segunda-feira, 23 de outubro de 2017

O SAGRADO EM TOLKIEN: CONSIDERAÇÕES A RESPEITO DA MORTE






O SAGRADO EM TOLKIEN: CONSIDERAÇÕES
A RESPEITO DA MORTE


André Luís Borges de Oliveira (UFRJ)
Thayrine Kleinsorgen (UERJ)



RESUMO − Espreita a Morte, fado de tudo que se dá numa espaço-temporalidade, para onde convergem todas as encruzilhadas no único caminho possível. A despeito da tradição ocidental, acostumada a enxergar o mundo sob a ótica da ambivalência, ela não é nem só chegada nem só partida, mas ambas, faces do mesmo raio a percorrer os caminhos do círculo.
Busca-se aqui pôr em questão o horizonte da morte na obra do autor J. R. R. Tolkien e sua relação com o humano, não a partir de uma visão dicotômica que entende o bem como revés do mal, sagrado do profano, vida da morte. Pois, como fica claro em O Silmarillion, se tudo tem na fonte criadora sua origem mais remota, como apontar para isto ou aquilo os dedos acusadores da moral e ornar com predicados o mundo se dando como realização de si mesmo?
Relacionando com conceitos de Walter Benjamin, que percebeu no homem moderno um novo olhar sobre a morte, sobretudo de recusa e exclusão, podemos observar que há também esta transformação no homem tolkieniano. Se a morte, em princípio, era um dom a proporcionar ao homem todas as possibilidades de presentificação daquilo que ele é, com o declínio de Númenor esta relação se desfaz: passa-se a encará-la como a Maldição do Homem, a incerteza que gera temor. Por isto ela precisava ser controlada e, na medida do possível, subjugada; pois o destino daquele que é amaldiçoado é a eterna busca por salvar-se da condenação.
Outra influência na confecção destes pensamentos concerne a Freud. Em “Totem e tabu”, ele traz à memória o sentido de sagrado na morte como algo que foi digno de louvores e temores, sempre presente, mas envolto em mistério, assim era para muitos povos antigos. Para eles, o sagrado era a primeira ascendência genealógica, seu parente mais antigo, isto é, o que funda uma família, consequentemente, um povo. Neste sentido seria a morte um próprio do homem, quiçá sua plenitude de realização, a grande saída de si – ex-istência.


PALAVRAS-CHAVE: Sagrado. Mito. Morte. Destino. Tolkien.


Diz-se do mito como fantasia; conto de civilizações primitivas que, despossuindo a inefável Verdade da ciência, explicavam o mundo através da pura imaginação dissonante de embasamento, portanto absolutamente questionável e pouco ou nada factual. Diz-se do mito com a superioridade arrogante do pai que se ri dos devaneios infantis do filho. Mata-se o mito.
Entre esquinas abarrotadas de mercadorias, multidões solitárias habituadas à apatia e a viver pelo e para o trabalho, perdeu-se o questionamento sobre o mito, o poder primordialmente criador da palavra. No mundo moderno, não há espaço senão para o pontual, o matemático, o provado sob a égide irrefutável das revistas científicas que, a bem da verdade, explicam o mesmo, esvaziado de poesia e beleza. Categorizado, matematizado, racionalizado; discursos moralizantes e dogmáticos, mantenedores do poder e preocupados em controlar e fiscalizar, vendendo (e comprando) uma falsa ideia de sociedade democrática composta por seres livres, que já não são seres. O homem como ficha, protocolo, número de série: estoque.
Embora por vezes haja a vontade do resgate, é sempre através de um olhar histórico. Busca-se conhecer a cultura, portanto os mitos de determinado grupo social, analisá-los, criticá-los, com o distanciamento de quem lê sobre o passado e o julga sem a preocupação de se desvencilhar dos valores de seu próprio tempo. O mito é catalogado, contado e lido como aventuras por algum escapista que se apaixonou pelo passado fugidio ou alguém fatigado após um dia inteiro de trabalho que anseia por uma válvula de escape. Torna-se novela que se acompanha para fugir à realidade esmagadora.
Então o mito deixa de ser mito e se transmuta; se antes buscava um reconhecimento do homem pelo homem, autoconhecimento, possibilidades de realização e inserção dialógica com o mundo que é constantemente recriado a partir do primórdio, ou seja, o momento em que se dá na presença, agora se torna apenas literatura de consumo, povoando prateleiras sob plaquinhas da sessão infanto-juvenil com desconto no Natal. E lidamos com meros escombros, listas infindáveis de histórias há muito desprovidas de valor sagrado, pois mesmo a realidade perdeu sua sacralidade. Olhamos ao redor e não vemos seres; vemos o que os compõe, tecido adiposo, baço, a longitude do fêmur, sua funcionalidade objetivada e seus possíveis defeitos; o que falha e o que executa o trabalho com a mais perfeita sincronia para obter um resultado satisfatório.
Neste sentido, o que nos resta do mito? De que maneira autores como J. R. R. Tolkien, aclamado sobretudo pela trilogia O senhor dos anéis, poderia ousar criar uma mitologia, um mito? Em que instância a literatura pode resguardar esse sentido primeiro perdido?
Ora, o mito sobrevive na literatura na medida em que nos lança ao infinito; ou seja, nos coloca em face da verdade, pois a arte faz brotar a verdade. Não uma verdade operacional, que dita o certo e o errado, pois estes não passam de juízos de valor, predicados disponíveis à escolha. A arte cria memória e, deste modo, jamais deixamos de cantar às musas – a música. Em face da arte, esquecemo-nos do tempo, ou melhor, o experimentamos sem a clausura do relógio; o mito, então, sobrevive a instaurar espaço-tempo próprios, superando a temporalidade linear.
Muito se tem pesquisado a respeito das obras de Tolkien. O intuito é claro e, quase sempre, unânime: busca-se esmiuçar e mesmo mapear as fontes que proporcionaram a este autor escrever uma obra com tamanha profundidade mítico-poética. Isto porque, sabe-se, este professor inglês versado nos obscuros resquícios mitológicos da cultura pagã europeia, utilizou-se bastante dessas fontes para (re)criar sua mitologia própria.
Conjugada a toda sorte de narrativas míticas que ajudaram a compor a mitologia tolkieniana, uma apenas ergue-se como principal fonte de referência, permeando toda a obra. Eis o pensamento cristão, a permitir a possibilidade do uno: Eru Ilúvitar, o Único, que, a partir de sua vontade, cria e destrói tudo o que há dentro e fora de “Ea, o Mundo que É” (TOLKIEN, 2011b, p. 536).
A história do Ocidente é a história de ascensão do Um. Se antes os deuses eram plurais e regiam o mundo em suas potências, com todas as suas possibilidades de violência, destruição e criação, agora apenas um único, inimigo da alteridade, reina sobre o Céu e a Terra e, ciumento, exige que se reneguem os outros ao esquecimento.
Somente a partir deste deus uno, que divide o mundo sob a dualidade moralística entre os pecadores e os que serão salvos, separando o certo do errado e fundando uma dicotomia excludente, é que se poderia criar a base para a nossa sociedade métrica, que tenta adequar o real a uma medida: a sociedade que, espelhando-se neste deus, equaliza as diferenças para depois somá-las como iguais. Desta soma, os resultados provenientes devem ser os esperados; tudo o mais é erro.
Para tanto, deve-se atentar, não mais se lida com o ser, pois este sempre se dá como movimento e é impossível de ser apreendido numa medida. Lida-se com a abstração do ser, sua ideia, um ideal. Este também foi o percurso do deus único; ele se apartou do convívio dos homens, e tira a sorte do mundo num espaço alhures. Assim, não mais apontamos à copa das árvores e dizemos: Vede, eis deus. Não mais percebemos sua vontade a sussurrar nos ventos. Não mais ouvimos o que ele nos tem a dizer. Antes, nós o lemos. E que caminhos possíveis restam ao divino quando ele se mostra engessado apenas na escrita? O caminho das regras, pois está dito e não pode ser mudado. Faça isto e não faça aquilo, do contrário, deverá receber a implacável justiça divina e cruzar as fronteiras da expiação.
Dizemos, como num mantra sobre o qual não há questão: deus é bom, deus é belo, deus é o bem. Tudo o que sobra não é deus. É, antes, seu antagônico, aquele que é externo a ele e que não o habita, donde provêm todos os males. Se lançarmos um olhar atento sobre o mundo, torna-se tão fácil dizer que deus se mostra como potência primeva tanto quanto dizer o contrário, que é o mal que assola o mundo aquilo que o conduz. Pois ambos oferecem ao real suas possibilidades de realização; ambos estão no real como possibilidade de realização, basta que afinemos o olhar a um e ao outro, partículas indivisíveis do mesmo.
O movimento de Tolkien assemelha-se ao movimento grego. Este seria, com Platão, o alicerce para construção do cristianismo, uma vez que funda seu projeto com base na tentativa de cancelar a concretude do concreto, ou seja, retirar a aparência, ficando apenas com a essência. Tivemos, então, na cultura grega, uma cisão (BRANDÃO, 2009). Em nome do lógos, da razão, o mito foi sendo criticado e tornado ficção.
Esta crítica, a princípio, dirigia-se ao comportamento dos deuses, que já não podiam ser vistos como injustos, egoístas, vingativos e toda uma carga, agora encarada como negativa, de ações. Assim, dizia Xenófanes, no fragmento B23: “Há um deus acima de todos os deuses e homens: nem sua forma nem seu pensamento se assemelham aos dos mortais.” (apud BRANDÃO, 2009, p. 28).
No entanto, apesar de não conseguir superar este pensamento e acabar por conceber um deus uno, soberano, Tolkien (2011b, p. 6) traz para este deus uma reverberação mítica.

Então falou Ilúvatar e disse: Poderosos são os Ainur1, e o mais poderoso dentre eles é Melkor; mas, para que ele saiba, e saibam todos os Ainur, que eu sou Ilúvatar, essas melodias que vocês entoaram irei mostrá-las para que vejam o que fizeram. E tu, Melkor, verás que nenhum tema pode ser tocado sem ter em mim sua fonte mais remota, nem ninguém pode alterar a música contra minha vontade. E aquele que tentar, provará não ser senão meu instrumento na invenção de coisas ainda mais fantásticas, que ele próprio nunca imaginou.

Em outras palavras, tudo o quanto dizem ser bom tem em Eru a sua fonte. Da mesma forma, tudo o que dizem ser ruim também carrega, nas entranhas, a sombra da bênção do deus. No entanto, há discordância entre esta concepção de deus e o que imaginava o poeta da Hélade, Píndaro, aquele que disse: “O homem não deve atribuir aos deuses a não ser belas ações” (apud BRANDÃO, 2009, p. 29). Porém, tudo que é belo se dá no contraste; não há bem sem mal e a destruição é o limite que se abre para a possibilidade de criação.
Ao eliminar a moral como aquilo que fundamenta deus, resolvemos o paradoxo de Epicuro (1988), que versa sobre a impossibilidade de existir um deus que seja somente o bem e, ao mesmo tempo, onipresente, onipotente e onisciente: “Deus, ou quer impedir os males e não pode, ou pode e não quer, ou não quer e nem pode, ou quer e pode.” E, neste último caso, não o faz por quê? Ora, porque deus é, na mesma medida, também os males.
Se tomarmos por base as orientações bíblicas, percebemos que, breve tempo depois da criação do mundo, o deus de infinita misericórdia fez lançar uma maldição irrevogável sobre a raça dos homens, em face de sua desobediência. Ei-la:

Então disse o Senhor Deus: Eis que o homem é como um de nós, sabendo o bem e o mal; ora, para que não estenda a sua mão, e tome também da árvore da vida, e coma e viva eternamente,
O Senhor Deus, pois, o lançou fora do jardim do Éden, para lavrar a terra de que fora tomado.
E havendo lançado fora o homem, pôs querubins ao oriente do jardim do Éden, e uma espada inflamada que andava ao redor, para guardar o caminho da árvore da vida. (GÊNESIS, 3:22-4)

Antes de cometer o delito, o homem comungava da imortalidade, pois era-lhe permitido comer os frutos da árvore da vida e prolongar-se infinitamente, desfrutando a bonança do paraíso idílico. Desta forma, o destino da morte foi-lhe imposto como uma punição, bem como as doenças, a dor do parto, no caso das mulheres, e o suor do trabalho. E deus, que antes se mostrava como presença, vira um paradigma; uma instância absoluta que não conhecemos e sobre a qual não temos acesso. Para Tolkien, a relação da morte se dá de outra maneira, como é dito em O Silmarillion (2011b, pp. 35-6):

[...] aos homens [Ilúvatar] conferiu dons estranhos. [...]
Inclui-se, nesse dom de liberdade, que os filhos dos homens permaneçam vivos por um curto intervalo no mundo, não sendo presos a ele, e partam logo, para onde, os elfos não sabem. Ao passo que os elfos ficam até o final dos tempos, e seu amor pela Terra e por todo o mundo é mais exclusivo e intenso [...]. Já os filhos dos homens morrem de verdade, e deixam o mundo; motivo pelo qual são chamados Hóspedes ou Forasteiros. A morte é seu destino, o dom de Ilúvatar, que, com o passar do tempo, até os Poderes hão de invejar.

A morte, assim, apresenta-se não como castigo, mas como presente, uma dádiva, aquilo que dá limite, delimita o homem. Faz do homem homem, não elfo; permite-lhe ser como é, a saber: finito. O limite é, em verdade, a abertura. Não fronteira que se fecha, mas a possibilidade de a cadeia de possibilidades não se esgotar.
Apesar disso, habituamo-nos ao olhar da moral, que separa o uno do múltiplo, exclui identidade de diferença e divide em duas vias vida e morte. Como bem percebeu Walter Benjamin (1987, p. 207), “no decorrer dos últimos séculos, pode-se observar que a ideia da morte vem perdendo, na consciência coletiva, sua onipresença e sua força de evocação”. Encerramos o momento da morte em esconderijos assépticos, como se nos afigurasse o medo do contágio.
Em semelhança, assim aconteceu aos homens de Tolkien, que acabaram por levar seu reino, a grandiosa Númenor2, à Queda3. Deste modo, fizeram da memória esquecimento, já não sendo capazes de lembrar de si. Sós, desaprenderam aquilo de que eram feitos: o destino do instante; sopros.

A morte é o destino de todos;
os vivos devem levar isso a sério!
Eclesiastes 7:2

Não gostamos da palavra destino. Com palavra, quero dizer que não gostamos da experiência de mundo que denominamos; com nós, quero dizer que a sociedade atual não digere bem o que ela própria denominou. Isto porque o que chamamos de destino refere-se normalmente a ideias pré-fixadas, das quais não há escapatória.
Neste sentido, queremos poder ter escolhas e sermos livres para usufruí-las como bem entendermos. Se algo nos desagrada, encaramos como um problema a ser resolvido. A ideia mesma de adaptação, basilar na concepção evolucionista das espécies, é um modo de dissolução de tensões: somos apropriados e apropriamos o outro, diluindo-se as fronteiras. Esta imiscuição alastra-se pelas divergências até que o que incomodava passa a não incomodar; assim compreendemos o que é viver.
Para nós, a liberdade se opõe ao destino. Ninguém deveria ser obrigado a nada desde nascença ou para sempre. Lutamos para não nos definirem por pré-conceitos dos mais diversos. Estamos fartos do fado, enfadonho fardo. A liberdade, por outro lado, se nos conjuga entre a vontade e os meios que permitem essa vontade apresentar-se. Somos, portanto, levados a crer que este tipo de compreensão, na qual “somente quando o quero e o posso coincidem a liberdade se consuma” (ARENDT, 2005, p. 208) vincula liberdade ao querer e poder, sendo um o projeto de adequação do outro.
Ora, se liberdade é adaequatio, isto é, ação de igualar a vontade à possibilidade de realização, vale se perguntar a que chamamos aqui de possibilidade. Adequar necessita de um modelo no qual nos inspiremos, um guia a corrigir possíveis desvios da norma. Logo a possibilidade de realização da adequação refere-se, não apenas, mas principalmente, ao quão nos afastamos ou nos aproximamos desse padrão.
Você, quem quer que seja, tem que querer ser o que pode ser pela adequação, do contrário não será livre. Você deve, pois, adequar-se às possibilidades. Por conseguinte, o dever – de cunho legal, moral, técnico-científico, entre outros – subjuga o querer e o poder, ditando as regras de realização do ser no real.
Por isso não nos surpreende este destino que tira, retira-nos de nosso meio para dizer o que devemos ou não ser, porque a liberdade ela mesma é um dizer do que devemos ou não ser. Um destino que aprisiona o ser, um ônus, murcho.
Contudo, se desejamos perscrutar os meandros do destino, convém nos atentarmos ao significado mais aparente assim como ao obtuso, desleixo de importância no dia a dia. Além dos usos mais comuns do verbete destinar, ainda guardamos em nossa língua o sentido de “fazer-se consagrar a” (HOUAISS, 2009).
É claro que quem se consagra a algo, propõe-se a isso, dedica-se para isso, mais uma meta traçada a se adequar. Por exemplo, “ela se destinou ao magistério” (HOUAISS, 2009): — Meus parabéns! Agora, como proceder diante da afirmação do destino de morte? Corriqueiramente lidamos com isso como uma punição à qual todos os mortais estão sujeitos. Queremos porque queremos postergá-la o quanto pudermos. Ouso dizer, devemos esse adiamento a nossos semelhantes, aos entes queridos e a nós mesmos.
Quanto a isso, há uma passagem nos Contos inacabados que tem a ver com o que vimos conversando:

[...] apenas Elros4 recebeu uma longevidade peculiar, e aqui se diz que ele e seu irmão Elrond5 não eram diferentemente dotados do potencial físico da vida, mas que, visto que Elros escolheu6 ficar entre a espécie humana, ele reteve a principal característica dos homens, em oposição aos quendi7: a “busca alhures”, como os eldar8 a chamavam, a “exaustão” ou o desejo de partir do mundo. (TOLKIEN, 2011a, p. 474)

A principal característica, aquilo que de modo mais singular dá os limites e identifica a humanidade é a partida. Por essa passagem, entendemos que o próprio do homem, em oposição aos elfos, é sair a procurar. Tal atitude leva-o a criar e a ansiar pela criação, mas, como ela não bastará, leva-o também a se insatisfazer pelo criado e, em sequência, a produzir mais. Daí a exaustão, buscamos por algo que nunca se basta. Uma hora cansa. Uma hora para. Partir do mundo em última instância é morrer.
Elros se define pela morte. Ele não se distingue de seu irmão pela potência, senão na maneira em que ela se desdobra e vigora em sentidos. A busca não é incansável, ao contrário, ela se plenifica quando cansamos, pois é nosso destino tanto correr atrás quanto deixar ir. Morte aqui é plenitude de realização do homem, sua grande saída de si – ex-istência.
O ser afora comporta a ideia de morte enquanto limitação, não por exclusivamente tirar possibilidades, mas principalmente por dá-las, dar limites aos cem sentidos, fazer com que algo exista. Trilho a compreensão de “só o homem é ao modo da existência” (HEIDEGGER, 1979, 59) por este caminho próprio do homem de empaticamente lidar com as coisas, fazendo da pedra, templo; das árvores, barcos.
Embora os limites da pedra tenham sido alargados em templo, sempre haverá uma fronteira que tropeça no óbvio de que templo não é barco ou este templo não é aquele templo. Portanto, podemos concluir tautologicamente que o outro é o outro. Entretanto, a principal característica humana é afora, outro me distingue; logo, insisto na tautologia, o outro é o outro de mim mesmo.
No universo tolkieniano, a morte é uma dádiva de Eru aos Segundos Filhos, a humanidade, em distinção aos Primeiros Filhos, os elfos imortais. Depois de um dia exaustivo, o sono seria muito bem-vindo. A busca alhures é um presente! Este homem destinado a morrer está consagrado a morrer. Foi somente a posteriori que o outro recebeu uma conotação de algo que precisava ser controlado e, por isso, precisaríamos ser libertados de nós mesmos, já que presos pelo destino da morte:

A primeira chegada do “tédio do mundo” era para eles, de fato, um sinal de que chegava ao fim seu período de vigor. Quando ele terminava, caso persistissem vivendo, então a decadência prosseguia [...]. Nas primeiras gerações, eles não se “agarravam à vida”, mas renunciavam a ela voluntariamente. “Agarrar-se à vida”, e dessa forma no fim morrer forçosa e voluntariamente, foi uma das mudanças produzidas pela Sombra9 e pela rebelião dos númenorianos. (TOLKIEN, 2011a, p. 474)

Dá o sagrado os limites do homem. Isto não é dizer onde a humanidade termina, contrariamente é fundar seu começo e sua plenitude. Onde nada aconteceu jaz a irrupção de qualquer coisa, o que não é coisa qualquer. O niilismo do sagrado não nega, afirma o que é desconhecido a permanecer assim: quieto, dizendo baixinho e requisitando nossa atenção.

Próximo ao centro de Mittalmar10, erguia-se o grande monte chamado Meneltarma, Coluna dos Céus, consagrado à adoração de Eru Ilúvatar. [...] Nenhuma edificação, nenhum altar, nem mesmo uma pilha de pedras brutas jamais se ergueu ali. [...] Lá jamais se usava ferramenta ou arma, e lá ninguém podia dizer palavra, salvo o Rei [três vezes ao ano e em cerimônia de culto, nota dos autores] [...] diz-se que o silêncio era tão grande que até mesmo um estranho que ignorasse Númenor e toda sua história, se para lá fosse transportado, não teria ousado falar em voz alta. (TOLKIEN, 2011a, pp. 186-7)

Com todas as críticas que ele merece, concerne a Freud, em “Totem e tabu”, trazer à memória o sentido de sagrado na morte como algo que foi digno de louvores e temores, sempre presente, mas envolto em mistério, deste modo era para muitos povos antigos. Para eles, o sagrado era a primeira ascendência genealógica, seu parente mais antigo, isto é, o que funda uma família, consequentemente, um povo.
Utilizando-se de outros autores, como Wundt, continua tentando definir algo que “é difícil para nós encontrar uma tradução [...], desde que não possuímos mais o conceito que ele conota” (FREUD, 2006, p. 37), ou seja, não lidamos mais com este sagrado que inspira terror e admiração, bom e mau, pois não era nem bom, nem mau, apenas era assim que as coisas se delimitavam, fundamentalmente se delimitavam.
O mistério era o sagrado e acima de tudo, os mortos eram o desconhecido (WUNDT apud FREUD, 2006). Não conhecemos, logo buscamos o conhecimento. É nascer um dar-se a conhecer. Nascemos insistentes nas procuras. Amamos o conhecimento, pois a ele somos destinados, até que, perdidos no tempo, amamo-nos e não queremos morrer. Do nascimento finito entre amar e morrer é traçado o destino do homem, mas em algum momento abrimos mão de lidar com o misterioso silêncio:

Não falaram, pois ninguém, a não ser o Rei, falava nas alturas de Meneltarma; mas, ao descerem, Erendis deteve-se por um momento, olhando em direção a Emerië11, e além, para as florestas do seu lar.
— Você não ama o Yôzâyan12? — perguntou ela.
— Amo-o de fato — respondeu ele —, porém creio que você duvida disso. Pois também penso no que poderá se tornar em tempos vindouros, e na esperança e esplendor de seu povo; e acredito que uma dádiva não deveria jazer ociosa no tesouro.
— As dádivas que vêm dos Valar, e do Um através deles, devem ser amadas por si sós agora, e em todos os agoras — disse Erendis, discordando de suas palavras. — Não foram dadas para serem permutadas por mais ou por melhor. Os edain13 continuam homens mortais, Aldarion, por grandiosos que sejam: e não podemos residir no tempo que está por vir, pois assim perderíamos nosso agora em troca de um fantasma que nós mesmos inventamos. — Então, tirando subitamente a joia14 do pescoço, perguntou-lhe: — Gostaria que eu desse esta em troca, para comprar outros bens que desejo?
— Não! — disse ele. — mas você não a mantém trancada num tesouro. No entanto creio que lhe dá demasiado valor; pois é ofuscada pela luz dos seus olhos. — Então beijou-a nos olhos, e naquele momento ela pôs o temor de lado e o aceitou; e seu casamento foi contratado na íngreme trilha de Meneltarma. (TOLKIEN, 2011a, pp. 208-9)
                  
A meu ver, a história supracitada marca o início da possibilidade da Queda, res-posta do homem ao destino. Na tentativa de res-ponder ao momento entre falaescuta, tensão constante entre permanecer (Erendis) e partir (Aldarion), há um dizer que soa desarmônico, caracterizado na posterior irreconciliação do casal. Não falo aqui do fim de um romance. Amores vêm e vão. Refiro-me ao modo como encaramos àquilo a que somos destinados. Aldarion não ama mais o mar do que ama Erendis, não necessariamente, mas faz do seu amor pelo mar extensão de sua vontade.
Não é natural querer o que se ama? No mesmo traço, mas na trajetória oposta, não queremos fenecer. Aldarion, o Mestre das Florestas15, aquele que ganhou uma árvore de presente dos elfos, ele que fez das árvores de Númenor devir barcos, dá existência às árvores como matéria-prima para a fabricação de embarcações. O real está a seu dispor, supõe, como fruta do pé a bel-prazer ao alcance da mão.
Sua vontade de mar precisava controlar o fornecimento de recursos. Aqui, não morrer significa manter a utilidade da madeira vigente. Este é o sentido que nos serve e agrada, encaminhamos o caminho à medida de nossos passos. Seu amor passa a ser justificativa para apropriar à sua vontade.
Atenta Erendis quanto ao desejo de buscar alhures como se ela lembrasse que “a partilha destina (provê e presenteia) como dobra” (HEIDEGGER, 2006, 223), desdobramento singular em cada um, que tudo aquilo a que almejamos está condicionado ao destino do homem e que viver aquém e além do presente é não viver. Amar o mar não será jamais um problema em si. Amam-se mares e Erendis todos os dias. A realidade, por isso mesmo, será moldada e remoldada até que a morte se achegue.
Amar o mar diverge da vontade de exercer este amor. Amor ao mar é amor do mar, a saber, doação direta do mar. O outro só oferece o que pode oferecer, não o que desejaríamos. Quando a vontade se sobrepõe ao real, quando uma requisição do instante (preciso fazer um barco desta árvore) passa a ser uma imposição ao tempo (quero matéria-prima para minha frota), as singularidades em questão se perdem: tudo torna-se em função de algo. Tudo é mar e, exatamente devido a isso, todas as falas do ser soam semelhantes, monotonamente semelhantes. O mar não é mais a alteridade, não há mais o outro, só nossa vontade – nós, nós, nós desatados à deriva.

NOTAS:
1 – Primeiros seres criados por Eru, suas origens antecedem a criação do Mundo. Os mais poderosos dentre eles são conhecidos por Valar.
2 – Ilha da bem-aventurança; presente dos Valar aos homens.
3 – Ápice da rebelião de Númenor, caracterizada pela invasão da morada dos deuses.
4 – Primeiro rei de Númenor.
5 – Senhor élfico de Valfenda.
6 – Em casos específicos, foi permitido a elfos e meio-elfos decidir pela mortalidade. Depois de tomada, essa decisão é irrevogável.
7 – “Nome élfico original para todos os elfos” (TOLKIEN: 2011a, p. 571).
8 – Refere-se a determinadas famílias élficas. Por extensão de sentido, pode significar todos os elfos.
9 – Diz respeito à influência de Melkor, relação direta à perversão do sentido de morte como dádiva.
10 – Região central de Númenor.
11 – “Região de pastoreio de carneiros no Mittalmar” (TOLKIEN, 2011a, p. 540).
12 – Númenor na língua númenoriana.
13 – Refere-se a determinadas famílias de homens. Por extensão de sentido, pode significar todos os homens.
14 – Presente de Aldarion.
15 – Título recebido por Aldarion pelo Rei, seu pai. Foi-lhe incumbido que zelasse pelas florestas de Númenor, depois que ele e sua Corporação dos Aventureiros derrubaram demasiadas árvores. Nos períodos em que Aldarion estava mais envolvido nessa tarefa (e menos com os barcos), o número delas cresceu na ilha.

REFERÊNCIAS:
ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva, 2005.

BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1987.

BÍBLIA. Português. Bíblia sagrada. Disponível em: <https://www.bibliaonline.com.br>. Acessado em: 22 de jun. 2015.

BRANDÃO, Junito de Souza. Mitologia grega, vol. 1. Rio de Janeiro: Vozes, 2009.

EPICURO. Antologia de textos de Epicuro. 1988. Disponível em: <http://www.cefetsp.br/edu/eso/culturainformacao/antologiatextosepicuro.html>. Acessado em: 23 jun. 2015.

FREUD, Sigmund. Totem e tabu e outros trabalhos (1913-1914). Rio de Janeiro: Imago, 2006.

HEIDEGGER, Martin. Os pensadores. São Paulo: Abril, 1979.

______. Ensaios e conferências. Petrópolis: Vozes, 2006.

HOUAISS, Antônio. Dicionário eletrônico Houaiss da língua portuguesa 3.0. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009.

TOLKIEN, John Ronald Reuel. Contos inacabados. São Paulo: Martins Fontes, 2011a.

______. O Silmarillion. São Paulo: Martins Fontes, 2011b.


FONTE:
OLIVEIRA, André Luís Borges de Oliveira; KLEINSORGEN, Thayrine. O sagrado em Tolkien: considerações a respeito da morte. Disponível em: <https://www.valinor.com.br/50052>. Acesso em: 23 out. 2017.

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