segunda-feira, 22 de janeiro de 2018

ALEXANDER SCRIABIN, HARVEY SPENCER LEWIS E A MÚSICA DAS CORES



Alexander Scriabin                                 Harvey Spencer Lewis



Por Raul Passos, FRC

Muitos são os paralelos possí­veis de serem traçados entre o misticismo e as artes e muitos autores consagrados – assim como místicos particularmente inspirados – debruçaram-se sobre o assunto, indo desde o campo da pesquisa acadêmica ao da fruição mais singela e espontânea. Curiosamente, independente muitas vezes de contexto histórico ou de parâmetros de pesquisa, as conclusões (quando existentes) acabam inva­riavelmente convergindo para o fato de que ambas as vias – misticismo e arte – suscitam emoções parecidas no ser e nele reorgani­zam elementos internos que possibilitam um melhor entendimento do próprio eu e, conse­quentemente, descortinam novos horizontes na senda do autoconhecimento.
Não causa espanto, pois, que muitos artistas tenham se inclinado seriamente ao misticismo, e que, por sua vez, místicos e filósofos consagrados tenham manifestado seu interesse – e mesmo sua versatilidade – no âmbito das artes. Pitágoras, Schumann, Debussy, Satie, da Vinci, Péladan e uma pe­quena multidão de compositores do século XX mostraram uma preocupação considerá­vel para com os elos entre as artes e a filoso­fia nas suas mais amplas abordagens, muitas vezes consagrando toda a sua produção a uma orientação espiritualista.
Pouco lembrado neste rol – e com frequ­ência negligenciado pelos intérpretes – é o compositor russo Alexander Scriabin. Figura ímpar na história da música, talvez tenha sido aquele que mais sincera e honestamente tenha esboçado uma arte com intenções le­gitimamente transcendentais. Autor de uma música de verve, inspirada, de complexidade considerável e alcance técnico ambicioso, Scriabin é um exemplo claro do casamento plasmado entre o summum bonum dos ideais artísticos e o mais irreprimível dos desejos de expansão de consciência.
É bastante curioso o fato de Scriabin (1872-1915) ter sido contemporâneo quase exato de Harvey Spencer Lewis (1883-1939) e ter tido algumas ideias bastante seme­lhantes às do místico norte-americano. Foram respectivamente, com propriedade de palavra, um místico da música e um artista do misticismo.

Século de ruptura

Scriabin foi um dos mais inovadores e controvertidos compositores do modernismo nascente. A Grande Enciclopédia Soviética diz a respeito dele: “Nenhum compositor foi mais desprezado e idolatrado...”. Tolstói definiu a música de Scriabin como “uma sincera expressão de gênio”. Bastante destacado e independente de certas tendências reformadoras e mesmo ignorando as inovações musicais promovidas por Arnold Schoenberg no começo do século XX, Scriabin desenvolveu – e aí mesmo reside parte substancial de seu misticismo pessoal – um sistema musical progressivamente atonal que anteviu outras formas de música serialista. Em termos menos técnicos, ele promoveu uma abertura da linguagem mu­sical análoga àquela que Debussy silenciosamente operava em Paris na mesma época e à ruptura arquitetada por Schoenberg em Viena, porém por outra vereda. Em outras palavras, a música que o século XX começava a redesenhar punha em xeque muitos valores estéticos que vigora­vam até então, chegando mesmo por vezes a aniquilar os princípios formais sobre os quais a música europeia se edificara ao longo de muitos séculos.
A música de Scriabin evolui gradualmen­te ao longo de sua vida, embora esta evolução seja muito rápida e particularmente breve se comparada à da maioria dos compositores. À parte suas peças juvenis, suas obras são nota­damente originais, sendo que na maturidade e no seu último período composicional elas passam a ser construídas sobre harmonias e texturas incomuns. Pródigo em sintetizar contradições, é quase impossível ligá-lo a alguma tradição anterior. O compositor Aaron Copland elogiava o material temático de Scriabin como sendo “verdadeiramente individual e inspirado”.
É de cabal importância lembrarmos que toda a música de que dispomos hoje, e nisso inclui-se em grande parte a música que “con­sumimos” em nossa vida cotidiana, é fruto direto e indireto desse processo que eclodiu naquele agitado começo de século.

Vida, arte e mysterium

Scriabin pode ser considerado o principal – e quiçá verdadeiramente o único – compositor simbolista russo. Via a si próprio como uma figura religiosa ou messiânica. Considerado por vezes como um iluminado, suas ideias eram suficientemente estranhas para desviar sua música de um grande número de ouvin­tes – até hoje! Filho de um diplomata expert em línguas orientais e de uma talentosa pia­nista, Scriabin era um menino tímido e insondável com seus colegas, embora apreciador da atenção adulta. Já no Conservatório, após ser desafiado pelo pianista Josef Lhévinne, lesionou sua mão direita enquanto praticava peças de extremo virtuosismo. Seu médico atestou que ele jamais se recuperaria, fato que o levou à composição de sua primeira obra-prima de largo fôlego, a Sonata para Piano n.1 em Fa Menor, a qual segundo ele próprio constituía “um grito contra Deus e contra o destino”. Sua mão, contudo, recobra­ria a saúde mais tarde.
Em 1909, após estadias em Paris e Bruxelas, ele regressa permanentemente à Rússia, onde começa a trabalhar em projetos cada vez mais grandiosos, notadamente aqueles unindo música e cor. De fato, influenciado também pelas doutrinas da Teosofia, ele desenvolveu seu sistema de sinestesia na direção daquilo que teria sido uma pioneira performance multimídia: seu não-realizado magnum opus, “Mysterium”, deveria ter sido uma performance de uma semana incluindo música, dança, luzes e perfumes, o que de alguma maneira, em seu projeto, acarretaria a dissolução do mundo em êxtase. A execução desta obra duraria sete dias, aconteceria no sopé do Himalaia e causaria um armageddon. Vejamos o que o próprio Scriabin disse a respeito:
uma grandiosa síntese religiosa de todas as artes que seria o arauto do nascimento de um novo mundo. Sinos suspensos das nuvens convocariam os espectadores. As auroras seriam prelúdios e os crepúsculos ‘codas’. Chamas irromperiam em raios de luz e tur­bilhões de fogo. Perfumes transmutariam e impregnariam a atmosfera”.
Scriabin deixou apenas esboços desta composição, embora uma parte introdu­tória dela, chamada L’Acte Préalable (Ato Preparatório) tenha sido posta em cena por Alexander Nemtin e também executada pelo célebre musicista russo Vladimir Ashkenazy, em Berlim. Mysterium era, psicologicamente, um mundo que Scriabin havia criado para sustentar sua própria evolução. Segundo o estudioso Faubion Bowers, por este rito mu­sical, ele pretendia recuperar a história pri­mordial dos poderes mágicos. O compositor, vitimado por uma septicemia causada por uma banal picada de inseto, morreria com apenas 43 anos.

Filosofia e misticismo

Os pensamentos de Scriabin eram bastante complexos e mesmo tingidos de certo solip­sismo. Scriabin visita, em 1900, a Exposição Universal de Paris (na qual Debussy tomaria contato com a música do Oriente, fato de­cisivo para a música do século XX), torna­-se membro da Sociedade de Filosofia de Moscou e mergulha na leitura das antigas filosofias. Em 1902, cansado das intrigas e ciumeiras do Conservatório de Moscou, pede demissão. A partir de 1904, passa a manter um diário pessoal, onde registra suas reflexões musicais e filosóficas. Ele teria sido iniciado ao mundo do misticismo pelas mãos de um amigo seu da nobreza. Também se interessava pela teoria do super-homem de Nietzsche e posteriormente inclinou-se à Teosofia, fascinando-se pela obra de Helena Blavatsky. Ambos os pensamentos influen­ciaram profundamente sua mística pessoal e sua produção musical. O também teosofista e compositor Dane Rudhyard teria dito que Scriabin era “o único grande pioneiro da nova música de uma civilização ocidental renasci­da; o pai da música do futuro”.
Scriabin desenvolveu seu próprio misti­cismo abstrato e pessoal baseado no papel do artista em relação à percepção do fenômeno da vida. Suas ideias de certo modo asseme­lham-se aos conceitos platônicos e aristo­télicos. As fontes principais de sua filosofia podem ser encontradas em seus numerosos diários não publicados, num dos quais ele escreveu sua famosa sentença “Eu sou Deus”. É difícil precisar o alcance desta afirmação, mas não estaria Scriabin plenamente conven­cido e sensível às capacidades latentes do ho­mem – ou do super homem? Nestes cadernos, ao lado de breves apontamentos, podem-se encontrar complexos diagramas técnicos ex­plicando sua metafísica. Suas noções filosó­ficas foram substancialmente traduzidas em música em obras como as Sonatas para Piano n.7 (Sonata da Luz ou “Missa Branca”) e n.9 (Sonata das Trevas ou “Missa Negra”).
A partir de 1907, a experiência da si­nestesia (correspondência entre fenômenos sensoriais de naturezas diferentes) passa a ser um fator dominante na produção musical de Scriabin. Inspira-se nos escritos de Louis­-Bertrand Castel (1688-1757), inventor de um instrumento de teclado que associava cores e sons, e cria um instrumento semelhante, o “clavier à lumiéres” [teclado de luzes], ou ainda Luce (palavra italiana para “luz”).
Vale notar que o instrumento elaborado por Castel não é o pioneiro do gênero. Ao longo da história, muitos outros projetos de ins­trumentos similares foram elaborados, o que comprova o fascínio que a associação entre som e cor sempre exerceu nas mentes mais curiosas. Como veremos a seguir, o Luxatone, criado por Harvey Spencer Lewis, talvez seja o exemplar mais célebre desses inventos.

As cores da música e a música das cores

Embora se alardeie que muitas das obras de Scriabin tenham sido compostas à luz da sinestesia, o fato de que Scriabin realmente assim percebia os estímulos sensoriais per­manece não comprovado: ele se jactava de poder ouvir cores. Seu sistema de cores cor­responde ao que em música se chama “círcu­lo de quintas”: este conceito já está presente na obra de Isaac Newton intitulada Opticks.
Em sua autobiografia Recollections [Reminiscências], o compositor e pianista russo Sergei Rachmaninov evoca uma con­versa que teve com o também compositor Nikolai Rimsky- Korsakov e com Scriabin sobre a associação que este último fazia entre cor e música. Rachmaninov surpreendeu-se ao descobrir que Rimsky-Korsakov concordava com Scriabin a respeito da as­sociação entre tonalidades musicais e cores; Rachmaninov, ele próprio um cético, evo­cou que os dois compositores nem sempre estavam de acordo quanto às cores envol­vidas. Ambos defendiam que a tonalidade de Re Maior correspondia à cor amarela, mas Scriabin associava Mi Bemol Maior ao vermelho-púrpura ao passo que Rimsky­-Korsakov inclinava-se a favor do azul. Contudo, Rimsky-Korsakov protestou argu­mentando que uma passagem da ópera The Miserly Knight, do próprio Rachmaninov, ratificava o que eles afirmavam: a cena em que o Velho Barão abre as arcas do tesouro, revelando ouro e joias cintilando à luz de archotes, está escrita na tonalidade de Re Maior! Scriabin disse a Rachmaninov que “sua intuição inconscientemente seguiu as leis cuja existência você tentou negar”.
Duas de suas obras, o Poema do Êxtase (1908) e Prometeus: O Poema do Fogo (1910), são dignas de nossa atenção. Nelas é em­pregado o teclado de cores projetado por Scriabin. Este instrumento, tocado como se fosse um piano, projetava luzes coloridas numa tela disposta na sala de concertos. O teclado de cores original de Scriabin, com sua mesa giratória de lâmpadas coloridas, está exposto no apartamento que foi habita­do pelo compositor e que hoje é um museu dedicado à sua memória, em Moscou.
Prometeus: O Poema do Fogo, de fato, através da combinação de sons e cores, parte em busca de uma liberdade espiritual e do êxtase. Assim, a música de Scriabin evolui de maneira sempre mais nítida na direção dos aspectos místicos da vida, da morte e da re­encarnação. Quanto ao Poema do Êxtase, de fato Scriabin pretendia que a performance da obra provocasse um êxtase místico na audi­ência. Outros exemplos de obras suas tangi­das pelo conceito de sinestesia são o Poema Divino (1905) e Vers la Flamme (1914), so­bre a qual disse o pianista russo Vladimir Horowitz: “Scriabin tinha a excêntrica con­vicção de que um acúmulo constante de calor causaria finalmente a destruição do mundo”. O nome da peça efetivamente evoca a ígnea destruição da Terra: “na direção da chama”.

O Luxatone do Dr. Lewis

Este complexo instrumento era formado por uma tela de vidro triangular, luzes nas co­res primárias, um jogo de tubos de vácuo e componentes de rádio no interior do conso­le. Uma vez detectada a frequência sonora, o circuito a media e acionava as luzes coloridas que se projetavam na tela, em combinações diferentes conforme a intensidade.
Após a demonstração bem sucedida de seu invento, Harvey Spencer Lewis publicou um opúsculo a respeito, o qual foi enviado tanto aos membros da AMORC quanto aos jornais.

Místicos da arte, artistas do misticismo

Efetivamente, se por um lado vemos que há algumas diferenças de interpretação dos fenômenos, é espantoso reconhecer­mos como ideais e inspirações filosóficos conduziram esses místicos à idealização de tais experimentos. Sem dúvida, movidos por uma certeza íntima inabalável, logra­ram perpetuar e amplificar por meio de suas obras – na música e no misticismo – a aspiração à suprema meta da existência: a evolução e a compreensão da realidade divina. Concluímos com um pensamento de Scriabin que sintetiza essa busca:
“Na respiração divina do amor há o aspec­to mais íntimo do universo”.

Bibliografia: The Rosicrucian Salon presents the Mysterious lnventions of Dr. Lewis. ln http://www. rosicrucians.org/salon/inventions/inventions.html, acessado em 13/07/2011; BOWERS, Faubion. Scriabin, a biography. New York. Dover Publications, 1996; GARCIA, Emanuel E. Scriabin’s Mysterium and the birth of genius. Mid-winter meeting of the American Psychoanalytic Association. New York, 2005; KELKEL, Manfred. Alexandre Scriabine: un musicien à la recherche de l’absolu. Paris. Fayard, 1999; MINDEROVIC, Zoran. Alexander Scriabin biography. ln www.allmusic.com/artist/q7982 , acessado em 14/07/2011; RACHMANINOV, Sergei. Recollections. New York. Macmillan, 1934; SAMSON, Jim. Music in transition: a study of tonal expansion and atonality, 1900-1920. New York. W.W. Norton & Company, 1977; TOMÁS, Lia. The mythical time in Scriabin. Anais do 5th Congress of the lnternational Association for Semiotic Studies. Berkeley, 1994.

REFERÊNCIA:
PASSOS, Raul. Alexander Scriabin, Harvey Spencer Lewis e a música das cores. In O Rosacruz. Inverno 2012. n. 281. Curitiba: AMOCR-GLP, 2012. p. 26-31.



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