O SAGRADO EM TOLKIEN:
CONSIDERAÇÕES
A RESPEITO DA MORTE
André Luís Borges de
Oliveira (UFRJ)
Thayrine Kleinsorgen (UERJ)
RESUMO − Espreita a Morte,
fado de tudo que se dá numa espaço-temporalidade, para onde convergem todas as encruzilhadas
no único caminho possível. A despeito da tradição ocidental, acostumada a
enxergar o mundo sob a ótica da ambivalência, ela não é nem só chegada nem só
partida, mas ambas, faces do mesmo raio a percorrer os caminhos do círculo.
Busca-se
aqui pôr em questão o horizonte da morte na obra do autor J. R. R. Tolkien e
sua relação com o humano, não a partir de uma visão dicotômica que entende o
bem como revés do mal, sagrado do profano, vida da morte. Pois, como fica claro
em O Silmarillion, se tudo tem na
fonte criadora sua origem mais remota, como apontar para isto ou aquilo os
dedos acusadores da moral e ornar com predicados o mundo se dando como
realização de si mesmo?
Relacionando
com conceitos de Walter Benjamin, que percebeu no homem moderno um novo olhar
sobre a morte, sobretudo de recusa e exclusão, podemos observar que há também
esta transformação no homem tolkieniano. Se a morte, em princípio, era um dom a
proporcionar ao homem todas as possibilidades de presentificação daquilo que
ele é, com o declínio de Númenor esta relação se desfaz: passa-se a encará-la
como a Maldição do Homem, a incerteza que gera temor. Por isto ela precisava
ser controlada e, na medida do possível, subjugada; pois o destino daquele que
é amaldiçoado é a eterna busca por salvar-se da condenação.
Outra
influência na confecção destes pensamentos concerne a Freud. Em “Totem e tabu”,
ele traz à memória o sentido de sagrado na morte como algo que foi digno de
louvores e temores, sempre presente, mas envolto em mistério, assim era para
muitos povos antigos. Para eles, o sagrado era a primeira ascendência
genealógica, seu parente mais antigo, isto é, o que funda uma família,
consequentemente, um povo. Neste sentido seria a morte um próprio do homem,
quiçá sua plenitude de realização, a grande saída de si – ex-istência.
PALAVRAS-CHAVE: Sagrado. Mito. Morte.
Destino. Tolkien.
Diz-se do mito como
fantasia; conto de civilizações primitivas que, despossuindo a inefável Verdade
da ciência, explicavam o mundo através da pura imaginação dissonante de
embasamento, portanto absolutamente questionável e pouco ou nada factual.
Diz-se do mito com a superioridade arrogante do pai que se ri dos devaneios
infantis do filho. Mata-se o mito.
Entre esquinas abarrotadas
de mercadorias, multidões solitárias habituadas à apatia e a viver pelo e para
o trabalho, perdeu-se o questionamento sobre o mito, o poder primordialmente
criador da palavra. No mundo moderno, não há espaço senão para o pontual, o
matemático, o provado sob a égide irrefutável das revistas científicas que, a
bem da verdade, explicam o mesmo, esvaziado de poesia e beleza. Categorizado,
matematizado, racionalizado; discursos moralizantes e dogmáticos, mantenedores
do poder e preocupados em controlar e fiscalizar, vendendo (e comprando) uma
falsa ideia de sociedade democrática composta por seres livres, que já não são
seres. O homem como ficha, protocolo, número de série: estoque.
Embora por vezes haja a
vontade do resgate, é sempre através de um olhar histórico. Busca-se conhecer a
cultura, portanto os mitos de determinado grupo social, analisá-los,
criticá-los, com o distanciamento de quem lê sobre o passado e o julga sem a
preocupação de se desvencilhar dos valores de seu próprio tempo. O mito é
catalogado, contado e lido como aventuras por algum escapista que se apaixonou
pelo passado fugidio ou alguém fatigado após um dia inteiro de trabalho que
anseia por uma válvula de escape. Torna-se novela que se acompanha para fugir à
realidade esmagadora.
Então o mito deixa de ser
mito e se transmuta; se antes buscava um reconhecimento do homem pelo homem,
autoconhecimento, possibilidades de realização e inserção dialógica com o mundo
que é constantemente recriado a partir do primórdio, ou seja, o momento em que
se dá na presença, agora se torna apenas literatura de consumo, povoando
prateleiras sob plaquinhas da sessão infanto-juvenil com desconto no Natal. E
lidamos com meros escombros, listas infindáveis de histórias há muito
desprovidas de valor sagrado, pois mesmo a realidade perdeu sua sacralidade.
Olhamos ao redor e não vemos seres; vemos o que os compõe, tecido adiposo,
baço, a longitude do fêmur, sua funcionalidade objetivada e seus possíveis
defeitos; o que falha e o que executa o trabalho com a mais perfeita sincronia
para obter um resultado satisfatório.
Neste sentido, o que nos
resta do mito? De que maneira autores como J. R. R. Tolkien, aclamado sobretudo
pela trilogia O senhor dos anéis,
poderia ousar criar uma mitologia, um mito? Em que instância a literatura pode
resguardar esse sentido primeiro perdido?
Ora, o mito sobrevive na
literatura na medida em que nos lança ao infinito; ou seja, nos coloca em face
da verdade, pois a arte faz brotar a verdade. Não uma verdade operacional, que
dita o certo e o errado, pois estes não passam de juízos de valor, predicados
disponíveis à escolha. A arte cria memória e, deste modo, jamais deixamos de
cantar às musas – a música. Em face da arte, esquecemo-nos do tempo, ou melhor,
o experimentamos sem a clausura do relógio; o mito, então, sobrevive a
instaurar espaço-tempo próprios, superando a temporalidade linear.
Muito se tem pesquisado a
respeito das obras de Tolkien. O intuito é claro e, quase sempre, unânime:
busca-se esmiuçar e mesmo mapear as fontes que proporcionaram a este autor
escrever uma obra com tamanha profundidade mítico-poética. Isto porque,
sabe-se, este professor inglês versado nos obscuros resquícios mitológicos da
cultura pagã europeia, utilizou-se bastante dessas fontes para (re)criar sua
mitologia própria.
Conjugada a toda sorte de
narrativas míticas que ajudaram a compor a mitologia tolkieniana, uma apenas
ergue-se como principal fonte de referência, permeando toda a obra. Eis o
pensamento cristão, a permitir a possibilidade do uno: Eru Ilúvitar, o Único,
que, a partir de sua vontade, cria e destrói tudo o que há dentro e fora de “Ea,
o Mundo que É” (TOLKIEN, 2011b, p. 536).
A história do Ocidente é a
história de ascensão do Um. Se antes os deuses eram plurais e regiam o mundo em
suas potências, com todas as suas possibilidades de violência, destruição e
criação, agora apenas um único, inimigo da alteridade, reina sobre o Céu e a
Terra e, ciumento, exige que se reneguem os outros ao esquecimento.
Somente a partir deste deus
uno, que divide o mundo sob a dualidade moralística entre os pecadores e os que
serão salvos, separando o certo do errado e fundando uma dicotomia excludente,
é que se poderia criar a base para a nossa sociedade métrica, que tenta adequar
o real a uma medida: a sociedade que, espelhando-se neste deus, equaliza as
diferenças para depois somá-las como iguais. Desta soma, os resultados
provenientes devem ser os esperados; tudo o mais é erro.
Para tanto, deve-se atentar,
não mais se lida com o ser, pois este sempre se dá como movimento e é
impossível de ser apreendido numa medida. Lida-se com a abstração do ser, sua
ideia, um ideal. Este também foi o percurso do deus único; ele se apartou do
convívio dos homens, e tira a sorte do mundo num espaço alhures. Assim, não
mais apontamos à copa das árvores e dizemos: Vede, eis deus. Não mais
percebemos sua vontade a sussurrar nos ventos. Não mais ouvimos o que ele nos
tem a dizer. Antes, nós o lemos. E que caminhos possíveis restam ao divino
quando ele se mostra engessado apenas na escrita? O caminho das regras, pois
está dito e não pode ser mudado. Faça isto e não faça aquilo, do contrário,
deverá receber a implacável justiça divina e cruzar as fronteiras da expiação.
Dizemos, como num mantra
sobre o qual não há questão: deus é bom, deus é belo, deus é o bem. Tudo o que
sobra não é deus. É, antes, seu antagônico, aquele que é externo a ele e que
não o habita, donde provêm todos os males. Se lançarmos um olhar atento sobre o
mundo, torna-se tão fácil dizer que deus se mostra como potência primeva tanto
quanto dizer o contrário, que é o mal que assola o mundo aquilo que o conduz.
Pois ambos oferecem ao real suas possibilidades de realização; ambos estão no
real como possibilidade de realização, basta que afinemos o olhar a um e ao
outro, partículas indivisíveis do mesmo.
O movimento de Tolkien
assemelha-se ao movimento grego. Este seria, com Platão, o alicerce para
construção do cristianismo, uma vez que funda seu projeto com base na tentativa
de cancelar a concretude do concreto, ou seja, retirar a aparência, ficando
apenas com a essência. Tivemos, então, na cultura grega, uma cisão (BRANDÃO, 2009).
Em nome do lógos, da razão, o mito foi
sendo criticado e tornado ficção.
Esta crítica, a princípio,
dirigia-se ao comportamento dos deuses, que já não podiam ser vistos como
injustos, egoístas, vingativos e toda uma carga, agora encarada como negativa,
de ações. Assim, dizia Xenófanes, no fragmento B23: “Há um deus acima de todos
os deuses e homens: nem sua forma nem seu pensamento se assemelham aos dos
mortais.” (apud BRANDÃO, 2009, p. 28).
No entanto, apesar de não
conseguir superar este pensamento e acabar por conceber um deus uno, soberano,
Tolkien (2011b, p. 6) traz para este deus uma reverberação mítica.
Então falou Ilúvatar e disse:
Poderosos são os Ainur1, e o mais poderoso dentre eles é Melkor;
mas, para que ele saiba, e saibam todos os Ainur, que eu sou Ilúvatar, essas
melodias que vocês entoaram irei mostrá-las para que vejam o que fizeram. E tu,
Melkor, verás que nenhum tema pode ser tocado sem ter em mim sua fonte mais
remota, nem ninguém pode alterar a música contra minha vontade. E aquele que
tentar, provará não ser senão meu instrumento na invenção de coisas ainda mais
fantásticas, que ele próprio nunca imaginou.
Em outras palavras, tudo o
quanto dizem ser bom tem em Eru a sua fonte. Da mesma forma, tudo o que dizem ser
ruim também carrega, nas entranhas, a sombra da bênção do deus. No entanto, há
discordância entre esta concepção de deus e o que imaginava o poeta da Hélade,
Píndaro, aquele que disse: “O homem não deve atribuir aos deuses a não ser
belas ações” (apud BRANDÃO, 2009, p. 29). Porém, tudo que é belo se dá no
contraste; não há bem sem mal e a destruição é o limite que se abre para a
possibilidade de criação.
Ao eliminar a moral como
aquilo que fundamenta deus, resolvemos o paradoxo de Epicuro (1988), que versa
sobre a impossibilidade de existir um deus que seja somente o bem e, ao mesmo
tempo, onipresente, onipotente e onisciente: “Deus, ou quer impedir os males e
não pode, ou pode e não quer, ou não quer e nem pode, ou quer e pode.” E, neste
último caso, não o faz por quê? Ora, porque deus é, na mesma medida, também os
males.
Se tomarmos por base as
orientações bíblicas, percebemos que, breve tempo depois da criação do mundo, o
deus de infinita misericórdia fez lançar uma maldição irrevogável sobre a raça
dos homens, em face de sua desobediência. Ei-la:
Então disse o Senhor Deus: Eis que o
homem é como um de nós, sabendo o bem e o mal; ora, para que não estenda a sua
mão, e tome também da árvore da vida, e coma e viva eternamente,
O Senhor Deus, pois, o lançou fora do
jardim do Éden, para lavrar a terra de que fora tomado.
E havendo lançado fora o homem, pôs
querubins ao oriente do jardim do Éden, e uma espada inflamada que andava ao
redor, para guardar o caminho da árvore da vida. (GÊNESIS, 3:22-4)
Antes de cometer o delito, o
homem comungava da imortalidade, pois era-lhe permitido comer os frutos da
árvore da vida e prolongar-se infinitamente, desfrutando a bonança do paraíso
idílico. Desta forma, o destino da morte foi-lhe imposto como uma punição, bem
como as doenças, a dor do parto, no caso das mulheres, e o suor do trabalho. E
deus, que antes se mostrava como presença, vira um paradigma; uma instância
absoluta que não conhecemos e sobre a qual não temos acesso. Para Tolkien, a
relação da morte se dá de outra maneira, como é dito em O Silmarillion (2011b, pp. 35-6):
[...] aos homens [Ilúvatar] conferiu
dons estranhos. [...]
Inclui-se, nesse dom de liberdade, que
os filhos dos homens permaneçam vivos por um curto intervalo no mundo, não
sendo presos a ele, e partam logo, para onde, os elfos não sabem. Ao passo que
os elfos ficam até o final dos tempos, e seu amor pela Terra e por todo o mundo
é mais exclusivo e intenso [...]. Já os filhos dos homens morrem de verdade, e
deixam o mundo; motivo pelo qual são chamados Hóspedes ou Forasteiros. A morte
é seu destino, o dom de Ilúvatar, que, com o passar do tempo, até os Poderes
hão de invejar.
A morte, assim, apresenta-se
não como castigo, mas como presente, uma dádiva, aquilo que dá limite, delimita
o homem. Faz do homem homem, não elfo; permite-lhe ser como é, a saber: finito.
O limite é, em verdade, a abertura. Não fronteira que se fecha, mas a
possibilidade de a cadeia de possibilidades não se esgotar.
Apesar disso, habituamo-nos
ao olhar da moral, que separa o uno do múltiplo, exclui identidade de diferença
e divide em duas vias vida e morte. Como bem percebeu Walter Benjamin (1987, p.
207), “no decorrer dos últimos séculos, pode-se observar que a ideia da morte
vem perdendo, na consciência coletiva, sua onipresença e sua força de
evocação”. Encerramos o momento da morte em esconderijos assépticos, como se
nos afigurasse o medo do contágio.
Em semelhança, assim
aconteceu aos homens de Tolkien, que acabaram por levar seu reino, a grandiosa
Númenor2, à Queda3. Deste modo, fizeram da memória
esquecimento, já não sendo capazes de lembrar de si. Sós, desaprenderam aquilo
de que eram feitos: o destino do instante; sopros.
A
morte é o destino de todos;
os
vivos devem levar isso a sério!
Eclesiastes
7:2
Não gostamos da palavra
destino. Com palavra, quero dizer que não gostamos da experiência de mundo que
denominamos; com nós, quero dizer que a sociedade atual não digere bem o que
ela própria denominou. Isto porque o que chamamos de destino refere-se normalmente
a ideias pré-fixadas, das quais não há escapatória.
Neste sentido, queremos
poder ter escolhas e sermos livres para usufruí-las como bem entendermos. Se
algo nos desagrada, encaramos como um problema a ser resolvido. A ideia mesma
de adaptação, basilar na concepção evolucionista das espécies, é um modo de
dissolução de tensões: somos apropriados e apropriamos o outro, diluindo-se as
fronteiras. Esta imiscuição alastra-se pelas divergências até que o que incomodava
passa a não incomodar; assim compreendemos o que é viver.
Para nós, a liberdade se
opõe ao destino. Ninguém deveria ser obrigado a nada desde nascença ou para
sempre. Lutamos para não nos definirem por pré-conceitos dos mais diversos.
Estamos fartos do fado, enfadonho fardo. A liberdade, por outro lado, se nos
conjuga entre a vontade e os meios que permitem essa vontade apresentar-se.
Somos, portanto, levados a crer que este tipo de compreensão, na qual “somente
quando o quero e o posso coincidem a liberdade se consuma” (ARENDT, 2005, p. 208)
vincula liberdade ao querer e poder, sendo um o projeto de adequação do outro.
Ora, se liberdade é adaequatio, isto é, ação de igualar a
vontade à possibilidade de realização, vale se perguntar a que chamamos aqui de
possibilidade. Adequar necessita de um modelo no qual nos inspiremos, um guia a
corrigir possíveis desvios da norma. Logo a possibilidade de realização da
adequação refere-se, não apenas, mas principalmente, ao quão nos afastamos ou
nos aproximamos desse padrão.
Você, quem quer que seja,
tem que querer ser o que pode ser pela adequação, do contrário não será livre.
Você deve, pois, adequar-se às possibilidades. Por conseguinte, o dever – de
cunho legal, moral, técnico-científico, entre outros – subjuga o querer e o
poder, ditando as regras de realização do ser no real.
Por isso não nos surpreende
este destino que tira, retira-nos de nosso meio para dizer o que devemos ou não
ser, porque a liberdade ela mesma é um dizer do que devemos ou não ser. Um
destino que aprisiona o ser, um ônus, murcho.
Contudo, se desejamos perscrutar
os meandros do destino, convém nos atentarmos ao significado mais aparente
assim como ao obtuso, desleixo de importância no dia a dia. Além dos usos mais
comuns do verbete destinar, ainda guardamos em nossa língua o sentido de
“fazer-se consagrar a” (HOUAISS, 2009).
É claro que quem se consagra
a algo, propõe-se a isso, dedica-se para isso, mais uma meta traçada a se
adequar. Por exemplo, “ela se destinou ao magistério” (HOUAISS, 2009): — Meus
parabéns! Agora, como proceder diante da afirmação do destino de morte? Corriqueiramente
lidamos com isso como uma punição à qual todos os mortais estão sujeitos.
Queremos porque queremos postergá-la o quanto pudermos. Ouso dizer, devemos esse
adiamento a nossos semelhantes, aos entes queridos e a nós mesmos.
Quanto a isso, há uma
passagem nos Contos inacabados que
tem a ver com o que vimos conversando:
[...] apenas Elros4 recebeu
uma longevidade peculiar, e aqui se diz que ele e seu irmão Elrond5
não eram diferentemente dotados do potencial físico da vida, mas que, visto que
Elros escolheu6 ficar entre a espécie humana, ele reteve a principal
característica dos homens, em oposição aos quendi7: a “busca
alhures”, como os eldar8 a chamavam, a “exaustão” ou o desejo de
partir do mundo. (TOLKIEN, 2011a, p. 474)
A principal característica,
aquilo que de modo mais singular dá os limites e identifica a humanidade é a
partida. Por essa passagem, entendemos que o próprio do homem, em oposição aos
elfos, é sair a procurar. Tal atitude leva-o a criar e a ansiar pela criação, mas,
como ela não bastará, leva-o também a se insatisfazer pelo criado e, em
sequência, a produzir mais. Daí a exaustão, buscamos por algo que nunca se
basta. Uma hora cansa. Uma hora para. Partir do mundo em última instância é
morrer.
Elros se define pela morte.
Ele não se distingue de seu irmão pela potência, senão na maneira em que ela se
desdobra e vigora em sentidos. A busca não é incansável, ao contrário, ela se
plenifica quando cansamos, pois é nosso destino tanto correr atrás quanto
deixar ir. Morte aqui é plenitude de realização do homem, sua grande saída de
si – ex-istência.
O ser afora comporta a ideia
de morte enquanto limitação, não por exclusivamente tirar possibilidades, mas principalmente
por dá-las, dar limites aos cem sentidos, fazer com que algo exista. Trilho a
compreensão de “só o homem é ao modo da existência” (HEIDEGGER, 1979, 59) por este
caminho próprio do homem de empaticamente lidar com as coisas, fazendo da pedra,
templo; das árvores, barcos.
Embora os limites da pedra
tenham sido alargados em templo, sempre haverá uma fronteira que tropeça no
óbvio de que templo não é barco ou este templo não é aquele templo. Portanto,
podemos concluir tautologicamente que o outro é o outro. Entretanto, a principal
característica humana é afora, outro me distingue; logo, insisto na tautologia,
o outro é o outro de mim mesmo.
No universo tolkieniano, a
morte é uma dádiva de Eru aos Segundos Filhos, a humanidade, em distinção aos
Primeiros Filhos, os elfos imortais. Depois de um dia exaustivo, o sono seria
muito bem-vindo. A busca alhures é um presente! Este homem destinado a morrer está
consagrado a morrer. Foi somente a
posteriori que o outro recebeu uma conotação de algo que precisava ser
controlado e, por isso, precisaríamos ser libertados de nós mesmos, já que presos
pelo destino da morte:
A primeira chegada do “tédio do mundo”
era para eles, de fato, um sinal de que chegava ao fim seu período de vigor.
Quando ele terminava, caso persistissem vivendo, então a decadência prosseguia
[...]. Nas primeiras gerações, eles não se “agarravam à vida”, mas renunciavam
a ela voluntariamente. “Agarrar-se à vida”, e dessa forma no fim morrer forçosa
e voluntariamente, foi uma das mudanças produzidas pela Sombra9 e
pela rebelião dos númenorianos. (TOLKIEN, 2011a, p. 474)
Dá o sagrado os limites do
homem. Isto não é dizer onde a humanidade termina, contrariamente é fundar seu
começo e sua plenitude. Onde nada aconteceu jaz a irrupção de qualquer coisa, o
que não é coisa qualquer. O niilismo do sagrado não nega, afirma o que é desconhecido
a permanecer assim: quieto, dizendo baixinho e requisitando nossa atenção.
Próximo ao centro de Mittalmar10,
erguia-se o grande monte chamado Meneltarma, Coluna dos Céus, consagrado à adoração
de Eru Ilúvatar. [...] Nenhuma edificação, nenhum altar, nem mesmo uma pilha de
pedras brutas jamais se ergueu ali. [...] Lá jamais se usava ferramenta ou
arma, e lá ninguém podia dizer palavra, salvo o Rei [três vezes ao ano e em
cerimônia de culto, nota dos autores] [...] diz-se que o silêncio era tão
grande que até mesmo um estranho que ignorasse Númenor e toda sua história, se
para lá fosse transportado, não teria ousado falar em voz alta. (TOLKIEN, 2011a,
pp. 186-7)
Com todas as críticas que ele
merece, concerne a Freud, em “Totem e tabu”, trazer à memória o sentido de
sagrado na morte como algo que foi digno de louvores e temores, sempre
presente, mas envolto em mistério, deste modo era para muitos povos antigos.
Para eles, o sagrado era a primeira ascendência genealógica, seu parente mais
antigo, isto é, o que funda uma família, consequentemente, um povo.
Utilizando-se de outros
autores, como Wundt, continua tentando definir algo que “é difícil para nós
encontrar uma tradução [...], desde que não possuímos mais o conceito que ele
conota” (FREUD, 2006, p. 37), ou seja, não lidamos mais com este sagrado que
inspira terror e admiração, bom e mau, pois não era nem bom, nem mau, apenas
era assim que as coisas se delimitavam, fundamentalmente se delimitavam.
O mistério era o sagrado e
acima de tudo, os mortos eram o desconhecido (WUNDT apud FREUD, 2006). Não conhecemos,
logo buscamos o conhecimento. É nascer um dar-se a conhecer. Nascemos
insistentes nas procuras. Amamos o conhecimento, pois a ele somos destinados,
até que, perdidos no tempo, amamo-nos e não queremos morrer. Do nascimento
finito entre amar e morrer é traçado o destino do homem, mas em algum momento
abrimos mão de lidar com o misterioso silêncio:
Não falaram, pois ninguém, a não ser o
Rei, falava nas alturas de Meneltarma; mas, ao descerem, Erendis deteve-se por
um momento, olhando em direção a Emerië11, e além, para as florestas
do seu lar.
— Você não ama o Yôzâyan12?
— perguntou ela.
— Amo-o de fato — respondeu ele —,
porém creio que você duvida disso. Pois também penso no que poderá se tornar em
tempos vindouros, e na esperança e esplendor de seu povo; e acredito que uma
dádiva não deveria jazer ociosa no tesouro.
— As dádivas que vêm dos Valar, e do
Um através deles, devem ser amadas por si sós agora, e em todos os agoras —
disse Erendis, discordando de suas palavras. — Não foram dadas para serem
permutadas por mais ou por melhor. Os edain13 continuam homens
mortais, Aldarion, por grandiosos que sejam: e não podemos residir no tempo que
está por vir, pois assim perderíamos nosso agora em troca de um fantasma que
nós mesmos inventamos. — Então, tirando subitamente a joia14 do
pescoço, perguntou-lhe: — Gostaria que eu desse esta em troca, para comprar
outros bens que desejo?
— Não! — disse ele. — mas você não a
mantém trancada num tesouro. No entanto creio que lhe dá demasiado valor; pois
é ofuscada pela luz dos seus olhos. — Então beijou-a nos olhos, e naquele
momento ela pôs o temor de lado e o aceitou; e seu casamento foi contratado na
íngreme trilha de Meneltarma. (TOLKIEN, 2011a, pp. 208-9)
A meu ver, a história
supracitada marca o início da possibilidade da Queda, res-posta do homem ao
destino. Na tentativa de res-ponder ao momento entre falaescuta, tensão
constante entre permanecer (Erendis) e partir (Aldarion), há um dizer que soa
desarmônico, caracterizado na posterior irreconciliação do casal. Não falo aqui
do fim de um romance. Amores vêm e vão. Refiro-me ao modo como encaramos àquilo
a que somos destinados. Aldarion não ama mais o mar do que ama Erendis, não
necessariamente, mas faz do seu amor pelo mar extensão de sua vontade.
Não é natural querer o que
se ama? No mesmo traço, mas na trajetória oposta, não queremos fenecer. Aldarion,
o Mestre das Florestas15, aquele que ganhou uma árvore de presente
dos elfos, ele que fez das árvores de Númenor devir barcos, dá existência às
árvores como matéria-prima para a fabricação de embarcações. O real está a seu
dispor, supõe, como fruta do pé a bel-prazer ao alcance da mão.
Sua vontade de mar precisava
controlar o fornecimento de recursos. Aqui, não morrer significa manter a
utilidade da madeira vigente. Este é o sentido que nos serve e agrada,
encaminhamos o caminho à medida de nossos passos. Seu amor passa a ser
justificativa para apropriar à sua vontade.
Atenta Erendis quanto ao desejo
de buscar alhures como se ela lembrasse que “a partilha destina (provê e presenteia)
como dobra” (HEIDEGGER, 2006, 223), desdobramento singular em cada um, que tudo
aquilo a que almejamos está condicionado ao destino do homem e que viver aquém
e além do presente é não viver. Amar o mar não será jamais um problema em si.
Amam-se mares e Erendis todos os dias. A realidade, por isso mesmo, será
moldada e remoldada até que a morte se achegue.
Amar o mar diverge da
vontade de exercer este amor. Amor ao mar é amor do mar, a saber, doação direta
do mar. O outro só oferece o que pode oferecer, não o que desejaríamos. Quando
a vontade se sobrepõe ao real, quando uma requisição do instante (preciso fazer
um barco desta árvore) passa a ser uma imposição ao tempo (quero matéria-prima
para minha frota), as singularidades em questão se perdem: tudo torna-se em
função de algo. Tudo é mar e, exatamente devido a isso, todas as falas do ser
soam semelhantes, monotonamente semelhantes. O mar não é mais a alteridade, não
há mais o outro, só nossa vontade – nós, nós, nós desatados à deriva.
NOTAS:
1 – Primeiros seres
criados por Eru, suas origens antecedem a criação do Mundo. Os mais poderosos dentre
eles são conhecidos por Valar.
2 – Ilha da
bem-aventurança; presente dos Valar aos homens.
3 – Ápice da rebelião
de Númenor, caracterizada pela invasão da morada dos deuses.
4 – Primeiro rei de
Númenor.
5 – Senhor élfico de
Valfenda.
6 – Em casos
específicos, foi permitido a elfos e meio-elfos decidir pela mortalidade. Depois
de tomada, essa decisão é irrevogável.
7 – “Nome élfico
original para todos os elfos” (TOLKIEN: 2011a, p. 571).
8 – Refere-se a
determinadas famílias élficas. Por extensão de sentido, pode significar todos
os elfos.
9 – Diz respeito à
influência de Melkor, relação direta à perversão do sentido de morte como
dádiva.
10 – Região central de
Númenor.
11 – “Região de
pastoreio de carneiros no Mittalmar” (TOLKIEN, 2011a, p. 540).
12 – Númenor na língua
númenoriana.
13 – Refere-se a determinadas
famílias de homens. Por extensão de sentido, pode significar todos os homens.
14 – Presente de
Aldarion.
15 – Título recebido
por Aldarion pelo Rei, seu pai. Foi-lhe incumbido que zelasse pelas florestas
de Númenor, depois que ele e sua Corporação dos Aventureiros derrubaram
demasiadas árvores. Nos períodos em que Aldarion estava mais envolvido nessa
tarefa (e menos com os barcos), o número delas cresceu na ilha.
REFERÊNCIAS:
ARENDT,
Hannah. Entre o passado e o futuro.
São Paulo: Perspectiva, 2005.
BENJAMIN,
Walter. Magia e técnica, arte e política.
São Paulo: Brasiliense, 1987.
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Disponível em: <https://www.bibliaonline.com.br>. Acessado em: 22 de jun.
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Antologia de textos de Epicuro.
1988. Disponível em:
<http://www.cefetsp.br/edu/eso/culturainformacao/antologiatextosepicuro.html>.
Acessado em: 23 jun. 2015.
FREUD,
Sigmund. Totem e tabu e outros trabalhos
(1913-1914). Rio de Janeiro: Imago, 2006.
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