Claude
Debussy com Erik Satie, em 1910, à Avenue du Bois de Boulogne, Paris
(residência
de Debussy).
Por
Raul Passos, FRC*
Num tempo em que muito se tem
falado sobre os vínculos entre música e esoterismo e sobre a ligação entre
renomados compositores e fraternidades iniciáticas, percebemos quantas vezes os
embasamentos históricos são duvidosos e muitas vezes repousam sobre meras
especulações. Todavia, sabe-se efetivamente do engajamento de ilustres nomes da
música com a Maçonaria. Este é o caso de Mozart (que escreveu inúmeras peças ou
dedicadas à ritualística dos maçons ou com temática maçônica), Beethoven,
Rossini, Liszt, Puccini, Sibelius ( que, a exemplo de Mozart, escreveu música
de inspiração maçônica), Piazzolla e Gershwin (esses dois últimos iniciados em
lojas de Nova Iorque, na primeira metade do século XX). Perguntamo-nos então em
que ponto o pensamento e o misticismo rosacruzes influenciaram igualmente as
personalidades que edificaram a história da nossa música.
Muito se sabe sobre o
vínculo esotérico de Francis Bacon, Comenius, Paracelso, Nicholas Flamel,
Benjamin Franklin, Jacob Boehme e Thomas Jefferson, por exemplo, para ficarmos
mormente no campo gravitacional de filósofos e estadistas. Por outro lado,
vemos pouquíssimas linhas dedicadas a ilustres músicos rosacruzes e, menos
ainda, sobre as páginas artísticas por eles produzidas à luz da inspiração mística.
Por certo, os dois principais nomes ligados ao rosacrucianismo são os de Claude
Debussy (1862-1918) e Erik Satie (1866-1925).
Excêntrico,
porém genial!
Do ponto de vista musical,
Satie é tido historicamente como o grande agitador que inspirou mais de uma
geração de compositores franceses a renovar a manifestação musical de seu país,
naquele momento envenenada pelo excesso de academicismo e dominada pela
influência da ópera. Portador de uma grande carga de gênio, Satie, através de
sua atitude libertária, banhada em um perspicaz humor literário, abriu caminhos
para que outros compositores, mais preparados tecnicamente, produzissem as
obras máximas da música francesa.
O melhor da produção de
Satie encontra-se nas suas miniaturas para piano, onde identificamos sua
genialidade mais completamente manifestada. Era um grande improvisador e suas
criações nasciam normalmente de inspirações súbitas movidas por estímulos
não-musicais. Muitas de suas composições levam títulos humorísticos, mas é
curioso notar, entre suas páginas mais apreciadas, a série de seis peças para
piano que levam o sugestivo nome de Gnosiennes
(que poderíamos livremente traduzir por ‘Gnósticas’) e que automaticamente nos
leva a intuir a preocupação filosófica de Satie, fator igualmente preponderante
em sua criação.
“La
Musique Avant Tout!”
Debussy, por sua vez, é uma
figura mais celebrada e é artisticamente mais representativo. Cabe aqui
mencionarmos alguns aspectos de sua personalidade e de sua obra, que até certo
ponto são indissociáveis. É curioso notar as referências feitas sobre o homem
Debussy através do olhar de alguns de seus ilustres contemporâneos. O
compositor francês é retratado como alguém bastante decepcionado com a raça
humana, e sua tolerância com as “humanidades” foi extinguindo-se conforme foi
envelhecendo. Tanto em sua música como em sua vida, manifestou uma perene
aversão ao supérfluo e a toda ornamentação inútil. Era a exatidão
personificada, conciso no expressar-se e cuidadoso com frases, palavras e
gestos, fossem eles musicais ou não. Segundo o crítico de arte francês Gabriel
Mourey
“Debussy era um ser concentrado que vivia
uma intensa vida interior.”
Nesse sentido, o também compositor
Raymond Bonheur recorda que em Debussy
“não havia traços da vulgaridade comum aos
artistas, nem mesmo aquela ‘amigável camaradagem’ que frequentemente oculta intenções
clandestinas (. . .). Ao mesmo tempo, ele demonstrava uma grande indiferença à opinião
das massas e, sobretudo, um refinado orgulho que não era mais do que a certeza de
estar vivendo de alguma maneira em um plano superior”.
Por outro lado, o compositor
Alfredo Casella deixou um interessante testemunho acerca do Debussy já adulto e
pai:
“Até o fim, Debussy permaneceu aquilo que
os franceses chamam de ‘grand enfant’ (criança grande). Aquela mesma inocência maravilhosa e limpidez de sentimento,
que são a característica fundamental de sita arte, transpareciam em todos os seus
atos e palavras. Com cinquenta anos, ele se divertia mais do que sua pequena filha
Chouchou [Claude-Emma] com os brinquedos que lhe trazia sua mãe.”
Ainda nesse sentido, observamos
esse lado perspicaz, misterioso e algo irônico do compositor quando, a respeito
da composição do ballet “La Boîte à Joujoux”
(A Caixa de Brinquedos), disse ter se inspirado “extraindo confidências de algumas das velhas bonecas da Chouchou”. Essa
pureza infantil foi novamente trazida à tona, em sua personalidade, por sua filha.
Ao lado de suas paixões por literatura e filosofia, por exemplo, figuravam o gosto
pelo circo, pelo teatro de marionetes e pelos livros infantis de figuras.
O compositor e pianista Gabriel
Pierné relata, em seu livro de memórias, que Debussy, já garoto, tinha particular
predileção por objetos delicados, raros, preciosos e diminutos. Possivelmente revela-se
já nessa época o perfeccionista que esculpiria com esmero cada detalhe sonoro de
suas composições mais tardias. Sua irmã Adèle recorda uma criança que “passava dias inteiros sentado e sonhando com
algo que ninguém poderia ter ideia”. Mostrava-se meticuloso na escolha das cores
de tudo o que usava e, ademais, era sensível no mais alto grau: a menor coisa poderia
animá-lo ou então enfurecê-lo, segundo o testemunho de Marguerite Vasnier, a quem
Debussy dedicou algumas de suas canções. Seu temperamento independente e resoluto
igualmente já se manifestava desde a juventude. O músico Paul Vidal, também seu
contemporâneo, relata que “nada exerce qualquer
domínio sobre ele”. Também já cedo, durante sua vida acadêmica no Conservatório
de Paris, manifestou sua atração pela poesia simbolista de Baudelaire, Mallarmé
e Verlaine. Esses poetas seriam referência constante em sua produção musical, tendo
ele musicado algumas das mais sublimes páginas das obras deles. Para ele e para
os poetas simbolistas, a natureza esotérica da arte era uma crença central, quase
dogmática. Baudelaire, particularmente, foi um referencial constante na produção
de Debussy. Recordemos que Les Fleurs du Mal
(As Flores do Mal), obra-prima de Baudelaire, é caracterizada pela exploração deliberada
da dualidade da existência, e que vários poemas dessa obra e de outras criações
de Baudelaire eram recorrentes na criação debussyana. O compositor ainda assistiria
às soirées literárias de Mallarmé, dirigidas
para uma plateia escrupulosamente refinada para apreciação de suas produções inclinadas
ao misticismo. Não causa surpresa o fato de uma das grandes produções de Debussy
para orquestra, Prélude à l’Après-Midi d’un
Faune ter sido inspirada no poema homônimo de Mallarmé.
Em 1895, Debussy terminaria sua
ópera Pelléas et Mélisande, que merece
de nossa parte um olhar mais cuidadoso. De todas as suas composições, essa é a que
sintetiza melhor sua estética e seu ideal. Aqui, Debussy subjuga o ímpeto da emoção
humana à sobriedade da sua refinada e sutil expressão musical. É um retrato do sentimento
humano sem a ação dramática esperada de uma ópera. Sobre essa obra, declarou a cantora
inglesa Mary Garden, que interpretou Mélisande por ocasião da prémiere da obra:
“(. .. ) tive as mais extraordinárias emoções
que já experimentei na vida. Ouvindo aquela música, eu sentia tornar-me alguém mais.
Alguém dentro de mim cuja linguagem e alma eram aparentadas às minhas.”
Sobre o compositor, ela acrescenta
ainda:
“Debussy vivia num mundo tão seu onde ninguém,
mesmo sua esposa Lilly, com todo seu carinho e adoração, poderia alcançá-lo. (...)
Sentava-se ao piano, por uma hora ou mais, e improvisava. Essas horas permanecem
como joias em minha mente. Jamais ouvi uma música assim em minha vida (...). Quão
bela e assombrosa ela era, e ninguém além de Lilly e eu jamais a ouviria. Debussy
nunca pôs essas improvisações no papel: elas voltaram para o estranho lugar de onde
vieram, para nunca retornar. Aquela música preciosa, perdida para sempre, era distinta
de qualquer coisa de Debussy. Havia nela uma qualidade muito sua, remota, de outro
mundo, sempre dizendo algo à margem das palavras.”
Tal era o homem, tal era o compositor.
Seu credo artístico, como ele mesmo professava, era “o prazer é a lei”.
Dois
Iniciados
Debussy e Satie
conheceram-se em 1890 num popular cabaré parisiense chamado “Chat Noir”
(Gato Negro). No ano seguinte, iniciaram-se numa fraternidade rosacruz
intitulada “Ordem Cabalística da Rosacruz”, recém reestruturada em
Paris. Entre aqueles que a reorganizaram, estavam alguns nomes bastante
conhecidos, sobretudo pelos martinistas. De seu Conselho Supremo faziam parte
Stanislas de Guaita, Sâr Joséphin Péladan, o célebre místico Gérard Encausse, conhecido
como Papus, e Augustin Chaboseau. Péladan, que mais tarde deixaria a Ordem por
causa de divergências com Papus e fundaria a “Ordem da Rosacruz do Templo e
do Graal”, defendia a ideia de que a arte tinha uma missão divina e era o
melhor meio de efetivar a reintegração com Deus. A inclinação esotérica de
movimentos artísticos como os pré-rafaelistas e os simbolistas aproximou
Debussy e Satie naturalmente dessas fraternidades. Os artistas que as
integravam buscavam uma reação aos excessos do romantismo e inclinavam-se,
portanto, ao mundo do metafórico e do simbólico, mais naturalmente depurados. O
poeta Charles Baudelaire, por exemplo, iria abraçar as ideias do místico
Emmanuel Swedenborg e aplicá-las na sua produção poética. De uma maneira ou de
outra, todos os grandes artistas que gravitavam em torno desses movimentos e
estavam associados a essas ordens iniciáticas, principalmente Debussy e Satie
na música, eram verdadeiros “místicos da arte”. A realização dos famosos
“Salões da Rosa-Cruz”, marco maior do movimento simbolista, tenha sido talvez a
maior realização de Sâr Péladan nesse sentido.
Lembremos que, nessa. época,
nossa Ordem ainda não se havia organizado/ na estrutura como a conhecemos hoje.
Dentro da fraternidade, Satie viria a desempenhar uma função semelhante à de mestre
de capela, e dessa maneira produziu obras voltadas para a ritualística da Ordem,
como Le Fils des Étoiles (O Filho das
Estrelas), escrita sobre argumento do próprio Sâr Péladan, e Sonneries de La Rose+Croix (Sons da Rosacruz),
que consta de três partes, a saber: Air de
L’Ordre (Ária da Ordem), Air du Grand-Maître
(Ária do Grande Mestre) e Air du Grand-Prieur
(Ária do Capelão). Mais tarde, Satie iria fundar sua própria seita religiosa e aí
continuaria a exercitar as excentricidades em que era pródigo.
Quanto a Debussy, se por um lado
efetivamente não chegou a produzir nenhuma obra intencionalmente esotérica, é evidente
que seu pensamento musical e alguns de seus ideais artísticos e humanos estavam
embebidos de uma filosofia superior, que se não chegou a manifestar-se plenamente
em sua vida pessoal, foi apenas por força de um caráter impulsivamente independente
e por vicissitudes de sua existência material.
Lembremos que Debussy chegou
a defender a ideia da criação de uma “Sociedade de Esoterismo Musical”, numa tentativa
de criar uma música menos acessível às massas que, segundo seu entendimento, eram
incapazes de compreender a verdadeira arte. Indubitavelmente, como em todos os grandes
espíritos, sua genialidade advinha de um hercúleo embate na dualidade da existência
e se operava sob um temperamento algo felino e solitário, que o apartava de seus
iguais. A um tempo forte e sensível, além de extremamente auto-crítico, a exemplo
do que transparece na obra de grandes filósofos e pensadores, sua criação abriga
uma incontestável simplicidade sob o véu da complexidade. Seus ideais, assim como
sua criação artística, jamais se curvaram às necessidades materiais e nunca fizeram
concessão ao gosto popular mediano ou àquilo que fosse simplesmente medíocre.
É notável, e mesmo de cabal importância
para entender sua personalidade e sua obra, admitir essa sua inclinação inelutável
para os estímulos de inspiração encontrados nos mistérios do Oriente, do Egito e
da Grécia Antiga. Prova irrefutável dessa atração são, por exemplo, o balé “Khamma”, ambientado no Antigo Egito e os
prelúdios para piano “Danseuses de Delphes”
(Dançarinas de Delfos) e “Canope”, que
pode remeter tanto a Canopo, deus da mitologia egípcia, à cidade de mesmo nome situada
às margens do Nilo ou ainda à jarra canópica, espécie de vaso funerário utilizado
no Egito dos faraós.
É necessário ainda acrescentar
que, renovando todo um sistema musical arraigado na cultura ocidental, Debussy exige
a mais do ouvinte, no sentido de uma nova percepção do evento musical, e força sua
atenção para a percepção da “música que há além da música”. Reorganizando e re-hierarquizando
os valores sonoros fora dos limites dos arquétipos característicos tradicionais,
sua música provoca o ouvinte e convida as sensibilidades mais aguçadas a experimentar
fenômenos extra-sensoriais promovidos por sua paleta sonora. Não nos causa espanto
perceber que algumas de suas composições, notadamente o célebre “Clair de Lune” e a extasiante “L’Isle Joyeuse” estão perfeitamente construídas
na Proporção Áurea. Nesse sentido, devolve à música sua função primordial e indiretamente
evoca um retorno à natureza, que com muita frequência domina a temática de suas
composições. Em outras palavras, o som, individualizado, readquire sua autonomia
e seu valor intrínseco, semelhante àquele que os rosacruzes atribuem ao som vocálico,
por analogia. Musicalmente falando, com essa atitude Debussy sacramenta o processo
iniciado por Satie e descortina o horizonte para uma nova vanguarda musical.
“Aqueles ao meu redor se recusam a aceitar
que eu jamais poderia viver no mundo cotidiano das coisas e das pessoas. Daí a necessidade
irreprimível que eu tenho de fugir de mim mesmo e sair em aventuras que parecem
inexplicáveis – porque ninguém sabe quem é este homem, que talvez seja a melhor
parte de mim! – Enfim, um artista é, por definição, alguém acostumado a viver entre
sonhos e fantasmas ...”
- CLAUDE DEBUSSY
*Raul Passos é pianista, regente, compositor,
poeta e tradutor. Mestrando em interpretação pianística pela Universidade Nacional
de Música de Bucareste (Romênia), especialista em música francesa para piano da
primeira metade do século XX e pesquisador da URGI nas seções D - Música e K -
Literatura. ·
Bibliografia: NICHOLS,
Roger. Debussy Remembered. Londres. Faber and Faber. 1992; ROBERTS, Paul. Claude
Debussy. Londres. Phaidon Press. 2008; ROBERTS, Paul. lmages: The piano music of
Claude Debussy. Portland. Amadeus Press. 1996; SALZMAN, Eric.
Twentieth Century Music: An lntroduction. New Jersey. Prentice-Hall. 1967.
Discografia
recomendada: SATIE: Sonneries de la Rose+Croix (Oeuvres
Completes), Aldo Ciccolini (piano). EMI Classics; DEBUSSY: Oeuvres Completes pour
Piano, Pascal Rogé (piano). London
Records; DEBUSSY: Pelléas et Mélisande (DVD), Orchestra and Chorus of Welsh National
Opera, Pierre Boulez (regente), Deutsche Grammophon.
REFERÊNCIA:
PASSOS, Raul. Claude Debussy e Erik Satie: compositores
rosacruzes. In O Rosacruz. Primavera 2010. n. 274. Curitiba: AMOCR-GLP, 2010. p. 34-39.
muito bom!
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