por toda a parte matou-se, lutou-se, destruiu-se e por toda a parte, em ambos os lados, lutou-se com fé, por Deus e contra o diabo.
Entre nós aquele tempo selvagem de grandes entusiasmos, de ódio feroz e de sofrimentos indescritíveis mergulhou numa espécie de esquecimento, até certo ponto incompreensível, pois afinal está intimamente ligado ao nascimento de todas as nossas instituições, além de ser o pressuposto e a razão delas. Um espírito satírico poderia comparar este esquecimento com aquela falta de memória que aventureiros e arrivistas, a quem foi concedido um título de nobreza, costumam ter em relação ao seu nascimento e aos seus pais.
Examinemos ainda um pouco aquela época das guerras. Li muitos dos seus documentos e me interessei menos pelos povos subjugados e pelas cidades destruídas do que pelo comportamento dos intelectuais daquela época. Eles passaram um mau bocado e a maioria não aguentou. Houve mártires tanto entre os eruditos como entre os religiosos, e seu martírio e exemplo, mesmo naquele tempo habituado ao terror, não ficaram sem efeito. Mesmo assim, a maior parte dos representantes do espírito sucumbiu à pressão daquela época de violência. Uns entregaram-se e puseram seus dotes, conhecimentos e métodos à disposição dos detentores do poder; é conhecido o dito daquele professor universitário na república dos Massagetas: ‘Quanto é duas vezes dois não é a Faculdade que deve determinar, mas o nosso General’. Outros fizeram oposição enquanto puderam, num espaço semi-protegido, e lançaram protestos. Um autor mundialmente famoso – lemos em Coldecabras –, deve ter assinado, num único ano, mais de duzentos manifestos deste tipo, protestos, advertências, apelos à razão, etc, mais talvez do que ele realmente tenha lido. A maioria porém aprendeu a silenciar, aprendeu também a passar fome e frio, a mendigar e esconder-se da polícia. Muitos morreram prematuramente e quem tinha morrido era invejado pelos sobreviventes. Inúmeros puseram, eles mesmos, um fim a seus dias. Realmente não era nenhum prazer, nenhuma honra mais, ser um erudito ou um literato: quem se punha a serviço dos detentores do poder e de seus slogans encontrava, é verdade, emprego e pão, mas também o desprezo dos melhores de seus colegas e quase sempre uma consciência má; quem recusava este serviço precisava passar fome, viver foragido e morrer na miséria ou no exílio. Processou-se uma seleção cruel, incrivelmente dura.
Não foi apenas a pesquisa científica, na medida em que ela não era útil aos fins de domínio e guerra, que caiu rapidamente em declínio, mas a própria atividade escolar. Principalmente a história universal, que era simplificada ao infinito e muitas vezes reescrita, aplicada com exclusividade a cada uma das nações que se revezavam na hegemonia mundial. A filosofia da história e o folhetim imperavam até dentro das escolas.
Basta de particularidades. Foram tempos violentos e selvagens, tempos caóticos e babilônicos, em que povos e partidos, os velhos e os jovens, os vermelhos e os brancos não se entendiam mais uns com os outros. Depois de tanto derramamento de sangue e miséria, o fim de tudo isso foi a ânsia cada vez mais forte de todos por uma reflexão, pela descoberta de uma linguagem comum, uma nostalgia da ordem, bons costumes, medidas válidas, de um alfabeto e uma tabuada que não fossem ditados pelos interesses dos dominadores e alterados a cada instante.
Surgiu uma necessidade enorme de verdade e direito, de razão e de superação do caos. Este vácuo no fim de uma época brutal e totalmente dirigida para fora, esta ânsia de urgência inexprimível, este desejo ardente de todos por uma renovação e uma ordem são o fenômeno a que devemos nossa Castália e nossa existência.
O grupo infinitamente pequeno, valente, semimorto de fome, mas irredutível, que restara dos intelectuais dignos deste nome começou a dar-se conta de suas possibilidades. Dentro de uma autodisciplina ascética e heroica, principiou por outorgar-se uma ordem e constituição, trabalhando por toda parte em equipes pequenas e mínimas, acabando com os slogans e dedicando-se a construir, a partir da raiz, uma espiritualidade, uma instrução, uma pesquisa, uma formação.
A construção teve êxito, foi crescendo lentamente, de começos heroicos e de grande pobreza, até se tornar um edifício magnificente. Criou numa série de gerações a nossa Ordem, a Direção Geral do Ensino, as Escolas da Elite, o Arquivo e as Coleções, as escolas especializadas e os Seminários, o Jogo de Avelórios. E somos nós os que moramos, como herdeiros e beneficiários, neste edifício imponente até demais. Moramos aí, seja mais uma vez repetido, como hóspedes bastante acomodados e ignorando os enormes sacrifícios humanos, dos quais, aliás, não queremos saber, sobre os quais se erigiram nossos fundamentos. Não buscamos polir nossos conhecimentos sobre as dolorosas experiências, das quais somos os herdeiros, nem sobre a história universal que erigiu a nossa construção ou a tolerou, que nos carrega e tolera e talvez ainda carregará e tolerará muitos castálicos e magísteres depois de nós, mas que um dia porá abaixo de novo nosso edifício e o devorará como põe abaixo e devora tudo o que ela deixou crescer.
Deixo esta digressão sobre a História e o resultado a que chego, e a conclusão que tiro, para os dias de hoje e para nós, sendo esta: nosso sistema e nossa Ordem já ultrapassaram o apogeu do florescimento e da felicidade que o jogo enigmático da história universal, por vezes, concede ao belo e ao desejável. Estamos na fase da decadência, que se pode prolongar talvez por muito tempo ainda, mas de qualquer maneira não nos caberá nada mais alto, mais sublime, mais belo, mais desejável do que já possuímos. O caminho conduz agora para baixo. Historicamente falando, creio eu, estamos maduros para a demolição, e ela se dará indubitavelmente não hoje nem amanhã, mas depois de amanhã.
Não se pense que chego a esta conclusão somente a partir de um julgamento excessivamente moral de nossos feitos e capacidades. Concluo assim, muito mais ainda, a partir dos movimentos que vejo se prepararem no mundo exterior. Aproximam-se tempos críticos, por toda parte percebem-se prenúncios, o mundo quer de novo deslocar o seu centro de gravidade. Deslocamentos de poder estão em vias de realizar-se, não sucederão sem guerra nem violência, um vento de ameaças à paz e mais ainda à vida e à liberdade sopra do Extremo Oriente. Por mais que nosso país adote uma política internacional neutralista, por mais que nosso povo unanimemente (o que não fará) continue aderindo ao status quo e queira prosseguir fiel a nós e ao ideal castálico, tudo será em vão. Já hoje muitos de nossos parlamentares dizem com muita clareza, quando a ocasião se apresenta, que Castália é um luxo um tanto caro para a nação. Tão logo o país se sinta obrigado a armar-se seriamente para a guerra, armamentos defensivos apenas – e isso pode vir a acontecer em breve –, serão tomadas grandes medidas de economia e, apesar de o governo estar otimamente intencionado em relação a nós, muitas dessas medidas nos atingirão.
Estamos orgulhosos de que a nossa Ordem e a permanência da cultura espiritual que ela garante exijam do país um sacrifício relativamente modesto. Em comparação com outras eras, principalmente com os inícios da era folhetinesca, com as suas universidades exuberantemente dotadas, seus inumeráveis conselhos e luxuosos institutos, estes sacrifícios de fato não são grandes, tornam-se até insignificantes se comparados com aqueles que, no século das guerras, as hostilidades bélicas e os armamentos consumiam.
Mas esta corrida armamentista será talvez em breve de novo um supremo imperativo. No parlamento voltarão de novo os generais a mandar, e quando o povo for colocado diante da opção, ou sacrificar Castália ou expor-se ao perigo de guerra e ruína, já sabemos como escolherá. Imediatamente, sem dúvida alguma, dar-se-á impulso a uma ideologia belicista, que logo empolgará a juventude, um slogan e uma filosofia da vida, segundo os quais, eruditos e erudição, latim e matemática, cultura e cultivo do espírito somente terão direito à existência na medida em que forem capazes de servir a objetivos belicosos.
A vaga já está a caminho. Um dia há de nos varrer. Talvez isto seja bom e necessário. Primeiramente, porém, nos compete, mui veneráveis colegas, na medida de nossa visão dos acontecimentos, na medida em que estamos despertos e temos coragem, usar aquela liberdade limitada de decidir-se a agir que é concedida ao homem e que faz da história universal a história da humanidade. Se quisermos podemos fechar os olhos, pois o perigo de algum modo ainda está longe; provavelmente, nós, que somos mestres, respiraremos em paz até o fim e em paz poderemos deitar-nos para morrer, antes que o perigo se aproxime e se torne visível a todos. Para mim, contudo, e decerto não só para mim, esta paz não seria de boa consciência. Eu não gostaria de continuar a administrar em paz o meu cargo e jogar o Jogo de Avelórios, satisfeito em saber que o futuro, com toda a sua bagagem trágica, não me encontraria mais em vida. Não; parece-me no entanto necessário lembrar-me de que também nós apolíticos pertencemos à história universal e ajudamos a fazê-la. Por isso eu disse no começo desta carta que a qualidade do meu desempenho no cargo está diminuída ou comprometida, pois não posso impedir que grande parte de meus pensamentos e preocupações seja ocupada pelo perigo futuro.
Nego à minha fantasia brincar com as formas que a desgraça possa talvez tomar para nós e para mim. Mas não posso ficar surdo à pergunta: que devemos nós ou que devo eu fazer para enfrentar o perigo? Sobre este ponto, seja-me permitida ainda uma palavra.
Preferiria não defender a reivindicação de Platão de que o erudito, melhor, o sábio, deveria dirigir o Estado. Naquela época o mundo era mais novo. E Platão, mesmo sendo o fundador de uma espécie de Castália, estava longe de ser um castálico, mas era um aristocrata de berço, de ascendência régia. Também nós somos aristocratas e formamos uma nobreza, mas do espírito e não do sangue. Não creio que o homem conseguirá um dia criar e cultivar uma nobreza que fosse ao mesmo tempo do sangue e do espírito; seria uma aristocracia ideal, mas não passa de um sonho.
Nós castálicos, embora sendo gente decente e muito inteligente, não servimos para mandar. Se tivéssemos de governar, não o faríamos com a força e a simplicidade de que o genuíno chefe necessita e também neste tipo de atividade o nosso campo próprio e nossas preocupações específicas, o cultivo de uma vida espiritual exemplar, bem depressa seriam negligenciados.
Para governar não é preciso ser curto de inteligência e brutal, como intelectuais vaidosos por vezes apregoam. Faz-se mister para exercer o mando o gosto permanente de uma atividade voltada para fora, a paixão de identificar-se com metas e objetivos e por certo também uma certa rapidez e falta de escrúpulos na escolha dos caminhos para o êxito. São portanto propriedades que um erudito – pois não queremos designar-nos sábios – não deve ter e não tem, já que para nós a meditação é mais importante que a ação e, na escolha dos meios e dos métodos para chegar a nossos fins, aprendemos a agir o mais escrupulosa e desconfiadamente possível. Portanto, não é nosso dever governar nem fazer política.
Somos especialistas da pesquisa científica, da análise, das medições, somos os depositários e contínuos examinadores de todos os alfabetos, tabuadas e métodos, nós somos os aferidores das medidas e pesos espirituais. Por certo nós somos também muitas outras coisas, podemos ser talvez inovadores, descobridores, aventureiros, conquistadores e alargadores de horizontes, mas a nossa função primária e capital, em virtude da qual o povo nos conserva e recorre a nós, é a manutenção da limpidez das fontes do saber. Na política, no comércio, onde quer que seja, pode ser que signifique uma proeza e uma genialidade, de vez em quando, vender gato por lebre; conosco, porém, jamais.
Em épocas anteriores, nos tempos agitados, assim chamados ‘grandes’, por ocasião das guerras e revoluções, exigia-se por vezes dos intelectuais a sua politização. Principalmente na era folhetinesca, dava-se este evento. Pertencia também às suas exigências, além da politização, a militarização do espírito. Assim como os sinos das igrejas eram fundidos para a fabricação de canhões, a juventude escolar ainda imberbe era convocada para suprir as tropas dizimadas, também o espírito era confiscado e empregado como instrumento bélico.
Evidentemente não podemos reconhecer essa pretensão. Não vamos gastar o nosso latim para dizer que, em caso de urgência, um letrado possa ser chamado da cátedra ou da mesa de estudo e se transformar num soldado, que talvez ele possa apresentar-se voluntariamente, que, mais ainda, num país consumido pela guerra o erudito tenha de se privar do conforto material, até ao extremo, mesmo até à fome. Quanto mais elevada a cultura de um homem, quanto maiores os privilégios de que ele goza, tanto maiores devem ser, em caso de necessidade, os sacrifícios. Esperamos que isto seja evidente a todos os castálicos. Se, porém, estamos prontos a sacrificar o nosso bem-estar, nosso conforto, nossa vida para o povo, quando ele está em perigo, isto não inclui que estejamos dispostos a sacrificar nosso próprio espírito, a tradição e moral de nossa espiritualidade, aos interesses do dia, da nação e dos generais. É um covarde quem se subtrai aos atos, sacrifícios e perigos que seu povo tem de enfrentar. Mas não menos covarde e traidor é aquele que trai os princípios da vida espiritual diante dos interesses materiais, por exemplo, que está disposto a confiar aos detentores do poder a decisão sobre o resultado da conta dois vezes dois! É traição sacrificar a qualquer outro interesse, mesmo ao interesse da pátria, o senso da verdade, a honestidade intelectual, a fidelidade às leis e aos métodos do espírito.
Quando, na luta dos interesses e slogans, a verdade fica em perigo de tornar-se desvalorizada, deformada e violentada na mesma proporção em que o são a linguagem, as artes, o homem e todas as criações orgânicas e refinadas de uma cultura superior, então é nosso único dever resistir e salvar a verdade, digo melhor, a busca da verdade, nosso dogma mais elevado.
O erudito que, como orador, autor, professor, cientemente diz o que é falso, que apoia cientemente mentiras e mistificações, não somente age contra leis orgânicas fundamentais, mas também, longe de trazer ao seu povo algum proveito, a despeito de todas as aparências em contrário, causa-lhe pesado prejuízo, poluindo-lhe o ar e contaminando-lhe a terra, os alimentos e a bebida, envenenando-lhe o pensamento e o direito, e no fundo presta auxílio a todas as potências malignas e hostis que pretendem aniquilar o próprio povo.
O castálico não deve tornar-se político. Ele deve, é certo, em caso de necessidade, sacrificar a sua pessoa, jamais porém a fidelidade ao espírito. O espírito só é benéfico e nobre na obediência à verdade. Tão logo trai a verdade, tão logo lhe perde o respeito e se torna venal e flexível aos caprichos, ele é a força diabólica em potência, é muito pior que animalesco, pois a bestialidade instintiva pelo menos ainda conserva alguma coisa da inocência da natureza.
Deixo a cada um de vós, venerados colegas, a tarefa de refletir em que consistem os deveres da Ordem, quando o país e a própria Ordem estão ameaçados. Haverá diversas concepções. Também eu tenho as minhas, e num prolongado exame de todas as questões aqui suscitadas cheguei, quanto a mim, a uma representação clara daquilo que, para mim, é um dever e uma meta digna de meus esforços. Isto me leva pois a um requerimento pessoal dirigido às veneráveis autoridades, com o qual devo terminar meu memorandum.
De todos os magísteres de que nossa direção se compõe, eu, como Magister Ludi, me situo à maior distância do mundo exterior, evidentemente por força do meu cargo. O matemático, o filólogo, o físico, o pedagogo e todos os outros magísteres trabalham em terrenos que têm algo em comum com o mundo profano. Também nas escolas não castálicas, nas escolas comuns do nosso país e de outras terras, a matemática e o ensino das línguas constituem o fundamento da instrução. Também nas universidades profanas a astronomia, a fisica são praticadas e até a própria música é exercida por gente completamente iletrada. Todas estas disciplinas são muito antigas, muito mais antigas que nossa Ordem, elas já existiam há muito tempo antes dela e vão sobreviver-lhe.
Unicamente o Jogo de Avelórios é nossa própria invenção, nossa especialidade, nossa predileção, nosso brinquedo. É a expressão mais acabada e diferençada de nossa espiritualidade tipicamente castálica. É ao mesmo tempo a jóia mais preciosa e mais inútil, mais querida e mais frágil de nosso tesouro. Será a primeira a arruinar-se, se a sobrevivência de Castália for posta em questão. Não somente por ser, de fato, a mais frágil de nossas propriedades, como também por ser para os leigos, sem dúvida alguma, a peça mais prescindível de Castália.
Se se tratar de poupar ao país todas as despesas que não forem estritamente indispensáveis, então as Escolas da Elite serão limitadas, as verbas para a conservação e multiplicação das bibliotecas e coleções serão restringidas e afinal definitivamente suspensas, nossas refeições serão reduzidas, nosso vestuário não será mais renovado, mas as disciplinas principais de nossa Universitas Litterarum, estas todas continuariam, menos o Jogo de Avelórios. Matemática ainda é necessária para inventar novas armas de fogo, mas ninguém acreditará, muito menos os militares, que o fechamento da aldeia dos jogadores e a supressão de nosso Jogo acarretará o menor prejuízo ao país e ao povo. O Jogo de Avelórios é a parte mais característica e mais ameaçada de nosso edifício. Talvez seja justamente por causa disso que o Magister Ludi, o prepósito de nossa disciplina mais estranha ao mundo, é aquele que em primeiro lugar pressinta o terremoto que se avizinha e venha, antes dos outros, exprimir este sentimento diante das autoridades.
No caso de reviravoltas políticas e de conflagrações, considero portanto o Jogo de Avelórios como um caso perdido. Declinará rapidamente e, por mais numerosos que sejam os indivíduos isolados que se mantenham fiéis e efetivamente vinculados a ele, não será mais restabelecido. A atmosfera que se seguirá a uma nova época de guerra não o tolerará. Desaparecerá do mesmo modo como certos hábitos altamente cultivados na história da música, por exemplo os coros de cantores profissionais por volta de 1600 ou as músicas figuradas dominicais nas igrejas pelos anos de 1700. Naquele tempo os ouvidos humanos se deliciaram com sons que nenhuma ciência e nenhuma magia conseguem evocar na sua pureza angélica e radiosa. Assim também o Jogo de Avelórios não será esquecido, mas não será mais restabelecido, e aqueles que então estudarem a sua história, a sua origem, o seu florescimento e o seu fim suspirarão e nos invejarão por termos podido viver num mundo tão pacífico, tão cultivado e de ambiente tão puro.
Ainda que eu seja Magister Ludi, não reputo de modo nenhum obrigação minha (ou nossa) impedir ou adiar o fim de nosso Jogo. Também a estética e a suprema beleza são efêmeras, tão logo se tornam história e fenômeno sobre a face da Terra. Nós sabemos disso e podemos ficar tristes, mas não tentamos seriamente alterar este rumo; ele é inelutável.
Se o Jogo de Avelórios cair, Castália e o mundo sofrerão uma perda, mas no momento apenas será notada, tamanha será a preocupação e a ocupação do mundo na grande crise de salvar o que ainda puder salvar. Pode-se ainda imaginar Castália sem o Jogo de Avelórios, mas é impensável uma Castália sem o respeito da verdade e a fidelidade ao espírito. Uma Direção Geral do Ensino poderá passar sem o Magister Ludi. Mas este ‘Magister Ludi’, o que quase já caiu na esfera do esquecimento, original e essencialmente não significa a especialidade que designamos com este nome. Magister Ludi significa na origem simplesmente mestre-escola. E de mestres-escolas, de bons e competentes mestres-escolas, nosso país tanto mais precisará quanto mais ameaçada Castália estiver e quanto mais as suas preciosidades se tornarem obsoletas e se desfizerem.
O que mais necessitamos é de professores, homens que ministrem à juventude a capacidade de medir e de julgar e que sejam seus modelos no respeito à verdade, na obediência ao espírito, no serviço à palavra. E isto é válido, não somente e em primeira linha, para nossas Escolas da Elite, cuja existência um dia chegará igualmente a seu termo, como também para as escolas profanas, em que os burgueses e camponeses, os artesãos e soldados, os políticos, oficiais e soberanos são educados e formados, enquanto são ainda crianças e portanto dóceis. Lá reside a base da vida espiritual no país, não nos nossos institutos ou no Jogo de Avelórios. Sempre fornecemos professores e educadores ao país e já o disse: são os melhores dentre nós. Precisamos fazer porém muito mais do que já foi feito até agora. Não podemos mais fiar-nos em que a elite dos bem-dotados continue a fluir das escolas exteriores para nós ajudando a manter Castália de pé. Precisamos cada vez mais conhecer e alargar o serviço humilde e repleto de responsabilidades nas escolas profanas como a parte mais importante e honrosa de nossa missão.
Assim chego enfim à minha solicitação pessoal que eu desejava dirigir às veneráveis autoridades. Por meio desta, solicito à Direção a exoneração do meu cargo de Magister Ludi e minha destinação para uma escola comum lá fora no país, grande ou pequena, e a permissão de ir reunindo nessa escola aos poucos uma equipe de jovens confrades, um estado-maior de professores para trabalhar comigo, gente em que eu pudesse depositar a confiança de que me haveriam de secundar com fidelidade no esforço de transfundir nossos princípios no coração e no sangue dos jovens leigos.
Queiram as veneráveis autoridades examinar benevolamente o meu requerimento e respectiva motivação e então notificar-me as suas ordens.

O Mestre do Jogo de Avelórios.

Postscriptum:
Seja-me permitido citar uma palavra do venerável Padre Jacobus que anotei por ocasião de uma inesquecível audiência privada.
“Pode ser que venham tempos de horror e profunda miséria. E se deve haver ainda na miséria uma felicidade, esta só poderá ser uma felicidade do espírito, voltada retrospectivamente para a salvação da cultura de tempos anteriores e orientada prospectivamente para a afirmação serena e infatigável do espírito num tempo que doutra maneira poderia ceder completamente à matéria.”


REFERÊNCIA:
HESSE, Hermann. O jogo das contas de vidro. Rio de Janeiro: Record, 2003. p. 360-378.

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