segunda-feira, 22 de janeiro de 2018

WAGNER E O SANTO GRAAL




 A tentação de Sir Parsifal, por Arthur Hacker.


Por Edna May Crowley, SRC

Após quarenta anos de trabalho prodigioso e às vezes sofrendo tempestuosa oposição, Richard Wagner foi reconhecido pelo mundo musical como o maior criador dentro da história da arte musical. Mas é o mundo místico que enxerga em Parsifal, sua última ópera, a revelação do Cálice Sagrado.
Para compreender Parsifal, precisamos primeiro abordar as óperas dos anéis. Em maioria, os historiadores acentuam que Wagner extraiu os enredos das óperas dos anéis do épico germânico Nibelungenlied (“O Anel dos Nibelungos”). Mas a penetrante visão de Corrine Heline, em seu livro Música Esotérica de Richard Wagner, revela que as óperas dos anéis representam Água, Ar, Terra e Fogo. Das Rheingold (O Ouro do Reno) representa a Senda da Água; Die Walküre (A Valquíria) a Senda do Ar; Siegfried, a Senda da Terra; e Die Gotftterdammerung (O Crepúsculo dos Deuses), a Senda do Fogo. Por isso, tem-se a certeza de que Wagner teve acesso a ensinamentos místicos.

Iniciação à Luz

As óperas dos anéis supostamente “formam um imenso caleidoscópio do desenvolvi­mento passado, presente e futuro da espécie humana. Gotftterdammerung representa as trevas da materialidade e revela a senda da iniciação do amor, que levará a humanidade e volta à Luz do Espírito”.
Se encararmos as óperas de Wagner como graus de desenvolvimento espiritual, sua ordem seria esta:
Tannháuser, Lohengrin, Tristão e Isolda e Parsifal. À medida que as óperas eram cria­das, cada qual trazia consigo maior promessa da possibilidade do épico final – a majestosa, a incomparável Parsifal, sobre a qual se afirmou: “Pela música excelsa de Parsifal, o homem pode construir uma ponte de ouro ora por meio da qual pode comungar com hostes angélicas e arcangélicas.”1
O mundo musical registra que Lohengrin e Parsifal foram baseadas nas lendas medievais do Santo Graal. Afirma­-se que Wagner obteve o texto para essas óperas na obra do poeta épico e minnesinger (poeta-cantor) alemão Wolfram von Eschenbach (1170-1220).
O primeiro autor que se sabe ter dado tratamento literário à lenda do Rei Artur foi Chrestien de Troyes, da França (fins do século XII). Mas a primeira referência conhecida, data do ano 600 d.C.
Essas lendas originaram-se das estórias tradicionais de heróis irlandeses e galeses. Antes do ano 1000 surgiram entre os bretões, que as difundiram no Oeste da Europa, parcialmente através dos minnesingers. Os minnesingers da Alemanha, correspondentes aos Troubadours (trovadores) do Sul da França, floresceram nos séculos doze e treze. Os maiores foram Walther von der Vogelweide e Wolfram von Eschenbach. Mais tarde, os meistersingers sucederam os minnesingers.

O Rei Artur

Afirma-se que o Rei Artur pode ser colocado aproximadamente entre 495 e 537 d.C. O mundo místico, porém, tem motivos para crer que o conhecimento do Cálice Sagrado (o Graal) data de séculos antes do Rei Artur e séculos antes de Cristo.
Por ordem do Imperador Napoleão III, a ópera de Wagner Tannhauser foi encenada no teatro de ópera de Paris, em março de 1861. Foi vaiada e forçada a sair do palco pelos membros do Jockey Club, que condenaram a produção de uma ópera que não continha o costumeiro balé no meio do segundo ato. Wagner recusou-se a inserir um balé, para não quebrar a continuidade da ópera.
Nessa época Wagner estava em penosas dificuldades financeiras, dependendo da caridade de alguns amigos, principalmente de Liszt. A partir de 1850, sua lista de obras literárias aumentou rápida e intensamente, incluindo todos os poemas de todas as suas óperas posteriores, com exceção de Parsifal.
Em 1864, Luís II da Bavária ofereceu-lhe o cargo de Diretor Real em Munique, dando-­lhe ainda amplo apoio para seus projetos teatrais. O teatro de ópera de Bayreuth, construído somente para a produção das óperas de Wagner, foi completado em 1876, e a tetralogia dos anéis, que Wagner chamou de Der Ring des Nibelungen (O Anel dos Nibelungos) foi apresentada nesse ano.

Parsifal

Parsifal, a última ópera de Wagner, foi encenada em 26 de julho de 1882. Causou forte impressão, e dessa época em diante os festivais de Bayreuth, realizados em inter­valos irregulares, tornaram-se local de inúmeras peregrinações musicais.
Após o falecimento de Wagner, em 1883, sua segunda mulher, Cosima, que era a filha de Franz Liszt, levou adiante o empreendimento de Bayreuth. No teatro de ópera de Bayreuth, a orquestra ficava oculta da platéia por um enorme peitoril que se inclinava na direção do palco. E o que era mais surpreendente: ninguém podia aplau­dir. Wagner desejava que a platéia passasse pelas mesmas experiências sublimes que estavam sendo encenadas.
Não obstante, seus nobres temas eram uma afronta para uma sociedade materialista e sensual. Embora eles ficassem furiosos e ofendidos, proibissem de serem apresentadas suas obras e se revoltassem quando ence­nadas... Wagner não capitulava!
Ele sobreviveu aos anos difíceis e enfren­tou o doloroso fato de que seu grande talento não era reconhecido. Chamavam-no de teimoso, mal-humorado, egoísta, abusivo em suas exigências, um monstro e um idiota. Mas Wagner não desistia! Ele estava certo, e sabia disso! E, por fim, triunfou.
As honras que lhe foram concedidas superaram em muito as desfrutadas por qualquer outro compositor. O tempo provou que suas obras não só revolucionaram a trajetória da ópera, mas reverberaram em todo o campo da arte musical. Assim, sua obra de arte do futuro, que fora tão duramente ataca­da, acabou tornando-se vitoriosa. Ao criador dessa obra é bem apropriado aplicarmos as palavras de Shakespeare: “Ele de fato vence o pequeno mundo como um gigante”.

O desabrochar da espiritualidade

Analisemos o drama das duas óperas mais reveladoras, Lohengrin e Parsifal.
A Princesa Eisa, heroína de Lohengrin, exemplifica a personalidade-alma evoluída o bastante para desposar o Ser Divino (a Grande Luz) exemplificado por Lohengrin, o cavaleiro do Santo Graal.
O fato de Eisa sonhar com um cavaleiro em reluzente armadura indica que ela está pronta para ascender a um grau maior de evolução. Lohengrin surge num bote puxado por um cisne. Feitos os planos de casamento, Lohengrin pede que Eisa tenha fé – que não lhe pergunte o nome nem de onde ele vem. Eisa concorda. Tudo parece bem e os prepa­rativos para o casamento são feitos. Mas a dúvida vence a fé. Eisa faz as fatais pergun­tas, e perde assim seu lugar na Grande Luz.
Enquanto ainda soam os acordes da marcha nupcial, Lohengrin tristemente anuncia aos presentes que o casamento não mais ocorrerá. Canta então uma das declara­ções mais dramáticas de todas as óperas – a narrativa de Lohengrin Em Terras Distantes. Fala sobre Monsalvat e sobre os cavaleiros que aí guardam o Santo Graal. Revela que seu pai é Parsifal, que reina sobre tudo, e que ele é Lohengrin. Lohengrin então parte num bote agora puxado por uma pomba branca.
Afirma-se que a ópera Parsifal está mais próxima da “Música das Esferas” que qual­quer outra obra composta por mãos mortais. Wagner sentia que essa obra estava além de sua época e pediu que ela fosse apresentada em Bayreuth só cinquenta anos depois de sua morte. Ele a chamava de Peça de Festival Sacro. Apesar da resoluta oposição da Sra. Wagner, a ópera Parsifal foi apresentada no Metropolitan Opera House de Nova Iorque em 1903. Os direitos autorais expiraram em 1913, e seguiram-se produções em Berlim, Paris, Roma, Bolonha, Madri e Barcelona.
A estória de Parsifal leva à verdadeira realidade do “centro divino”. Só Wagner deu a essa revelação mística tratamento dra­mático tão reverente e significação tão sublime. Os seguintes eventos, que ocor­reram antes da abertura dessa ópera, ajudam a esclarecê-la melhor.

O Graal

O Graal é o cálice em que bebeu Cristo na Última Ceia com seus discípulos. Esse cálice sagrado, junto com a lança sagrada, corria o risco de cair em mãos infiéis.
Mensageiros devotos confiaram o cálice e a lança a um cavaleiro de imaculada moral chamado Titurel, que construiu um esplên­dido santuário chamado Monsalvat (O Monte da Salvação) numa inacessível rocha dos Pireneus, e reuniu uma companhia de cavaleiros de irrepreensível honradez. Esses cavaleiros devotaram-se a preservar o Graal. Uma vez por ano uma pomba descia do Céu para renovar o poder sagrado do Graal e de seus guardiões.
Titurel, chefe dos cavaleiros, percebendo a chegada da velhice, nomeia seu filho, Amfortas, seu sucessor. O cavaleiro Klingsor, que vive perto do castelo de Monsalvat, deseja reparar seus erros à medida que a velhice se aproxima. Tenta juntar-se à Ordem do Graal, mas é rejeitado. Como vingança, consulta um espírito maligno, Kundry, e planeja arruinar os cavaleiros. Invoca o auxílio de um grupo de sirenas, chamadas meninas-flores, metade mulher e metade flor, que viviam num jardim mágico.
Descobrindo que muitos dos cavaleiros tinham perdido a dignidade por causa do fascínio das moças-flores, Amfortas decide fazer uma investigação. Leva consigo a lança sagrada, confiando em que esta o protegeria da magia das sirenas. Mas ai...! – não só ele é subjugado pelo feitiço de Kundry, como Klingsor toma-lhe a lança e nele produz um ferimento incurável.
Com profunda infelicidade, Amfortas retorna ao Castelo de Monsalvat, sofrendo eterno remorso e perpétua agonia pelo ferimento. Entretanto, como sacerdote-mor, é forçado a celebrar os Ritos Sagrados, sentindo-se o tempo todo indigno.
Em vão busca desesperadamente um remédio para a ferida e perdão por seu pecado. Por fim, numa visão, uma voz lhe proclama que só um “tolo ingênuo” (alguém que ignore o pecado e resista à tentação) poderá lhe trazer alívio, e que mensageiros celestiais guiarão essa pessoa a Monsalvat. Inicia-se então a ação da ópera Parsifal.

Parsifal chega

Ferindo um cisne, sem saber que este estava sob a proteção do rei, Parsifal é arrastado por dois cavaleiros ante Gurnemanz (um vete­rano cavaleiro do Graal), que o repreende. Essa ação ocorre perto do Castelo de Monsalvat.
Os cavaleiros percebem que Parsifal pouco sabe sobre si mesmo. Conhecera um cavaleiro chamado Sir Lancelot, na floresta perto de casa. Contrariando os desejos da mãe, seguira-o até ali. Lembrava-se de que a mãe chamava-se Herzelied (“Tristeza do Coração”).
Kundry, que entra em cena com um novo medica­mento para a ferida de Amfortas, dá mais informações. O pai do jovem era Gamuret. Após a morte do pai em batalha, a mãe afastou o filho do convívio dos homens, para que não tivesse a mesma sina do pai. A mãe já faleceu, e Parsifal era um andarilho.
Kundry (Kundralina) é o estranho ser que parece ter duas naturezas. Ela aparece alternadamente como serva devota do Graal e, sob a influência mágica de Klingsor, como uma mulher de terrível beleza que, por fascínio, leva à ruína todos os cavaleiros que caem sob seu poder. Essa maldição é uma punição por um crime que cometera numa existência prévia, quando, como Herodíade, zombara de Cristo na cruz. Quem a encontre adormecida pode chamá-la a seu serviço; sob o feitiço de Klingsor, ela é bela; no castelo dos cavaleiros, ela é como um feio animal. Alguns dos cavaleiros protestam contra sua presença, mas Gurnemanz a defende.
Ocorre a Gurnemanz que Parsifal pode ser o tolo ingênuo enviado para curar a ferida de Amfortas. Enquanto conduz Parsifal ao grande aposento em que o Graal será desve­lado no rito anual, Parsifal é tocado pela beleza e des­lumbramento do lugar, e diz: “Eu quase não ando, mas estranhamente pareço correr”.
Gurnemanz responde: “Meu filho, percebes que aqui tempo e espaço são unos, e tudo é Deus”.
Parsifal presen­cia a retirada do véu do Cálice. O esplendor flame­jante do Graal enche o aposento e, enquanto os cavaleiros e damas ajoelham-se em êxtase, Parsifal contempla o Cálice como se não fosse tocado pela cena. Mais tarde, interrogado por Gurnemanz, está tão deslumbrado, que não consegue falar. Enraivecido, Gurnemanz empurra-o para fora do aposento, e bate a porta, fechando-a.
No mundo de fora, Parsifal resiste às meninas-flores e rejeita Kundry, então com sedutora beleza. Enraivecido, Klingsor atira em Parsifal a lança sagrada, que, em vez de feri-lo como fizera com Amfortas, flutua sobre sua cabeça, e Parsifal dela se apodera. Parsifal expulsa a magia maligna de Klingsor para sempre. O poder de Klingsor é anulado, e seu palácio entra em total ruína.

Parsifal vagueia pelo mundo exterior

Embora Kundry use de magia para condenar Parsifal a uma vida de perambulação, ele sai pelo mundo não tanto pelo poder da magia, mas porque ainda tem muito a aprender.
Anos depois, numa bela manhã de primavera, Sexta-feira da Paixão, aliás, Parsifal regressa. Durante sua ausência, Amfortas recusava-se a descobrir o Graal, de que os cavaleiros recebiam sustento e vigor, pois sempre que o fazia a ferida e a agonia voltavam.
Sobre a ferida de Amfortas, Corrine Heline afirma: “A incurável ferida de Amfortas é o sofrimento do ser humano, provocado por ele ter caído na vida sensorial – que trouxe consigo necessidades, doença, discórdia, morte e todos os grandes sofrimentos que pesam sobre os habitantes da terra. Essa ferida só pode ser curada pela redenção através de purificação da natureza sensorial inferior e pela transmutação de suas forças nas faculdades da alma”.
Amfortas, em crucial agonia, delirante, anseia pela morte. Mas é obrigado a viver para cuidar do Graal. Pela morte do pai, ele é quem deve desvelar o Graal. Como a agonia é maior que suas forças, roga aos cavaleiros que o matem.
A essa altura Gurnemanz revela a Parsifal o triste estado dos cavaleiros no castelo. Kundry se encontra no papel de serva do Castelo do Graal. Ela lava os pés de Parsifal na fonte sagrada, e os enxuga com os cabelos (reminiscência de Madalena). Parsifal a batiza.
O Graal é desvelado. Kundry morre ajoelhando-se ante o altar, simbolizando isso a completa e derradeira dedicação da per­sonalidade ao serviço da alma.
Parsifal, entrando no grande aposento com Gurnemanz e Kundry, não é percebido. Amfortas está prestes a desvelar o Cálice; Parsifal toca-lhe a ferida com a lança sagrada, curando-o. Uma pomba branca desce e paira sobre a cabeça de Parsifal.

O Herói

Parsifal acena suavemente com o Graal ante os cavaleiros, que estão com os olhos voltados para cima. Gurnemanz e Amfortas, rei e sacerdote depostos, ajoelham-se ante Parsifal, Rei Sacerdote da Ordem de Melquisedeque, Senhor das Eras. Parsifal é coroado rei e permanece no castelo como líder dos cavaleiros.
Temos, assim: (1) A Vinda de Parsifal; (2) A Tentação de Parsifal; (3) A Coroação de Parsifal. Essa sequência encontra paralelo nas três etapas dos antigos mistérios. Foi Pitágoras, o grande filósofo místico do século VI a.C., que apresentou a música e os números como potências de forças divinas. Os estudantes da escola-templo de Pitágoras passavam por três Graus sucessivos (Preparação, Purificação, Perfeição), para conse­guirem a derradeira descoberta do centro divino no homem: eles mesmos.
Do ponto de vista místico, portanto, a ópera de Wagner Parsifal projeta na era moderna a essência da sabedoria de Pitágoras. Pela luz dessa sabedoria, discernimos o plano de Wagner, de desvelar o Graal, para trazê-lo à visão humana. A Opera Parsifal ainda é encenada anualmente na Sexta-feira da Paixão, no Metropolitan Opera House, de Nova Iorque.

Nota: 1. HELINE, Corinne. Esoteric Music ot Richard Wagner. Los Angeles: New Age Pres, 1948.


REFERÊNCIA:

CROWLEY, Edna May. Wagner e o Santo Graal. In O Rosacruz. Inverno 2010. n. 272. Curitiba: AMOCR-GLP, 2012. p. 12-17.



Nenhum comentário:

Postar um comentário