Alexander
Scriabin Harvey Spencer Lewis
Por Raul Passos, FRC
Muitos são os paralelos
possíveis de serem traçados entre o misticismo e as artes e muitos autores
consagrados – assim como místicos particularmente inspirados – debruçaram-se
sobre o assunto, indo desde o campo da pesquisa acadêmica ao da fruição mais
singela e espontânea. Curiosamente, independente muitas vezes de contexto
histórico ou de parâmetros de pesquisa, as conclusões (quando existentes)
acabam invariavelmente convergindo para o fato de que ambas as vias –
misticismo e arte – suscitam emoções parecidas no ser e nele reorganizam
elementos internos que possibilitam um melhor entendimento do próprio eu e,
consequentemente, descortinam novos horizontes na senda do autoconhecimento.
Não causa espanto, pois, que
muitos artistas tenham se inclinado seriamente ao misticismo, e que, por sua
vez, místicos e filósofos consagrados tenham manifestado seu interesse – e mesmo
sua versatilidade – no âmbito das artes. Pitágoras, Schumann, Debussy, Satie,
da Vinci, Péladan e uma pequena multidão de compositores do século XX
mostraram uma preocupação considerável para com os elos entre as artes e a
filosofia nas suas mais amplas abordagens, muitas vezes consagrando toda a sua
produção a uma orientação espiritualista.
Pouco lembrado neste rol – e
com frequência negligenciado pelos intérpretes – é o compositor russo
Alexander Scriabin. Figura ímpar na história da música, talvez tenha sido
aquele que mais sincera e honestamente tenha esboçado uma arte com intenções legitimamente
transcendentais. Autor de uma música de verve, inspirada, de complexidade
considerável e alcance técnico ambicioso, Scriabin é um exemplo claro do
casamento plasmado entre o summum bonum
dos ideais artísticos e o mais irreprimível dos desejos de expansão de
consciência.
É bastante curioso o fato de
Scriabin (1872-1915) ter sido contemporâneo quase exato de Harvey Spencer Lewis
(1883-1939) e ter tido algumas ideias bastante semelhantes às do místico
norte-americano. Foram respectivamente, com propriedade de palavra, um místico
da música e um artista do misticismo.
Século
de ruptura
Scriabin foi um dos mais
inovadores e controvertidos compositores do modernismo nascente. A Grande
Enciclopédia Soviética diz a respeito dele: “Nenhum compositor foi mais desprezado e idolatrado...”. Tolstói
definiu a música de Scriabin como “uma
sincera expressão de gênio”. Bastante destacado e independente de certas
tendências reformadoras e mesmo ignorando as inovações musicais promovidas por
Arnold Schoenberg no começo do século XX, Scriabin desenvolveu – e aí mesmo
reside parte substancial de seu misticismo pessoal – um sistema musical
progressivamente atonal que anteviu outras formas de música serialista. Em
termos menos técnicos, ele promoveu uma abertura da linguagem musical análoga
àquela que Debussy silenciosamente operava em Paris na mesma época e à ruptura arquitetada
por Schoenberg em Viena, porém por outra vereda. Em outras palavras, a música que
o século XX começava a redesenhar punha em xeque muitos valores estéticos que vigoravam
até então, chegando mesmo por vezes a aniquilar os princípios formais sobre os quais
a música europeia se edificara ao longo de muitos séculos.
A música de Scriabin evolui gradualmente
ao longo de sua vida, embora esta evolução seja muito rápida e particularmente breve
se comparada à da maioria dos compositores. À parte suas peças juvenis, suas obras
são notadamente originais, sendo que na maturidade e no seu último período composicional
elas passam a ser construídas sobre harmonias e texturas incomuns. Pródigo em sintetizar
contradições, é quase impossível ligá-lo a alguma tradição anterior. O compositor
Aaron Copland elogiava o material temático de Scriabin como sendo “verdadeiramente individual e inspirado”.
É de cabal importância lembrarmos
que toda a música de que dispomos hoje, e nisso inclui-se em grande parte a música
que “consumimos” em nossa vida cotidiana, é fruto direto e indireto desse processo
que eclodiu naquele agitado começo de século.
Vida,
arte e mysterium
Scriabin pode ser considerado
o principal – e quiçá verdadeiramente o único – compositor simbolista russo. Via
a si próprio como uma figura religiosa ou messiânica. Considerado por vezes como
um iluminado, suas ideias eram suficientemente estranhas para desviar sua música
de um grande número de ouvintes – até hoje! Filho de um diplomata expert em línguas
orientais e de uma talentosa pianista, Scriabin era um menino tímido e insondável
com seus colegas, embora apreciador da atenção adulta. Já no Conservatório, após
ser desafiado pelo pianista Josef Lhévinne, lesionou sua mão direita enquanto praticava
peças de extremo virtuosismo. Seu médico atestou que ele jamais se recuperaria,
fato que o levou à composição de sua primeira obra-prima de largo fôlego, a Sonata para Piano n.1 em Fa Menor, a qual
segundo ele próprio constituía “um grito contra
Deus e contra o destino”. Sua mão, contudo, recobraria a saúde mais tarde.
Em 1909, após estadias em Paris
e Bruxelas, ele regressa permanentemente à Rússia, onde começa a trabalhar em projetos
cada vez mais grandiosos, notadamente aqueles unindo música e cor. De fato, influenciado
também pelas doutrinas da Teosofia, ele desenvolveu seu sistema de sinestesia na
direção daquilo que teria sido uma pioneira performance multimídia: seu não-realizado
magnum opus, “Mysterium”, deveria ter sido uma performance de uma semana incluindo
música, dança, luzes e perfumes, o que de alguma maneira, em seu projeto, acarretaria
a dissolução do mundo em êxtase. A execução desta obra duraria sete dias, aconteceria
no sopé do Himalaia e causaria um armageddon.
Vejamos o que o próprio Scriabin disse a respeito:
“uma grandiosa síntese religiosa de todas as artes que seria o arauto do
nascimento de um novo mundo. Sinos suspensos das nuvens convocariam os espectadores.
As auroras seriam prelúdios e os crepúsculos ‘codas’. Chamas irromperiam em raios
de luz e turbilhões de fogo. Perfumes transmutariam e impregnariam a atmosfera”.
Scriabin deixou apenas esboços
desta composição, embora uma parte introdutória dela, chamada L’Acte Préalable (Ato Preparatório) tenha sido posta em cena por Alexander Nemtin e também
executada pelo célebre musicista russo Vladimir Ashkenazy, em Berlim. Mysterium era, psicologicamente, um mundo
que Scriabin havia criado para sustentar sua própria evolução. Segundo o estudioso
Faubion Bowers, por este rito musical, ele pretendia recuperar a história primordial
dos poderes mágicos. O compositor, vitimado por uma septicemia causada por uma banal
picada de inseto, morreria com apenas 43 anos.
Filosofia
e misticismo
Os pensamentos de Scriabin eram
bastante complexos e mesmo tingidos de certo solipsismo. Scriabin visita, em 1900,
a Exposição Universal de Paris (na qual Debussy tomaria contato com a música do
Oriente, fato decisivo para a música do século XX), torna-se membro da Sociedade
de Filosofia de Moscou e mergulha na leitura das antigas filosofias. Em 1902, cansado
das intrigas e ciumeiras do Conservatório de Moscou, pede demissão. A partir de
1904, passa a manter um diário pessoal, onde registra suas reflexões musicais e
filosóficas. Ele teria sido iniciado ao mundo do misticismo pelas mãos de um amigo
seu da nobreza. Também se interessava pela teoria do super-homem de Nietzsche e
posteriormente inclinou-se à Teosofia, fascinando-se pela obra de Helena Blavatsky.
Ambos os pensamentos influenciaram profundamente sua mística pessoal e sua produção
musical. O também teosofista e compositor Dane Rudhyard teria dito que Scriabin
era “o único grande pioneiro da nova música
de uma civilização ocidental renascida; o pai da música do futuro”.
Scriabin desenvolveu seu próprio
misticismo abstrato e pessoal baseado no papel do artista em relação à percepção
do fenômeno da vida. Suas ideias de certo modo assemelham-se aos conceitos platônicos
e aristotélicos. As fontes principais de sua filosofia podem ser encontradas em
seus numerosos diários não publicados, num dos quais ele escreveu sua famosa sentença
“Eu sou Deus”. É difícil precisar o alcance desta afirmação, mas não estaria Scriabin
plenamente convencido e sensível às capacidades latentes do homem – ou do super homem? Nestes cadernos, ao lado de
breves apontamentos, podem-se encontrar complexos diagramas técnicos explicando
sua metafísica. Suas noções filosóficas foram substancialmente traduzidas em música
em obras como as Sonatas para Piano n.7 (Sonata da Luz ou “Missa Branca”) e n.9 (Sonata das Trevas ou “Missa Negra”).
A partir de 1907, a experiência
da sinestesia (correspondência entre fenômenos sensoriais de naturezas diferentes)
passa a ser um fator dominante na produção musical de Scriabin. Inspira-se nos escritos
de Louis-Bertrand Castel (1688-1757), inventor de um instrumento de teclado que
associava cores e sons, e cria um instrumento semelhante, o “clavier à lumiéres” [teclado de luzes], ou ainda Luce (palavra italiana para “luz”).
Vale notar que o instrumento
elaborado por Castel não é o pioneiro do gênero. Ao longo da história, muitos outros
projetos de instrumentos similares foram elaborados, o que comprova o fascínio
que a associação entre som e cor sempre exerceu nas mentes mais curiosas. Como veremos
a seguir, o Luxatone, criado por Harvey
Spencer Lewis, talvez seja o exemplar mais célebre desses inventos.
As
cores da música e a música das cores
Embora se alardeie que muitas
das obras de Scriabin tenham sido compostas à luz da sinestesia, o fato de que Scriabin
realmente assim percebia os estímulos sensoriais permanece não comprovado: ele
se jactava de poder ouvir cores. Seu
sistema de cores corresponde ao que em música se chama “círculo de quintas”: este
conceito já está presente na obra de Isaac Newton intitulada Opticks.
Em sua autobiografia Recollections [Reminiscências], o compositor e pianista russo Sergei Rachmaninov evoca
uma conversa que teve com o também compositor Nikolai Rimsky- Korsakov e com Scriabin
sobre a associação que este último fazia entre cor e música. Rachmaninov surpreendeu-se
ao descobrir que Rimsky-Korsakov concordava com Scriabin a respeito da associação
entre tonalidades musicais e cores; Rachmaninov, ele próprio um cético, evocou
que os dois compositores nem sempre estavam de acordo quanto às cores envolvidas.
Ambos defendiam que a tonalidade de Re Maior correspondia à cor amarela, mas Scriabin
associava Mi Bemol Maior ao vermelho-púrpura ao passo que Rimsky-Korsakov inclinava-se
a favor do azul. Contudo, Rimsky-Korsakov protestou argumentando que uma passagem
da ópera The Miserly Knight, do próprio
Rachmaninov, ratificava o que eles afirmavam: a cena em que o Velho Barão abre as
arcas do tesouro, revelando ouro e joias cintilando à luz de archotes, está escrita
na tonalidade de Re Maior! Scriabin disse a Rachmaninov que “sua intuição inconscientemente seguiu as leis
cuja existência você tentou negar”.
Duas de suas obras, o Poema do Êxtase (1908) e Prometeus: O Poema do Fogo (1910), são dignas
de nossa atenção. Nelas é empregado o teclado de cores projetado por Scriabin.
Este instrumento, tocado como se fosse um piano, projetava luzes coloridas numa
tela disposta na sala de concertos. O teclado de cores original de Scriabin, com
sua mesa giratória de lâmpadas coloridas, está exposto no apartamento que foi habitado
pelo compositor e que hoje é um museu dedicado à sua memória, em Moscou.
Prometeus:
O Poema do Fogo, de fato, através da combinação de sons e cores,
parte em busca de uma liberdade espiritual e do êxtase. Assim, a música de Scriabin
evolui de maneira sempre mais nítida na direção dos aspectos místicos da vida, da
morte e da reencarnação. Quanto ao Poema
do Êxtase, de fato Scriabin pretendia que a performance da obra provocasse um
êxtase místico na audiência. Outros exemplos de obras suas tangidas pelo conceito
de sinestesia são o Poema Divino (1905)
e Vers la Flamme (1914), sobre a qual
disse o pianista russo Vladimir Horowitz: “Scriabin
tinha a excêntrica convicção de que um acúmulo constante de calor causaria finalmente
a destruição do mundo”. O nome da peça efetivamente evoca a ígnea destruição
da Terra: “na direção da chama”.
O
Luxatone do Dr. Lewis
Este complexo instrumento era
formado por uma tela de vidro triangular, luzes nas cores primárias, um jogo de
tubos de vácuo e componentes de rádio no interior do console. Uma vez detectada
a frequência sonora, o circuito a media e acionava as luzes coloridas que se projetavam
na tela, em combinações diferentes conforme a intensidade.
Após a demonstração bem sucedida
de seu invento, Harvey Spencer Lewis publicou um opúsculo a respeito, o qual foi
enviado tanto aos membros da AMORC quanto aos jornais.
Místicos
da arte, artistas do misticismo
Efetivamente, se por um lado
vemos que há algumas diferenças de interpretação dos fenômenos, é espantoso reconhecermos
como ideais e inspirações filosóficos conduziram esses místicos à idealização de
tais experimentos. Sem dúvida, movidos por uma certeza íntima inabalável, lograram
perpetuar e amplificar por meio de suas obras – na música e no misticismo – a aspiração
à suprema meta da existência: a evolução e a compreensão da realidade divina. Concluímos
com um pensamento de Scriabin que sintetiza essa busca:
“Na respiração divina do amor
há o aspecto mais íntimo do universo”.
Bibliografia: The Rosicrucian Salon presents the Mysterious lnventions
of Dr. Lewis. ln http://www. rosicrucians.org/salon/inventions/inventions.html,
acessado em 13/07/2011; BOWERS, Faubion. Scriabin, a biography. New York.
Dover Publications, 1996; GARCIA,
Emanuel E. Scriabin’s Mysterium and the birth of genius. Mid-winter
meeting of the American Psychoanalytic Association. New York, 2005; KELKEL, Manfred.
Alexandre Scriabine: un musicien à la recherche de l’absolu. Paris. Fayard, 1999;
MINDEROVIC, Zoran. Alexander Scriabin biography. ln www.allmusic.com/artist/q7982
, acessado em 14/07/2011; RACHMANINOV, Sergei. Recollections. New York. Macmillan,
1934; SAMSON, Jim. Music in transition: a study of tonal expansion and atonality,
1900-1920. New York. W.W. Norton & Company, 1977; TOMÁS, Lia. The mythical time
in Scriabin. Anais do 5th
Congress of the lnternational Association for Semiotic Studies. Berkeley, 1994.
REFERÊNCIA:
PASSOS,
Raul. Alexander Scriabin, Harvey Spencer Lewis e a música das cores. In O
Rosacruz. Inverno 2012. n. 281. Curitiba: AMOCR-GLP, 2012. p. 26-31.
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