terça-feira, 17 de outubro de 2017

SÓ QUEM AMA É QUE VIVE





SÓ QUEM AMA É QUE VIVE
Contos de amor de Hermann Hesse

Por Volker Michels

Em 1904 Walther Rathenau dizia que nas descrições de Hermann Hesse havia um “tom de verdade, de sentimentos e ideias, também mais conhecido e usual, renovado e enobrecido”. Esta expressão encontra-se na única crítica de livros que o futuro ministro dos Negócios Estrangeiros da República de Weimar escreveu no decurso de sua vida. Referia-se ao primeiro romance de Hesse, Peter Camenzind e mandou transcrever neste volume algumas histórias de amor. Porque, como tudo o que é positivo na vida, também o conceito do amor é banalizado e mal usado face ao rasto de baba que os hits, a publicidade e a imprensa sensacionalista espalharam diariamente sobre isto. E assim, aqui como em todo o lado onde queremos voltar a encontrar os nossos sentimentos, os seus abismos e as suas alturas de uma forma autêntica, devemos dar a palavra aos artistas que regeneram conceitos estafados através de descrições de primeira água, dizendo de uma maneira o que é evidentemente conhecido como se isso nunca tivesse sido dito – e assim tornando de novo credível a sua original força e dignidade.
Para um poeta como Hermann Hesse, para quem a “fantasia e a intuição não são outra coisa senão formas de amor”, o espectro daquilo que pode significar o amor é naturalmente muito maior do que até então se entendeu que era. Toda a sua obra resulta desse impulso, os romances, os contos, poemas, observações, pensamentos, não menos do que milhares de críticas de livros, respostas a cartas de leitores, mas também as suas aguarelas, que ele considerou serem explicações de amor pela sua terra de eleição em Tessin, ou a assistência que prestava, o auxílio a emigrantes, a colegas e refugiados durante e depois das duas guerras. Porque o “sentido só da forma à vida através do amor”, escreveu ele em 1956 a uma leitora, “ou seja:  quanto mais formos capazes de amar e de nos darmos, mais sentido toma a nossa vida”.
Dentro desta variedade social do amor encontra-se a variedade privada e de camaradagem, cujos êxitos ou fracassos estão intimamente ligados com a outra. Quanto mais preenchida for a relação pessoal, tanto menos precisa de se compensar por outro lado e de ser sublimada, e desta maneira a realização pessoal e a felicidade são em regra auto-suficientes e mudos, enquanto se espalha o fracasso e a infelicidade. A literatura mundial está cheia de descrições de relações amorosas repletas de erros. Mas descrições que nos fazem participar na felicidade são insuficientes.
Também as histórias de amor de Hermann Hesse não são nenhuma excepção. Conhecia desde cedo a experiência de “Tonio Kröger” de Thomas Mann, que afirmava que quem amasse estava condenado ao colapso e ao sofrimento. Especialmente as histórias dos primeiros quinze anos da sua actividade de escritor tratam esse tema, tal como os romances que surgiram nesse período, Peter Camenzind, Unterm Rad, Gertrud e Rosshalde, enuquanto as obras da segunda metade da sua vida Klingsors letzter Sommer, Siddhartha, Des Steppenwolf, Narziss und Goldmund ganham outras facetas para o tema. Só na obra da velhice de Hesse, Das Glasperlenspiel, é que o amor entre os sexos já não desempenha nenhum papel (mesmo no último capítulo em Indischen Lebenslauf).
“No amor”, diz-se num dos seus primeiros contos, “toda a gente começa, mesmo os mais felizes, com uma derrota”. Estas experiências do primeiro amor são as que Hesse não larga e que guarda com uma exactidão cheia de alma. Como o estudante de latim, Karl Bauer, após o seu encontro com a loura Tine, se afasta de repente do grupo de adolescentes em risco, desanima completamente e começa de novo, na “nuvem de sonho da sua paixão”, a tocar violino, como a sua vontade sedenta de renome esmorece subitamente e um sorriso de rapariga “passa a ser para ele uma oferta inestimável e cada um dos olhares dela se transforma em chama que o rodeia com brilho e amor”, tem qualquer coisa de protótipo.
Não só a saída na maior parte das vezes deprimente dá um encanto melancólico a estas descrições, como também da mesma maneira o narrador sabe apresentar a repentina exposição do namorado, a desestabilização impetuosa do seu íntimo, em que tudo o que anteriormente parecia estar num equilíbrio doloroso, tudo virado ao avesso penetra o campo magnético de uma outra pessoa, sem saber se a própria irradiação é a catástrofe ou se apenas actua revulsivamente.
Como tudo o que é garrido e impertinente foge aos admiradores de Hesse e um acanhamento nervoso os impede de exprimir a sua tendência de uma maneira diferente do modo como a sentem, correm o perigo de não serem notados pelos amantes. Porque, falar com as raparigas, por quem estão apaixonados, é-lhes mais difícil do que falar com qualquer outra pessoa. O que experimentam face à beleza da parceira do seu desejo, que sentem como sendo perfeita: a necessidade de também pelo seu lado fazer justiça a esta perfeição, é um processo interior que raramente se exprime despreocupadamente.
O facto de a correspondência visivelmente aparente entre a beleza exterior e interior poder enganar – portanto a esperança de que à tendência própria sentida como o seu melhor Eu tenha de responder o melhor Eu da amada, pertence às lições de desilusão que não são poupadas nos jovens de Hesse (como por exemplo em Hans Amstein), mas como sempre estas paixões desaparecem, para o atingido volta tudo a correr de novo em mudança radical e em situação de prova. Dá asas, impele-o para modificações e para a expressão. O amor tornou-se para ele o estímulo para o crescimento interno e desemboca no fim dos desenvolvimentos mais diversificados, as histórias de amor de Hesse correm para a experiência que nunca é resignada do artista: “Não é uma felicidade ser amado,... mas amar, isso é que é a felicidade.” O homem criativo deveria “manter o seu amor tão livre quanto possível, para o poder oferecer em qualquer altura”.
Nos contos como Taedium Vitae Hesse apresentou tanto o súbito como também o feitiço deste processo: “Mal a vi e já a sua estrela se elevava em mim, que compreendi no coração a sua elegante figura e beleza íntima e inocente e senti a melodia que a envolvia e em que ela se movimentava... Havia lá outras senhoras, mais esplendorosas e prometedoras em madura magnificência e outras espertas com olhos penetrantes, mas nenhuma tinha tal aroma e nenhuma estava envolta em  música mais suave.” Inesquecível nestas descrições como penetrante na sua expressão, é a maneira como uma pessoa até então indiferente se torna, no campo magnético da simpatia numa parte do seu próprio Ser que pode inesperadamente doer e fazer sofrer.
A história Lua de Feno descreve com exacta precisão o que se segue a isso: “Tinha a sensação de lhe tirarem o ar lentamente, lentamente, até sufocar. Só que era agradável, de uma maneira dolorida e triste era agradável... Ele mal podia respirar, tão forte lhe batia o coração, e todo o corpo ardia e regelava ao mesmo tempo... Uma pressão e uma leve tontura na cabeça, um calor na garganta, e um bater especial, desigual, entorpecedor do coração como se tivesse o pulso ligado. Mas era agradável, por muita dor que causasse.”
Em Unterm Rad, um dos poucos romances do princípio, onde se chega a um laivo de contra-amor, Hesse continua: “Tantas vezes (a mão dele tocava na dela) assim o coração lhe parava em angustiosa volúpia e dominava-o uma bem doce fraqueza, de tal modo que os joelhos lhe tremiam um pouco e na cabeça ressoava um zumbido de vertigem... Tudo estava como que mudado. As pessoas e a actividade em redor tinham desaparecido numa nuvem coloridamente ridente. As vozes individuais, as pragas e os risos esmoreciam todos num bramido turvo e geral, o rio e a velha ponte pareciam estar longe e como que pintados... Um forte arrepio percorreu-lhe o corpo quando tocou, com lábios tímidos, a boca da rapariga. Estremeceu de novo momentaneamente, mas ela tinha-lhe pegado na cabeça com as mãos, pressionou o rosto no dele e não lhe largou os lábios. Ele sentiu a boca dela a arder, sentiu-a comprimir-se e sugar avidamente como se lhe quisesse beber a vida. Uma profunda fraqueza dominou-o,... em tumulto escutou o seu próprio sangue, que lhe martelava a cabeça em ondas desiguais e dolorosas vindas do coração e para lá voltando e que lhe tiravam a respiração.”
Na história do Estudante de Latim chega-se apenas a tímidos contactos, mas com um resultado não menos eficaz: “Ele foi-se embora feliz, com passo leve e calmo, como se a estrada asfaltada fosse um suave relvado, e com olhos cegos, virados para dentro, como se saísse de uma terra de luz ofuscante. Mal tinha falado com ela, mas tinha-a tratado por tu, e ela a ele, tinha segurado na mão dela e ela tinha-lhe acariciado o cabelo com a mão. Isto parecia-lhe mais do que suficiente, e mesmo passados muitos anos sentia, sempre que pensava naquela noite, uma felicidade e um bem-estar agradecido encherem a sua alma com um clarão.”
Na maior parte destas histórias o narrador ou o jovem de quem se fala tem entre os doze e os vinte e quatro anos. Cerca de metade têm como cenário as duas últimas décadas do século passado num ambiente de cidadezinha do sul da Alemanha, cujo quotidiano e aroma elas preservam tal como os costumes e as maneiras de então. O que a aldeiazinha Illier da França significa para Marcel Proust, que metrópoles como Dublin ou Praga significam para James Joyce e Franz Kafka, assim era para Hermann Hesse a cidadezinha da Suábia chamada Calw, cujos três mil habitantes viviam na altura do comércio de panos e de madeira e que, devido à sua situação ao longo do pequeno rio Nagold propiciava a existência de todo o género de moinhos e de fábricas de curtumes, aos quais deve o nome de “Gebersau” com que aparece nestas histórias. Com uma clareza cheia de amor transmitem “um pedaço inesquecível da pequena Alemanha, um quadro de Spitzweg e (então) simultaneamente cheios de pura música como uma canção tradicional”. (Stefen Zweig) O idílico e o spitzweguiano são amaciados pelas descrições naturalistas das ordens da hierarquia e do acotovelamento nas firmas industriais e os não menos realistas quadros do fim do dia de trabalho da gente simples, como o Hesse de 17 anos conheceu ali em 1894/95 durante os 15 meses de aprendiz de serralheiro. Quadros da natureza cheios de alegria dos sentidos correspondem organicamente às sensações entre os sexos. Ambas as coisas, o corte vital da assim chamada puberdade como a estrangulada liberdade de movimentos de há cem anos, impregna esses contos. O ambiente é histórico, mas os fenómenos não são.
A situação de paixão, os acanhados avanços para o mundo completamente diferente e muito ambicionado do parceiro, o ímpeto irresistível para a aproximação não pode ser mais vivo dos nossos dias. Mas a apresentação da consumpção que hoje nos proporciona a liberdade sexual, permanece aqui comparativamente impessoal, se comparada com o que acontece no antecampo de encontros eróticos. Em Hesse a tensão, a sensação de felicidade, a intensificação de todas as percepções sensoriais antes da união dos sexos mal é ultrapassada pela embriaguez da realização. Hesse é atraído não pela dimensão física, mas sim espiritual, cujas energias pretende libertar. O estádio da sua erupção agrilhoa-o mais do que os obstáculos que dificultam o seu desenvolvimento. Isto torna as suas descrições menos afins a histórias de amor do que a histórias de namoro segundo a divisa do seu célebre poema “Stufen”: “Em cada começo existe bem dentro um encantamento...”
Não que não existam maneiras físicas do amor. Ele retrata-as na lenda Siddhartha escrita duas décadas mais tarde como aventura com regras superindividuais.
Siddhartha é iniciado pela prostituta Kamala nas artes da doação física: “Muito lhe ensinou a sua boca vermelha. Muito lhe ensinou a sua mão delicada e insinuante. Lançá-lo a ele, que para o amor ainda era um rapaz e que para tal tendia, às cegas e insaciavelmente no prazer como se fosse um abismo sem fundo, e aprendeu com esses ensinamentos, que não é possível ter prazer sem o dar também, e que cada gesto, cada carícia, cada toque, cada olhar, cada pequenina parte do corpo tem o seu segredo e que acordá-lo causa prazer a quem sabe. Ela ensinou-lhe que os namorados não se devem separar depois de uma festa de amor sem se admirarem um ao outro e assim estarem vencidos com também terem vencido, de tal modo que em nenhum deles apareça a saciedade e o aborrecimento e terem abusado do mau sentimento e de terem sido abusados.”
Nos contos de Hesse encontramos as maiores constelações e graus de desenvolvimento do amor. Como muitas delas, como Siegfried Greinar anotou na sua documentação sobre “A Juventude de Hermann Hesse em Calw” se prendem a acontecimentos reais, muitas até são experiências próprias transformadas em larvas que facilmente se percebem, revelam por um lado o caso especial do escritor, mas ao mesmo tempo, como sempre em Hesse, também padrões de vida e de comportamento que são reconhecidos por muitas pessoas. Revelam a premente impaciência e inclinação do namoro em imaginar raptos e feitos de herói, que quanto mais ousados são mais desesperado parece o pedido de casamento. Retratam a disposição idealística de assumir todos os riscos para impressionar a amada e lhe poder comprovar a seriedade e a exclusividade da entrega, como Peter Camenzind que vai buscar a sua amada ao cume mais alto da serra correndo perigo de vida ou como o músico Kuhn no romance Gertrud, que, para satisfazer um capricho da sua desejada Liddy, se envolve numa prova de coragem arriscada que lhe provoca uma deficiência por toda a vida. Outras historias, a necessidade sonhadora do jovem, “de erguer um altar no coração, onde a chama arde tanto mais quanto mais triste for o caso de amor” o impulso, portanto, para compreender a pureza da sua inclinação “sorrindo com um punhal no coração” como sendo um “martírio excepcional” e para pôr a amada num pedestal em “adoração purificadora”, até ele mais tarde ou mais cedo poder reconhecer o seu “papel dolorosamente cómico de bobo”. Mas também acontece o contrário como da dupla tempestade O Ciclone onde o Eu/narrador luta contra a ideia de deixar que a rapariga lhe ofereça “a felicidade já pronta e sem ser merecida” e de entregar a uma rapariga que não é de facto sua namorada “a sua juventude e o seu orgulho”.
Outras histórias (como Sobre os dois beijos, Vítima de amor, O estágio de Hans Dierlamm) mostram os infernos do ciúme e o componente anárquico de uma servidão, que pode levar os amantes a perderem o controlo sobre si próprios, “pendurar no cabine mais próximo a sua profissão e cometer todas as boas e más acções”. Amor vendido (A serração de mármore), amor por piedade ou paixão sem inclinação (O Ciclone), coqueteria com o amor por vaidade ou passatempo sádico (Hans Amstein) são outras variantes do tema. Mas também o tipo do Don Juan, do virtuoso galã dos sentimentos se encontra num dos poucos contos que não contêm elementos biográficos. É a história da Conversão de Casanova, em que se relata engenhosamente um episódio tirado das Memórias do sabido praticante da arte de seduzir com as datas correctas. Muito do que lá está é pura invenção como por exemplo o namoro com as filhas do dono da estalagem em Donaueschungen (Fürstenberg) e é muito mais divertido do que o original. Porque com uma imponderabilidade que é muito invulgar em Hesse encontramos o rotineiro do jogo do amor “a quem falta qualquer coisa para o amor que não é uma brincadeira” caracterizado de uma maneira irónica semelhante à barroca alegria de viver do abade do convento de Einsielen, que não sabe apreciar apenas as suas trutas lacadas como sendo prato de jejum. (Também em Hesse são mais realistas as noções de distância, se bem que o passeio de Zurique ao convento fosse de cerca de 50 km e portanto teria sido bem difícil a Casanova fazê-lo em uma hora.)
Variações semelhantes de temas históricos são romances e lendas como Jogo de Sombras e Chagrin d’amour, uma história de trovadores acerca de Herzeloyde a futura mãe de Parcifal, e da origem da canção popular francesa “Plaisir d’amour” que foi redescoberta nos anos 70 pela cantora Joan Baez. Como do duelo histórico do violento Gachmuret pela bela rainha Herzeloyde nada resta, séculos volvidos, a não ser a lamentação do trovador Marcel, que não tinha qualquer esperança, isto deve ter sido para um poeta como Hesse um motivo de grande afinidade.
Ainda há muitas outras constelações de amor, como o destino tragicómico do canhestro comerciante Ohngelt no conto O Noivado, cujos olhos só se abrem para o que está mais perto dele depois de muitas humilhações: a afeição de uma rapariga comum, cuja esperteza da vida prática o ajuda mais do que as exigentes predileções dos seus sonhos.
A maneira curiosa com que dois amigos tentam esconder um do outro, no gracioso conto A não fumadora, a sua inclinação para com uma companheira de viagem, radica num acontecimento autêntico que Hesse viveu em Abril de 1913 com o compositor Othmar Schoeck e que confirma a sua declaração de se ter apaixonado facilmente e muitas vezes sem que as mulheres tivessem dado por isso.
Também o conto A Noiva tem as suas raízes na experiência de uma viagem e revela a desilusão que uma paixão pode enfrentar após uma longa separação. O seu final tragicómico presenciou-o Hesse em 23.11.1911 no porto de Colombo no início da sua viagem à Indonésia. Entre as muitas delicadas histórias de amor, esta drasticamente descrita em tom burlesco, não é para toda a gente e por isso não conseguiu publicar logo este texto.
Pelo contrário, o casamento não é nunca o tema das suas histórias de amor. O facto de ele o poupar não parece estranho a quem conhece a sua biografia, mas ele próprio fugiu ao juramento “até que a morte nos separe” perante cada um dos seus três casamentos. Nenhum destes casamentos, que foram para ele difíceis “tentativas de compromisso com a burguesia” foi cortado por ele. De todas as vezes foi a mulher (ou os pais dela) que o levou a isso, porque tentou amarrar o artista que havia nele, cujo meio de produção é manter vivo e, com a ajuda do amor, poder transformar-se constantemente, com a finalidade de o levar pela arreata. Assim resume ele numa carta de Novembro de 1929 ao seu filho Bruno: “Para o artista, em especial para o homem dotado e criativo, o casamento é quase sempre uma desilusão. No melhor dos casos é uma desilusão suportável e lenta, com que o homem se enfrenta, mas morre sem muito sofrimento, um bocado de alma e de força de vida a menos, e ficamos cada vez mais pobres, enquanto depois de vivermos uma verdadeira e grande dor ficamos mais ricos.”
Hesse expôs-se totalmente a essas dores produtivas, principalmente nas décadas do seu primeiro casamento. São relatadas em contos como Taedium Vitae, que decorre no meio intelectual da Suábia, que Hesse freqüentou muitas vezes de 1907 a 1911 como editor das revistas Simplicissimus e März. “Porque estás tão morto? Quando é que foste jovem pela última vez” pergunta-se o Eu-narrador de trinta anos, que a rotina com que conta de antemão da sua existência demasiadamente planificada oprime. Só o encontro com a Maria, estudante de artes decorativas de Munique lhe dá a sensação de “voltar a ter dezenove anos e incólume” andar sobre os próprios pés em vez de deslizar por carris, e a esperança de voltar a poder guiar a sua vida no meio da corrente. “Ao esposo” escreveu Hesse já em 1904 depois do seu primeiro casamento, “pertencem talentos que nós não temos...” A pessoa está mesmo amarrada, mesmo que seja “só” moralmente. Estas algemas do casamento são o tema de um romance, Rosshalde, do único livro em que Hesse apresentou um casamento para se esclarecer sobre “se um artista, que não quer viver a vida apenas instintivamente, mas acima de tudo observá-la e descrevê-la com objectividade, se uma pessoa dessas tem capacidade para se casar”.
Hesse não receou, depois do seu primeiro casamento de quase vinte anos, nada tanto como o adormecimento e embotamento dos sentimentos. É por isso que Harry Heller em Stepenwolf “prefere sentir dentro de si uma dor mesmo diabólica do que essas cómodas temperaturas dos quartos”. O seu problema principal, no entanto, era a incapacidade total de se ligar emocionalmente a outro e de conjugar os seus hábitos de vida aos de outrem, seja a uma mulher ou a amigos ou a superiores.
“A minha técnica de vida exterior”, escreveu ele em 1923 a Olga Diener, “serve unicamente o objectivo de me manter completamente livre para o meu trabalho... Tenho de contar com muita solidão, mesmo não desejada, e com muitos sacrifícios exteriores... O que prefiro no pensamento e na arte, traz-me muitas vezes na vida sérias dificuldades, especialmente com mulheres: o facto de não poder fixar o meu amor, o facto de não poder amar uma coisa e outra, mas ter de amar a vida e o amor.” Ele não conseguia, como acontece com o homem burguês, “guardar e cevar o amor”. A mulher não é a meta da sua vida, mas o seu impulso e um dos meios de produção mais vitais para o trabalho. “Tenho a inclinação”, escreveu ele no seu diário de Julho de 1933, “de admirar toda aquela forte capacidade de amor, de quase a invejar, tal como com mulheres que me amaram, fui sempre o admirador com má consciência, porque sempre me pareceu que a sua capacidade de entrega era qualquer coisa de indizivelmente forte e belo também, que me faltava, que admiro, mas que não posso imitar.” Quase todos os artistas são na realidade amantes fogosos mas raramente bons maridos, porque o artista vive em primeiro lugar para a sua obra. Não tem mais amor para dar do que qualquer outro, mas antes menos, uma vez que o trabalho na sua obra lhe exige tanto. Também no romance Narciso e Goldmund aparece este conflito, o que levou a inúmeras cartas de leitores ao autor, algumas deslumbradas, outras perplexas. “Tenho”, escreveu Hesse em abril de 1931 a Christoph Schrempf, “tal como Goldmund em relação à mulher um comportamento sensual naïf e amaria indiscriminadamente como Goldmund se não me refreasse uma consideração inata e adquirida pela educação pela alma do ser humano (também da mulher) e um pudor também fomentado pela educação perante a entrega sem pensar aos sentidos... O prazer sensual é para (o escultor) Goldmund não um caminho para um conceito de posse espiritual ou para uma relação em que um homem e uma mulher ascendem a personalidades mais valiosas, mas ele alcança a sublimação do amor só na arte, só num desvio, só através de um substituto. Tenho de confessar isso. Não gostaria de viver só por causa da vida, não gostaria de viver só por causa da mulher, preciso dos desvios pela arte, preciso do prazer solitário e emaranhado em sonhos do artista, para me satisfazer com a vida, sim, para a poder suportar. Que isso significa um tipo de homem e de vida achacoso e de modo nenhum exemplar, disso tenho eu consciência, mas é a minha maneira... Se Goldmund... corre constantemente atrás de mulheres, para mim isso é como uma abelha que voa constantemente para as flores, seguindo sempre o mesmo obscuro impulso, leva uma gota de sumo, nunca aprofunda a sua relação com as flores nem a espiritualiza, mas faz em casa o mel, esquecendo rapidamente a flor... Goldmund desta maneira não serve a mulher e não serve a espiritualização do amor, mas bebe da mulher como a fonte para ele mais eficaz da natureza a gota de experiência, a gota de prazer e de sofrimento da qual, quando for altura, fará a sua obra, o seu mel.”
Estas experiências de prazer e sofrimento são também o conteúdo das histórias de amor de Hesse e o que lhe fugiu em estabilidade na vida, a ele e às suas mulheres, é-nos favorável a nós e a inúmeros leitores em todo o mundo. Porque não é o saborear que a si próprio satisfaz das suas emoções, mas a sua apresentação o que faz o artista.
A única modificação do tema da unificação dos dois sexos é a história lírica As metamorfoses de Piktor. Não é por acaso que ao contrário da maior parte das outras histórias, esta se passa na realidade mas no passado. Porque desenha um sonho de desejo, uma visão com elementos utópicos. Escrita (e maravilhosamente ilustrada pelo autor) esta fábula tornou-se numa declaração de amor a Ruth Wenger (1897-1994), filha da escritora Lisa Wenger (1858-1941) e do industrial suíço Theo Wenger (1868-1928); foi devido à sua insistência que Hesse, depois de recusar durante muito tempo, casou em 1924 pela segunda vez. O poeta dedicou a cada uma das suas três mulheres uma fábula semelhante, à sua primeira mulher, Mia, a fábula Iris (1918), à sua terceira mulher, Ninon, o humorístico auto-retrato Pássaro (1932). Mas uma verdadeira história de amor é somente o conto escrito em 1922, As metamorfoses de Piktor.
Em 1919, pouco depois de se ter fixado no sul da Suíça, o poeta conheceu, numa excursão à aldeia montanhosa de Tessin, Carona Ruth Wenger (no capítulo “Dia de Kareno” do conto O último verão de Klingsor está descrito esse encontro) e apaixonou-se à primeira vista da então cantora de 23 anos. Uma paixão espontânea como esta não tinha acontecido – pelo que sabemos de testemunhas da vida do autor – nem com a primeira mulher Mia nem mais tarde com Ninon Dolbin. A correspondência que até há pouco era inacessível, entre Hesse e Rutn Wenger, oscila num tom completamente diferente das cartas a Mia e a Ninon. São missivas emocionantes de um arrebatado (“Poder amar – que redenção!”), de um ser em revolução e em passagem para novas metamorfoses e modificações que se desenhavam como cesura visível nas obras de Hesse a partir de 1919.
Tal como o pássaro na fábula-Piktor consegue ter sempre novas formas e transformar-se em qualquer flor, numa borboleta ou num cristal, também Piktor se transforma com a ajuda do amor. Ela tira-o do beco sem saída em que se tinha enfiado a conselho da serpente. Só juntamente com a amada é que consegue libertar-se do isolamento e da imobilidade e volta a encontrar “a torrente maravilhosa da transformação” até finalmente poder viver “como um todo, como um par”, “que tem em si a lua e o sol, o homem e a mulher”, “como torrente gémea correu pelos campos e ficou no céu como dupla estrela”. O contra-amor de uma mulher por ele próprio amada tornou possível este milagre. O facto de se apresentar como sonho, como perspectiva de desejo de um paraíso que para ele era no imediato inatingível, sobre isso Hesse não tem ilusões, como se verifica na observação de O que o poeta viu à noite. Porque ele não podia, por muito tempo, esconder aos amantes inexperientes e dados a fantasias “que depois da embriaguez vem a saciedade”, que ele “não poderá fazer sempre de amante como ela sonha, de um que nunca se satisfaz”.
Uma rapariga de dez anos que observa o par de namorados e o começa – levada pela magia da sua afeição – a seguir em passos de dança naturais, faz lembrar o narrador da sua intenção: “Também eu tenho de aprender a dançar, tenho de transformar o desejo de prazer em música, a sensualidade em prece. Então poderei amar sempre, então não terei de repetir inutilmente o que já foi.”
Seguindo esta determinação, Hesse, a partir daí nos seus poemas, em breve também na vida, tentará qual lobo das estepes estes passos de dança, até que, para lá dos cinquenta anos de vida, encontra na sua terceira mulher Ninon a companheira que era suficientemente forte e sensível aos problemas, para o acompanhar no seu amor orientado para os homens e para a obra até ao fim durante mais de trinta anos. Ela possibilitou-lhe uma forma de colectivismo que combinava com a sua tarefa impessoal. Porque fundamentalmente para Hesse “o começo de toda a arte é o amor. O valor e o âmbito de todas as artes são confirmadas acima de tudo pela capacidade de amor do artista”.

Frankfurt am Main, Dezembro de 1994.


REFERÊNCIA:

MICHELS, Volker. Só quem ama é que vive - Contos de amor de Hermann Hesse. In: HESSE, Hermann. Contos de amor. Maria Adélia Silva Melo (tradução). Linda-a-velha: DIFEL Difusão Editorial S.A., 1996.

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