A tentação de Sir Parsifal, por Arthur Hacker.
Por Edna May Crowley, SRC
Após quarenta anos de
trabalho prodigioso e às vezes sofrendo tempestuosa oposição, Richard Wagner
foi reconhecido pelo mundo musical como o maior criador dentro da história da
arte musical. Mas é o mundo místico que enxerga em Parsifal, sua última ópera, a revelação do Cálice Sagrado.
Para compreender Parsifal, precisamos primeiro abordar as
óperas dos anéis. Em maioria, os historiadores acentuam que Wagner extraiu os
enredos das óperas dos anéis do épico germânico Nibelungenlied (“O Anel dos Nibelungos”). Mas a penetrante visão de
Corrine Heline, em seu livro Música
Esotérica de Richard Wagner, revela que as óperas dos anéis representam
Água, Ar, Terra e Fogo. Das Rheingold
(O Ouro do Reno) representa a Senda da Água; Die Walküre (A Valquíria) a Senda do Ar; Siegfried, a Senda da Terra; e Die
Gotftterdammerung (O Crepúsculo dos Deuses), a Senda do Fogo. Por isso,
tem-se a certeza de que Wagner teve acesso a ensinamentos místicos.
Iniciação
à Luz
As óperas dos anéis
supostamente “formam um imenso caleidoscópio do desenvolvimento passado,
presente e futuro da espécie humana. Gotftterdammerung
representa as trevas da materialidade e revela a senda da iniciação do amor,
que levará a humanidade e volta à Luz do Espírito”.
Se encararmos as óperas de
Wagner como graus de desenvolvimento espiritual, sua ordem seria esta:
Tannháuser, Lohengrin, Tristão e Isolda e Parsifal.
À medida que as óperas eram criadas, cada qual trazia consigo maior promessa
da possibilidade do épico final – a majestosa, a incomparável Parsifal, sobre a qual se afirmou: “Pela
música excelsa de Parsifal, o homem
pode construir uma ponte de ouro ora por meio da qual pode comungar com hostes
angélicas e arcangélicas.”1
O mundo musical registra que
Lohengrin e Parsifal foram baseadas nas lendas medievais do Santo Graal. Afirma-se
que Wagner obteve o texto para essas óperas na obra do poeta épico e minnesinger (poeta-cantor) alemão
Wolfram von Eschenbach (1170-1220).
O primeiro autor que se sabe
ter dado tratamento literário à lenda do Rei Artur foi Chrestien de Troyes, da
França (fins do século XII). Mas a primeira referência conhecida, data do ano
600 d.C.
Essas lendas originaram-se
das estórias tradicionais de heróis irlandeses e galeses. Antes do ano 1000
surgiram entre os bretões, que as difundiram no Oeste da Europa, parcialmente
através dos minnesingers. Os minnesingers da Alemanha,
correspondentes aos Troubadours
(trovadores) do Sul da França, floresceram nos séculos doze e treze. Os maiores
foram Walther von der Vogelweide e Wolfram von Eschenbach. Mais tarde, os meistersingers sucederam os minnesingers.
O
Rei Artur
Afirma-se que o Rei Artur
pode ser colocado aproximadamente entre 495 e 537 d.C. O mundo místico, porém,
tem motivos para crer que o conhecimento do Cálice Sagrado (o Graal) data de
séculos antes do Rei Artur e séculos antes de Cristo.
Por ordem do Imperador
Napoleão III, a ópera de Wagner Tannhauser
foi encenada no teatro de ópera de Paris, em março de 1861. Foi vaiada e forçada
a sair do palco pelos membros do Jockey Club, que condenaram a produção de uma
ópera que não continha o costumeiro balé no meio do segundo ato. Wagner
recusou-se a inserir um balé, para não quebrar a continuidade da ópera.
Nessa época Wagner estava em
penosas dificuldades financeiras, dependendo da caridade de alguns amigos,
principalmente de Liszt. A partir de 1850, sua lista de obras literárias
aumentou rápida e intensamente, incluindo todos os poemas de todas as suas óperas
posteriores, com exceção de Parsifal.
Em 1864, Luís II da Bavária ofereceu-lhe
o cargo de Diretor Real em Munique, dando-lhe ainda amplo apoio para seus projetos
teatrais. O teatro de ópera de Bayreuth, construído somente para a produção das
óperas de Wagner, foi completado em 1876, e a tetralogia dos anéis, que Wagner chamou
de Der Ring des Nibelungen (O Anel dos
Nibelungos) foi apresentada nesse ano.
Parsifal
Parsifal, a última
ópera de Wagner, foi encenada em 26 de julho de 1882. Causou forte impressão, e
dessa época em diante os festivais de Bayreuth, realizados em intervalos irregulares,
tornaram-se local de inúmeras peregrinações musicais.
Após o falecimento de Wagner,
em 1883, sua segunda mulher, Cosima, que era a filha de Franz Liszt, levou adiante
o empreendimento de Bayreuth. No teatro de ópera de Bayreuth, a orquestra ficava
oculta da platéia por um enorme peitoril que se inclinava na direção do palco. E
o que era mais surpreendente: ninguém podia aplaudir. Wagner desejava que a platéia
passasse pelas mesmas experiências sublimes que estavam sendo encenadas.
Não obstante, seus nobres temas
eram uma afronta para uma sociedade materialista e sensual. Embora eles ficassem
furiosos e ofendidos, proibissem de serem apresentadas suas obras e se revoltassem
quando encenadas... Wagner não capitulava!
Ele sobreviveu aos anos difíceis
e enfrentou o doloroso fato de que seu grande talento não era reconhecido. Chamavam-no
de teimoso, mal-humorado, egoísta, abusivo em suas exigências, um monstro e um idiota.
Mas Wagner não desistia! Ele estava certo, e sabia disso! E, por fim, triunfou.
As honras que lhe foram concedidas
superaram em muito as desfrutadas por qualquer outro compositor. O tempo provou
que suas obras não só revolucionaram a trajetória da ópera, mas reverberaram em
todo o campo da arte musical. Assim, sua obra de arte do futuro, que fora tão duramente
atacada, acabou tornando-se vitoriosa. Ao criador dessa obra é bem apropriado aplicarmos
as palavras de Shakespeare: “Ele de fato vence o pequeno mundo como um gigante”.
O desabrochar
da espiritualidade
Analisemos o drama das duas óperas
mais reveladoras, Lohengrin e Parsifal.
A Princesa Eisa, heroína de Lohengrin, exemplifica a personalidade-alma
evoluída o bastante para desposar o Ser Divino (a Grande Luz) exemplificado por
Lohengrin, o cavaleiro do Santo Graal.
O fato de Eisa sonhar com um
cavaleiro em reluzente armadura indica que ela está pronta para ascender a um grau
maior de evolução. Lohengrin surge num bote puxado por um cisne. Feitos os planos
de casamento, Lohengrin pede que Eisa tenha fé – que não lhe pergunte o nome nem
de onde ele vem. Eisa concorda. Tudo parece bem e os preparativos para o casamento
são feitos. Mas a dúvida vence a fé. Eisa faz as fatais perguntas, e perde assim
seu lugar na Grande Luz.
Enquanto ainda soam os acordes
da marcha nupcial, Lohengrin tristemente anuncia aos presentes que o casamento não
mais ocorrerá. Canta então uma das declarações mais dramáticas de todas as óperas
– a narrativa de Lohengrin Em Terras Distantes.
Fala sobre Monsalvat e sobre os cavaleiros que aí guardam o Santo Graal. Revela
que seu pai é Parsifal, que reina sobre tudo, e que ele é Lohengrin. Lohengrin então
parte num bote agora puxado por uma pomba branca.
Afirma-se que a ópera Parsifal está mais próxima da “Música das
Esferas” que qualquer outra obra composta por mãos mortais. Wagner sentia que essa
obra estava além de sua época e pediu que ela fosse apresentada em Bayreuth só cinquenta
anos depois de sua morte. Ele a chamava de Peça
de Festival Sacro. Apesar da resoluta oposição da Sra. Wagner, a ópera Parsifal foi apresentada no Metropolitan
Opera House de Nova Iorque em 1903. Os direitos autorais expiraram em 1913, e seguiram-se
produções em Berlim, Paris, Roma, Bolonha, Madri e Barcelona.
A estória de Parsifal leva à
verdadeira realidade do “centro divino”. Só Wagner deu a essa revelação mística
tratamento dramático tão reverente e significação tão sublime. Os seguintes eventos,
que ocorreram antes da abertura dessa ópera, ajudam a esclarecê-la melhor.
O Graal
O Graal é o cálice em que bebeu
Cristo na Última Ceia com seus discípulos. Esse cálice sagrado, junto com a lança
sagrada, corria o risco de cair em mãos infiéis.
Mensageiros devotos confiaram
o cálice e a lança a um cavaleiro de imaculada moral chamado Titurel, que construiu
um esplêndido santuário chamado Monsalvat (O Monte da Salvação) numa inacessível
rocha dos Pireneus, e reuniu uma companhia de cavaleiros de irrepreensível honradez.
Esses cavaleiros devotaram-se a preservar o Graal. Uma vez por ano uma pomba descia
do Céu para renovar o poder sagrado do Graal e de seus guardiões.
Titurel, chefe dos cavaleiros,
percebendo a chegada da velhice, nomeia seu filho, Amfortas, seu sucessor. O cavaleiro
Klingsor, que vive perto do castelo de Monsalvat, deseja reparar seus erros à medida
que a velhice se aproxima. Tenta juntar-se à Ordem do Graal, mas é rejeitado. Como
vingança, consulta um espírito maligno, Kundry, e planeja arruinar os cavaleiros.
Invoca o auxílio de um grupo de sirenas, chamadas meninas-flores, metade mulher e metade flor, que viviam num jardim mágico.
Descobrindo que muitos dos cavaleiros
tinham perdido a dignidade por causa do fascínio das moças-flores, Amfortas decide
fazer uma investigação. Leva consigo a lança sagrada, confiando em que esta o protegeria
da magia das sirenas. Mas ai...! – não só ele é subjugado pelo feitiço de Kundry,
como Klingsor toma-lhe a lança e nele produz um ferimento incurável.
Com profunda infelicidade, Amfortas
retorna ao Castelo de Monsalvat, sofrendo eterno remorso e perpétua agonia pelo
ferimento. Entretanto, como sacerdote-mor, é forçado a celebrar os Ritos Sagrados,
sentindo-se o tempo todo indigno.
Em vão busca desesperadamente
um remédio para a ferida e perdão por seu pecado. Por fim, numa visão, uma voz lhe
proclama que só um “tolo ingênuo” (alguém que ignore o pecado e resista à tentação)
poderá lhe trazer alívio, e que mensageiros celestiais guiarão essa pessoa a Monsalvat.
Inicia-se então a ação da ópera Parsifal.
Parsifal
chega
Ferindo um cisne, sem saber que
este estava sob a proteção do rei, Parsifal
é arrastado por dois cavaleiros ante Gurnemanz (um veterano cavaleiro do Graal),
que o repreende. Essa ação ocorre perto do Castelo de Monsalvat.
Os cavaleiros percebem que Parsifal
pouco sabe sobre si mesmo. Conhecera um cavaleiro chamado Sir Lancelot, na floresta
perto de casa. Contrariando os desejos da mãe, seguira-o até ali. Lembrava-se de
que a mãe chamava-se Herzelied (“Tristeza do Coração”).
Kundry, que entra em cena com
um novo medicamento para a ferida de Amfortas, dá mais informações. O pai do jovem
era Gamuret. Após a morte do pai em batalha, a mãe afastou o filho do convívio dos
homens, para que não tivesse a mesma sina do pai. A mãe já faleceu, e Parsifal era
um andarilho.
Kundry (Kundralina) é o estranho
ser que parece ter duas naturezas. Ela aparece alternadamente como serva devota
do Graal e, sob a influência mágica de Klingsor, como uma mulher de terrível beleza
que, por fascínio, leva à ruína todos os cavaleiros que caem sob seu poder. Essa
maldição é uma punição por um crime que cometera numa existência prévia, quando,
como Herodíade, zombara de Cristo na cruz. Quem a encontre adormecida pode chamá-la
a seu serviço; sob o feitiço de Klingsor, ela é bela; no castelo dos cavaleiros,
ela é como um feio animal. Alguns dos cavaleiros protestam contra sua presença,
mas Gurnemanz a defende.
Ocorre a Gurnemanz que Parsifal
pode ser o tolo ingênuo enviado para curar a ferida de Amfortas. Enquanto conduz
Parsifal ao grande aposento em que o Graal será desvelado no rito anual, Parsifal
é tocado pela beleza e deslumbramento do lugar, e diz: “Eu quase não ando, mas
estranhamente pareço correr”.
Gurnemanz responde: “Meu filho,
percebes que aqui tempo e espaço são unos, e tudo é Deus”.
Parsifal presencia a retirada
do véu do Cálice. O esplendor flamejante do Graal enche o aposento e, enquanto
os cavaleiros e damas ajoelham-se em êxtase, Parsifal contempla o Cálice como se
não fosse tocado pela cena. Mais tarde, interrogado por Gurnemanz, está tão deslumbrado,
que não consegue falar. Enraivecido, Gurnemanz empurra-o para fora do aposento,
e bate a porta, fechando-a.
No mundo de fora, Parsifal resiste
às meninas-flores e rejeita Kundry, então com sedutora beleza. Enraivecido, Klingsor
atira em Parsifal a lança sagrada, que, em vez de feri-lo como fizera com Amfortas,
flutua sobre sua cabeça, e Parsifal dela se apodera. Parsifal expulsa a magia maligna
de Klingsor para sempre. O poder de Klingsor é anulado, e seu palácio entra em total
ruína.
Parsifal
vagueia pelo mundo exterior
Embora Kundry use de magia para
condenar Parsifal a uma vida de perambulação, ele sai pelo mundo não tanto pelo
poder da magia, mas porque ainda tem muito a aprender.
Anos depois, numa bela manhã
de primavera, Sexta-feira da Paixão, aliás, Parsifal regressa. Durante sua ausência,
Amfortas recusava-se a descobrir o Graal, de que os cavaleiros recebiam sustento
e vigor, pois sempre que o fazia a ferida e a agonia voltavam.
Sobre a ferida de Amfortas, Corrine
Heline afirma: “A incurável ferida de Amfortas é o sofrimento do ser humano, provocado
por ele ter caído na vida sensorial – que trouxe consigo necessidades, doença, discórdia,
morte e todos os grandes sofrimentos que pesam sobre os habitantes da terra. Essa
ferida só pode ser curada pela redenção através de purificação da natureza sensorial
inferior e pela transmutação de suas forças nas faculdades da alma”.
Amfortas, em crucial agonia,
delirante, anseia pela morte. Mas é obrigado a viver para cuidar do Graal. Pela
morte do pai, ele é quem deve desvelar o Graal. Como a agonia é maior que suas forças,
roga aos cavaleiros que o matem.
A essa altura Gurnemanz revela
a Parsifal o triste estado dos cavaleiros no castelo. Kundry se encontra no papel
de serva do Castelo do Graal. Ela lava os pés de Parsifal na fonte sagrada, e os
enxuga com os cabelos (reminiscência de Madalena). Parsifal a batiza.
O Graal é desvelado. Kundry morre
ajoelhando-se ante o altar, simbolizando isso a completa e derradeira dedicação
da personalidade ao serviço da alma.
Parsifal, entrando no grande
aposento com Gurnemanz e Kundry, não é percebido. Amfortas está prestes a desvelar
o Cálice; Parsifal toca-lhe a ferida com a lança sagrada, curando-o. Uma pomba branca
desce e paira sobre a cabeça de Parsifal.
O Herói
Parsifal acena suavemente com
o Graal ante os cavaleiros, que estão com os olhos voltados para cima. Gurnemanz
e Amfortas, rei e sacerdote depostos, ajoelham-se ante Parsifal, Rei Sacerdote da
Ordem de Melquisedeque, Senhor das Eras. Parsifal é coroado rei e permanece no castelo
como líder dos cavaleiros.
Temos, assim: (1) A Vinda de
Parsifal; (2) A Tentação de Parsifal; (3) A Coroação de Parsifal. Essa sequência
encontra paralelo nas três etapas dos antigos mistérios. Foi Pitágoras, o grande
filósofo místico do século VI a.C., que apresentou a música e os números como potências
de forças divinas. Os estudantes da escola-templo de Pitágoras passavam por três
Graus sucessivos (Preparação, Purificação, Perfeição), para conseguirem a derradeira
descoberta do centro divino no homem: eles mesmos.
Do ponto de vista místico, portanto,
a ópera de Wagner Parsifal projeta na
era moderna a essência da sabedoria de Pitágoras. Pela luz dessa sabedoria, discernimos
o plano de Wagner, de desvelar o Graal, para trazê-lo à visão humana. A Opera Parsifal ainda é encenada anualmente na Sexta-feira
da Paixão, no Metropolitan Opera House, de Nova Iorque.
Nota: 1.
HELINE, Corinne. Esoteric Music ot Richard
Wagner. Los Angeles: New Age Pres, 1948.
REFERÊNCIA:
CROWLEY, Edna May. Wagner e o Santo Graal. In O Rosacruz. Inverno 2010. n. 272. Curitiba: AMOCR-GLP, 2012. p. 12-17.
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