Por Carmen Lícia Palazzo1
Introdução
Os primórdios do Islã são
conhecidos através de relatos referindo-se à vida de
Maomé, geralmente descrito como um mercador árabe nascido em Meca, provavelmente no ano de 570, na tribo dos Quaraish.
A partir do ano de 610 ele teria
recebido revelações vindas
diretamente de Deus (Allah, em árabe) e anunciadas
pelo anjo Gabriel,
passando a ser visto então como um novo profeta em uma região na
qual conviviam pessoas de diversas religiões,
muitas delas pertencentes aos dois
mais conhecidos grupos monoteístas: judeus e
cristãos. No entanto, a maioria das informações que constam dos relatos
sobre Maomé só foram registradas por escrito bem
mais adiante, após
sua morte, que
ocorreu em 6322. Uma
das fontes mais
utilizadas pelos historiadores para
as pesquisas sobre
o Profeta e sobre o novo monoteísmo que começava a se desenvolver na Península Arábica é a obra de Muhammad bin Jarir al-Tabari, que data do início do século X e registra
inúmeros acontecimentos, na maioria dos casos fazendo
referência a uma
cadeia de transmissão oral3. Al-Tabari
fornece, muitas vezes, mais de uma versão para os mesmos fatos, dependendo da variedade de testemunhas que se manifestaram sobre eles até o momento
em que foram colocados por escrito.
Além de cronistas como al-Tabari, outros textos essenciais para entender
os primeiros anos do Islã são o próprio Corão e os Hadith, um conjunto de falas e ações atribuídas a Maomé. Trata-se, pois,
de um corpus documental que demanda muito cuidado
em sua utilização na medida
em que seus registros
são todos muito posteriores aos acontecimentos e têm como objetivo principal a consolidação de uma fé. O que importa, porém, para a pesquisa histórica, é entender tal conjunto de documentos como fundadores de uma nova
religiosidade sem
tecer considerações sobre a veracidade das revelações a Maomé ou sobre a efetiva autoria
dos Hadith.
Juan Vernet, acadêmico espanhol, escreveu
sobre as origens
do Islã, cruzando os relatos de al-Tabari com os diversos capítulos (suras ou suratas) do Corão e com os Hadith.
Vernet, referindo-se aos problemas encontrados para escrever
uma biografia de Maomé destaca
que a dificuldade que:
[...] reside
no fato de os textos,
as fontes em que temos
de nos basear, serem
tardios, posteriores um ou dois
séculos
à sua morte [de Maomé],
e sempre laudatórios – os muçulmanos, ou depreciativos – os cristãos.4
A partir da fratura ocorrida após o califado de Ali (656-661) e a morte de seu filho Husayn (680)
já existem documentos contemporâneos aos fatos, mas ainda
assim é comum que os registros apresentem diferenças de acordo com sua origem, seja ela sunita ou xiita. No presente
artigo, as fontes de pesquisa se constituem na
historiografia sobre o tema com a escolha, prioritariamente, de autores muçulmanos
de correntes e nacionalidades distintas, mas
também fazendo uso da bibliografia de origem não-muçulmana, de especialistas no tema. Nosso objetivo não é o de levantar um debate teológico, mas sim o de apresentar uma síntese histórica de uma religião que,
embora afirmando-se muitas vezes una, enquanto
fundamentada nas revelações corânicas e nas palavras de Maomé, na verdade se fracionou em muitas correntes
e interpretações que, ao longo dos séculos, travaram duras disputas entre
si.
A
primeira e maior
fratura: sunitas e xiitas
A história das múltiplas faces do Islã é a de diversas
rupturas, tanto por motivos políticos quanto
em relação a interpretações diferenciadas do Corão e dos Hadith. Inicialmente, enquanto
Maomé era ele
próprio o líder
da nova religião – liderança esta que exercia tanto em questões
de fé quanto político-militares e de expansão territorial – a unidade dos muçulmanos se mantinha sólida
e sem questionamentos. As disputas
que ocorriam eram entre os seus seguidores e aqueles que não o aceitavam como
profeta e arauto das revelações divinas.
Basicamente, eram desavenças entre as tribos, envolvendo comerciantes e também
as autoridades de Meca, muitos se sentindo ameaçados em suas atividades por uma pregação sobre a verdade
revelada de um Deus único.
Centro caravaneiro e ponto de
encontro de mercadores das mais diversas regiões
do Oriente, Meca prosperava na medida em que acolhia
o comércio sem que houvesse restrições às crenças individuais. O temor era
de que a nova religião, que se mostrava de caráter exclusivo, pudesse
criar problemas para
os mercadores que cultuavam os mais variados deuses e que
circulavam livremente pela
cidade, frequentando sem
restrições o que era
então o santuário pagão da Caaba5.
O abandono de Meca por Yathrib, que ficou então conhecida como Madinat al-nabi, a cidade do Profeta (atual Medina), ocorreu em 622, ano que
marca o início do calendário muçulmano.
Trata-se de uma data
fundadora do Islã, a da Hégira (Hijrah, migração ou fuga) e passa a diferenciar o grupo dos demais à sua volta,
enfatizando a ideia
de comunidade (umma) reunida
em torno de seu Profeta.
Politicamente, tal realização totalmente ancorada nas visões de Maomé conduziu a um reforço de sua liderança. Graças a este tipo de centralização ele mesmo acumulava as funções de controle, ditando
as regras para todos
os aspectos da vida
dos muçulmanos e assim conduzia
também a expansão territorial em nome da
fé.
A sucessão de Maomé,
após a sua morte no ano de 632, teve início com Abu Bakr. Bakr era pai de Aisha, uma de suas mulheres, e também seu seguidor de primeira hora. A escolha foi feita de acordo com a prática tribal da região: o conselho
de idosos o indicou porque era considerado um “velho sábio”, detentor dos conhecimentos que lhe haviam sido transmitidos no convívio estreito com o Profeta. Ali, primo e genro de Maomé,
casado com sua filha Fátima, postulava também a sucessão, mas
aceitou Abu Bakr e os dois califas seguintes, Umar e Uthman, vindo a ser ele próprio
o quarto califa,
escolhido no ano de 656, após a morte de Uthman.
Há versões distintas sobre a escolha
dos quatro primeiros líderes, que afinal ficaram conhecidos
como os “califas
bem guiados”, já que pertenciam ao próprio
círculo bem próximo
de Maomé. No entanto, apesar das prováveis desavenças mencionadas por alguns autores,
a verdadeira ruptura
vai se dar só após a morte
de Ali.
De um modo geral,
o processo sucessório não ocorreu sem
discussões e, desde cedo, Ali
e seus seguidores defenderam a posição de que os califas deveriam pertencer à família de Maomé e não se constituiriam apenas
em líderes políticos da comunidade, mas seriam também
divinamente inspirados para guiar os fiéis enquanto intermediários entre eles e Deus.
No entanto, para o outro grupo
que não defendia a sucessão
pelo sangue, mas pelas normas
da tradição das lideranças tribais, o califado era de ordem política e caberia a seu líder garantir a prática da religião sem exercer, porém,
o papel de intermediário com
o divino.
Para Vali Nasr, acadêmico iraniano que tem escrito sobre a história do Islã abordando seus diversos aspectos:
Os sunitas,
cujo nome familiar
é uma abreviação de “ahl al-sunnah
wa’l-jama ah” (povo
da tradição e do consenso), acreditam que
o sucessor do Profeta o sucedia apenas
na sua função de líder
da comunidade islâmica
e não por sua relação especial
com Deus ou pelo chamado
profético e [ acreditam] que o consenso
da comunidade muçulmana que escolheu
Abu Bakr e os sucessivos califas corretamente guiados refletia
a verdade da mensagem islâmica.6
Parece-nos de grande importância destacar que o posicionamento do chamado “povo da tradição”, ou sunitas, se coadunava perfeitamente com as práticas
das tribos da região, que davam ênfase
à chefia política
da comunidade e por isto mesmo tal posicionamento contava com o apoio da maioria das lideranças políticas. No entanto, após a morte de Ali, genro
e primo do Profeta, ocorrida no início de 661, a disputa sucessória tornou-se mais acirrada. Os seus partidários, que ficaram conhecidos como xiit’Ali, partidários de Ali, ou xiitas, e que
defendiam o direito à sucessão só para os descendentes
de Maomé, apontaram primeiramente Hasan filho mais velho
de Ali, para assumir o califado. Este, no entanto, cedeu às pressões
em favor de Muawiya ibn Abi Sufyan, da família Omíada, que se tornou califa dentro
das regras sunitas,
sendo depois sucedido
por seu filho
Yazid. Inconformados, os xiitas já bem organizados insistiram no apoio
a outro filho de Ali, Husayn, como o quinto califa7. Tal não era, porém, a opinião do grupo dominante, o dos sunitas, e após inúmeras
desavenças e confrontos, na batalha de Karbala, no dia 10 do primeiro
mês do calendário muçulmano, no ano de 680, Husayn foi morto
junto com 72 companheiros e membros da família. Tal evento marcou a ruptura completa
entre as duas principais facções
do Islã, sunitas e xiitas.
A morte de Husayn
fez dele um mártir lutando
por uma causa
que era considerada justa por seus
seguidores: a preservação da linhagem do Profeta no comando dos fiéis. O martírio, então, passou a ser emblemático para o
xiismo. No conhecido Festival de Ashura, realizado anualmente em todas as comunidades xiitas
na mesma data em que Husayn foi morto, o seu sofrimento é evocado com grandes manifestações, muitas
vezes com a prática da autoflagelação pelos
participantes, exacerbando uma piedade na qual a rememoração da tragédia ocupa um papel central.
Sérias perseguições aos xiitas,
com diversos assassinatos, foram frequentes durante todo o processo de consolidação do califado. Como bem analisa
Vali Nasr:
Os sofrimentos dos
imãs está no coração da doutrina xiita do martírio (“shahadat”). Assim como
os primeiros santos cristãos aceitaram “a coroa do martírio”, firmes em sua fé e acreditando que seu sangue
seria a semente
da igreja, também os xiitas reverenciam o martírio. Os imãs morreram
como testemunhas da fé, como muitos de seus seguidores. Husayn é popularmente conhecido como o Senhor dos Mártires (“Sayyid al-Shuhada”).
Os xiitas acreditam
que o martírio é a mais alta prova de fé.8
Se, por um lado, a luta pelo poder estava
na origem desta
grande fratura interna do Islã, por
outro lado as divergências de doutrina também
se tornaram importantes, acentuando-se com o passar do tempo. A partir
da divisão entre sunitas
e xiitas, algumas diferenças no papel das lideranças também
foram se consolidando. O expansionismo dos califas, primeiro Omíadas (644-750), depois
Abássidas (750-1258), os
colocava como governantes detentores de
um poder político-militar muito semelhante ao de outros
impérios – o que se evidenciou na conquista da Pérsia e de grande parte
das áreas que pertenciam a Bizâncio.
É possível afirmar, portanto,
que a centralização do poder na corte
califal foi de grande importância para que o Islã alcançasse uma área bem mais ampla do que a Península
Arábica.
O sunismo se estabeleceu, desde os
seus primórdios, associado a um estado centralizado e burocraticamente organizado em torno de uma corte absolutista com uma clara
autoridade político-militar que era exercida pelos
califas. Com relação ao papel da
religião na estrutura do califado, o
libanês Fuad I. Khuri, especialista nas divisões
do Islã e em mudanças culturais, escreve que: “[...]
a soberania do estado é uma condição
necessária para garantir a supremacia
da lei divina e, para tanto, confirmando a religião
(Islã) como uma formulação de política
pública”9. Ao governante, então, não
caberia a atividade
de criar leis mas sim a de cuidar
para que elas fossem aplicadas
e, no caso do Islã, sempre
de acordo com a lei divina,
a shari’a.
Com o califado nas mãos dos
sunitas, os xiitas
viram-se cada vez mais alijados do poder centralizado da corte, reforçando seu relacionamento com o Imã,
que era por eles considerado o líder religioso supremo
da comunidade. Este corte que dá ênfase aos
imãs como líderes religiosos altamente respeitados e responsáveis pela transmissão de ensinamentos é uma característica do xiismo, já que para o sunismo é possível manter uma relação com Deus através
da leitura do Corão,
e os clérigos apenas orientam
as preces. Evidenciam-se, assim,
divergências significativas que com o tempo vão se aprofundando, entre os dois grupos
de muçulmanos.
A escolha de imãs com a responsabilidade de se constituírem em intérpretes da palavra divina
será marcante na história do xiismo e no desenvolvimento, dentro dele, de muitas
ramificações. John Esposito, especialista
em estudos islâmicos, resume
bem a diferença básica
entre ambas as correntes:
A diferença fundamental entre muçulmanos sunitas e xiitas é a doutrina xiita do imanato como distinta
do califado sunita. (...) o califa era o sucessor, escolhido ou eleito,
do Profeta. Ele o sucedia como
liderança política e militar mas não na autoridade religiosa de Maomé. Ao contrário, para os xiitas,
a liderança da comunidade muçulmana é investida no Imã
(líder) o qual, ainda que não seja um profeta, é o divinamente inspirado, livre de pecado, infalível e líder político-religioso da comunidade.10
Em nosso entender,
porém, é fundamental para a análise
histórica apontar que esta diferença não se constituiu em opção inicial
de doutrina, mas foi construída no tempo,
à medida que um grupo
sem vinculação com a descendência do Profeta chegou ao poder e instituiu
um califado centralizado que não abria opções para interpretações distintas do processo sucessório que pudessem ameaçar
a posição dos califas. Com o
poder na mão dos Omíadas, que reinaram em
Damasco e depois dos Abássidas, estabelecendo a nova capital em Bagdá, e com o projeto expansionista de conquista de impérios cobiçados
por suas riquezas,
como era o caso da Pérsia e de Bizâncio, os califas mantiveram um controle político
no qual não havia espaço
para contestação.
Dentro do próprio sunismo, portanto, fica bem
claro que as maiores divergências ocorreram em função de
disputas dinásticas. Até mesmo no caso do califado de Córdoba, que se estabeleceu enquanto após a conquista muçulmana
da Península
Ibérica, tais disputas estão na raiz
de sua fundação, já que sua
origem é consequência da perda de poder dos Omíadas no Oriente Médio. Abû’l-Mutar-rif’ Abd-al-Rahmân bin Mu’âwiya, único Omíada que havia escapado com
vida do massacre de sua família
em Damasco, fugiu para
o Marrocos, onde
viveu durante quatro anos, seguindo depois
para a Al-Andalus. Estabelecido em Córdoba retomou suas ambições políticas e, em 756,
foi proclamado emir, preparando o caminho
para que seus descendentes fundassem o califado em terras ibéricas. Criava-se assim uma
situação peculiar de um califado Abássida que se instalou em Bagdá, após o massacre
de seus oponentes em Damasco,
e de um remanescente Omíada em Córdoba,
no Al-Andalus, ambos muçulmanos sunitas11. Este quadro demonstra,
sem dúvida, que os reinos sunitas,
mesmo com a forte presença da religião, agiam
muito mais em função de seus interesses políticos do que levando em conta diferenças de doutrina, o que viria
a ser motivo de críticas, como veremos mais adiante, por parte dos
sufistas.
No que diz respeito aos xiitas, é possível afirmar
que, por não se constituírem no grupo hegemônico que havia organizado o
estado muçulmano e tomado a liderança
do expansionismo, reforçaram uma religiosidade enraizada no martírio
de Husayn e nos laços
de sangue dos
Imãs Supremos com
o Profeta. Não
estavam excluídas, evidentemente, as distinções de doutrina e, por consequência, também de práticas religiosas, mas
estas foram se articulando historicamente no decorrer do tempo e levando
a novas rupturas dentro do próprio
xiismo.
Xiismo, um Islã de muitas correntes
Uma das mais importantes distinções da vertente
xiita do Islã é a que se refere ao fato de que o xiismo aceita a existência de clérigos e, entre eles, a de um Imã Supremo, descendente
da família do Profeta e imbuído de qualidades tidas como excepcionais,
constituindo-se na liderança dominante para todos os fiéis.
Esta corrente do Islã, no entanto, também
se dividiu a partir do momento em que começaram as discordâncias justamente sobre a escolha
de novos imãs. Nos séculos VIII e IX ocorreram as principais divergências e os três ramos mais importantes, que se originaram de novas rupturas,
passaram a se definir como duodécimos,
ismaelitas e zayditas.
Os duodécimos são assim
denominados porque reconhecem uma linhagem ininterrupta de imãs a partir da escolha de Ali, em
656, até o décimo-segundo deles, Muhammad, que desapareceu em 874. Naquela oportunidade,
o imã Muhammad foi dado como “oculto”
e não como morto, e passou a ser chamado de Muhammad al-Mahdi, o Messias, que deveria retornar
no final dos
tempos. Para os duodécimos, que
se constituem na maioria dos
xiitas, enquanto o Mahdi estiver oculto a comunidade será guiada por especialistas religiosos, também
considerados excepcionais e autorizados a interpretar a lei divina,
a shari’a, de acordo
com o Corão e com os Hadith12.
Os zayditas, são os seguidores de
Zayd ibn-Ali e separaram-se do corpo do xiismo já por
ocasião da escolha
do quinto Imã,
não tendo conseguido a indicação de seu líder Zayd para
a posição de Imã Supremo. Foram sempre uma minoria, dentro do xiismo
mas, em 893, estabeleceram-se como
um estado independente do Yemen, mantendo-se no poder até 1963. Ainda
hoje os zayditas se constituem em aproximadamente 45% da população iemenita13.
Outra dissidência importante dentro
do xiismo é a dos ismaelitas, ocorrida
no século VIII e também originária de disputas em torno da sucessão da liderança para o imanato.
Os ismaelitas seguem
uma linha acentuadamente esotérica do Islã, com diversas
práticas espirituais místicas. No ano de 909 chegaram
ao poder no norte da África, sob a denominação de Fatímidas,
descendentes de Fátima,
filha de Maomé e mulher de Ali. Reinaram na Tunísia
e no sul do Marrocos estabelecendo- se inicialmente no Sahel tunisino
e, entre 969 e 1171, proclamaram o califado do Egito, em clara oposição
aos califas abássidas de Bagdá. Em 1171 o último califa fatímida foi derrubado por Saladino14.
Os ismaelitas passaram por fases muito
distintas em sua história, algumas
de grande violência, como foi o caso do surgimento, dentro
do grupo, da seita
dos Assassinos, que atacava principalmente seus opositores sunitas15. No entanto, a partir do século XIII, abandonaram a violência em todas as suas formas e desenvolveram importantes comunidades em diversos países,
com destaque para a Índia. Atualmente os ismaelitas têm como seu Imã Supremo
o príncipe Karim Aga Khan, um reconhecido mecenas
que aplica parte
de sua renda
na construção e manutenção de escolas, universidades e hospitais dedicados
à comunidade de seus seguidores.
Além destes três ramos mais importantes do xiismo – os duodécimos, os zayditas
e os ismaelitas – outras ramificações foram se desenvolvendo, entre elas a dos alauítas e a dos drusos, tão
diferenciadas do corpo principal
do Islã a ponto dos alauítas chegarem
a participar de “[...] muitos dias festivos dos cristãos e persas, incluindo Natal, Epifania
(6 de janeiro), Páscoa [...] bem como o Ano Novo persa, Nayruz”16. Quanto aos drusos, originaram-se de um grupo ismaelita do califado
fatímida, no século XI,
e elaboraram importantes reformas em sua comunidade, abolindo a poligamia, a escravidão e postulando que o governo
do estado não deveria
se confundir com a religião. Para alguns analistas, suas divergências do Islã são muito grandes, o que os aproximaria de visões de mundo dos gnósticos e dos cristãos17. O grupo druso atualmente
mais conhecido é o que se concentra
nas montanhas do Líbano, mas muitos vivem também em Israel,
na Síria, na Turquia e na Jordânia.
Neste contexto múltiplo no qual havia
a possibilidade de dissidências, ainda
que sob o risco de perseguições pelos
poderes centralizados, o Islã foi
se desenvolvendo em muitas
linhas. Entre as reflexões
filosóficas mais importantes do Islã medieval estão as de Ibn Sina,
também conhecido como Avicena.
Ibn Sina viveu
entre 980 e 1037 e era filho
de um letrado xiita da corrente ismaelita. Deixou diversos textos místicos, entre eles
um que discorre sobre da viagem
da alma de volta a seu lugar de origem. Neste
texto, o filósofo desenvolveu com riqueza de detalhes uma
ideia que trata
da liberação da alma através
da figura de um anjo-sábio, o qual é também um guia na viagem de retorno à origem18.
Ibn Sina fez ainda
diversas reflexões
sobre política e nelas deixou
claro que, em sua opinião,
os profetas e imãs eram os governantes ideais, os líderes ou reis sábios, o que remetia à influência de Platão. Em suas análises,
destacou também que as palavras daqueles
que tivessem recebido
a iluminação seriam
sempre as de maior autoridade. Ibn Sina valorizava a revelação
divina igualmente enquanto
fonte da ética para governar os
fiéis. Só um “iluminado” teria
condições de guiá-los. De certa forma,
fez então com que as revelações e as profecias autenticassem a sharia que, no âmbito do Islã, sempre
foi considerada necessária para a sobrevivência da sociedade19.
Em sua obra, é central também o
papel do imaginário em seu sentido mais amplo,
pois é através dele que as mensagens divinas podem ser entendidas pelos homens. Para Ibn
Sina, o profeta, enquanto transmissor das palavras de Deus para
a humanidade, lançava mão necessariamente de imagens das quais ele era o detentor dos
sentidos e que propiciavam a inteligibilidade das visões20. O especialista em monoteísmos F. E. Peters
não tem dúvidas
ao qualificar a filosofia de Ibn Sina
de esotérica e acredita
que é provável que sua
filiação se aproximasse do misticismo sufi ou da corrente xiita ismaelita, porém nem todos os estudiosos da obra do filósofo concordam
e alguns o apresentam como um xiita
duodécimo. A questão, porém,
está em aberto,
já que ele próprio não
declarou com clareza
sua opção21.
Ibn Sina seguiu parcialmente a
ortodoxia do Islã, para a qual Maomé era “o selo dos
profetas” o que,
em princípio, não abriria
espaço para nenhuma
profecia posterior.
No entanto admitia
a existência de “iluminados” que faziam uma ponte entre a mensagem
divina e os homens simples.
E se, para o Islã,
o primeiro profeta foi Adão e o ultimo Maomé, para o xiismo vários
imãs, divinamente guiados, seriam os herdeiros das qualidades excepcionais que eram transmitidas desde Ali. Tal raciocínio abria
espaço, sem dúvida, para
a ocorrência, então, de um novo
ciclo de profecias, o que não era aceito pelos
sunitas mas encontrava espaço entre os pensadores xiitas22.
Na atualidade, porém, uma das discussões mais presentes
no xiismo é de caráter político e não filosófico. No centro dos
debates está o Irã que,
afirmando-se como um governo republicano, ainda
assim não abre mão do seu caráter teocrático, o que tem levado a
acirradas divergências dentro do próprio país. É interessante lembrar,
ainda, que o xiismo só foi adotado
como religião oficial
iraniana a partir
da dinastia safávida
e sua imposição se iniciou
em 1501, quando
Isma’il (que reinou de 1501 até 1524) conquistou o poder e reunificou a
região da Grande Pérsia como um estado independente. O sucesso da nova dinastia,
que governou até o século
XVIII, favoreceu largamente o desenvolvimento do xiismo, impulsionando também a arquitetura e as artes a ele
relacionadas23.
Anteriormente sunita, a população
do Irã foi obrigada a se converter em massa ao xiismo mas os safávidas souberam associar esta corrente do Islã também
a um sentido de diferença, de identidade iraniana, alcançando grande sucesso e
mantendo os turcos como seus inimigos, sem ser, portanto, incorporados ao império otomano24. A história do Irã foi conturbada,
mas o xiismo permaneceu como religiosidade identitária, diferenciando-o da maioria dos
muçulmanos à sua
volta.
Quando, muitos séculos depois,
Ruollah Khomeini, respeitado clérigo
xiita da corrente duodécima começou a organizar – associado a outros setores
da sociedade iraniana – o que viria a ser a revolução
islâmica para derrubar
o Xá Reza Pahlevi, ele passou também a divulgar sua própria interpretação acerca da organização de um estado islâmico.
As raízes do excepcionalismo iraniano, em virtude de sua opção xiita, já estava impregnada na história do país, e levantar a bandeira religiosa contra uma monarquia que se aproximava muito do Ocidente
foi o caminho que Khomeini
encontrou para motivar
a população a favor da República Islâmica. Sob a sua liderança,
que evocava o imaginário coletivo iraniano,
antiocidental, um novo Estado foi instalado a partir de 1979. A visão de Khomeini, no entanto,
sobre política e religião,
não alcançava o consenso mesmo
entre os xiitas. Uma das mais importantes características do xiismo era, até então, a de conviver
com poderes políticos estabelecidos, algumas vezes influenciando-os ou simplesmente evitando envolvimentos muito diretos nas questões específicas de Estado.
Tratava-se de uma religião nacional, mas não necessariamente de uma religião
que tivesse interesse direto em participar do poder político25.
A ascensão de Khomeini
como líder não apenas religioso mas também político representou uma
transformação na maneira como os xiitas viviam o seu papel na sociedade e, ainda que conseguindo inúmeros
adeptos tendo como principal objetivo a derrubada do Xá, sua leitura do Islã estava
longe de ser a que havia prevalecido entre os letrados no decorrer de muitos séculos.
Procurando a legitimação
como o Líder Supremo dos revolucionários, que viria ocupar
todos os espaços do comando político, militar
e religioso, Khomeini incluiu
na Constituição da República
do Irã de 1979, a ideia central de um livro que havia publicado em 1970, acerca do governo islâmico26. De
acordo com a sua concepção, um destacado jurista
seria indicado como Líder Supremo do país e governaria com plenos poderes
para proteger acima de tudo o Islã, e para tal faria uso da lei de origem divina, sem
necessitar de nenhuma
outra além da shari’a. Um dos artigos
da referida constituição estabelece explicitamente que após a morte do “grande líder da revolução islâmica universal e
fundador da República Islâmica do Irã” (ele próprio)27, a escolha do novo Líder
Supremo passará a ser atribuição de um grupo de experts que obrigatoriamente apontarão uma pessoa com domínio da jurisprudência (fiqh).
Muitos clérigos e outros letrados
iranianos discordaram de Khomeini sobre o poder constitucional que estava sendo dado
ao Líder Supremo, entre eles os respeitados aiatolás
Abdul-Qassim Khoei e Mohammad Hussein Fadlallah. Este último, embora
tenha sido um entusiasta da revolução iraniana
em muitos de seus aspectos,
fez duras críticas ao fato do país correr
o risco de ser dirigido por clérigos com poderes absolutos o que, em sua opinião, não se coadunaria com a doutrina xiita28.
É importante destacar que, dado o
peso da revolução iraniana de 1979 e o papel nela desempenhado por Khomeini, a
palavra “xiita”, que deveria apenas nomear uma ramificação do Islã oriunda
do grupo dissidente que, no século
VIII, se tornou seguidor de Ali e dos imãs descendentes da família de Maomé, passa,
então, a ser ressignificada e associada à ideia de comportamentos violentos e totalitários. No entanto,
foi justamente dentro
do xiismo que
se verificaram aberturas de grande importância para distintas interpretações do Corão e de outros textos, como os Hadith, interpretações estas
de caráter muitas
vezes afastadas da ortodoxia sunita.
Em nossa análise, afirmamos que Khomeini criou um divisor
de águas na imagem do xiismo e o seu peso político
e suas ações podem ser considerados como
fatores fundamentais na maneira como atualmente os xiitas são vistos, tanto
dentro do Islã quanto na comunidade não
islâmica.
Numericamente, os xiitas são apenas 10 a 13% do total de 1 bilhão e quinhentos mil dos muçulmanos. No entanto,
em alguns países,
são maioria, como é
o caso justamente do Irã mas também do Iraque, do Azerbaijão, de Bahrein e provavelmente do Líbano29. As estatísticas apresentam divergências e algumas publicações referem-se a 15% de xiitas já que, na
verdade, poucos países do Oriente Médio têm mantido seus censos de população atualizados. O que importa,
porém, para a análise histórica é entender que não se trata, de modo algum,
de uma pequena
dissidência no corpo
maior do Islã e sim de uma ruptura que depois se ramificou em diversas correntes que romperam, de modo muito
claro, com a homogeneidade inicial pretendida por Maomé e seus primeiros seguidores.
A história da religiosidade muçulmana é bastante densa e complexa
e, no decorrer de muitos séculos, surgiram pensadores que elaboraram reflexões de cunho teológico-filosófico de grande riqueza,
vindo a se constituir numa linha do Islã que transcendeu a divisão entre sunitas
e xiitas e ficou conhecida como sufismo.
O
aporte místico do sufismo
A partir das últimas
décadas do século
VII e início do século
VIII, o califado
se afirmava, cercado
pelo luxo de uma corte cada vez mais poderosa
e distanciada das necessidades de seus súditos.
A dinastia Omíada
enfrentava, então, inúmeras críticas, que não partiam apenas dos xiitas,
perseguidos pelo poder que estava nas mãos dos sunitas. Entre pensadores de ambas as correntes havia um grande descontentamento pelo fato de sucessivos califas
não agirem como muçulmanos piedosos
e verdadeiros seguidores dos preceitos
de Maomé.
Os primeiros sufistas eram,
portanto, muçulmanos que criticavam o apego aos bens terrenos e que valorizavam a prática do ascetismo. É bem aceito
pelos especialistas que a denominação “sufi” tem origem
na palavra lã, em árabe suf, material do qual eram feitas, na fase inicial do movimento, as vestimentas dos sufistas, em clara oposição
às sedas e outros tecidos
de luxo usados
nas cortes. Buscando uma definição ampla para o sufismo
podemos dizer que não se trata de uma seita e nem de uma ruptura no Islã,
mas de um caminho que conduz a um encontro místico e intenso com Deus,
através do despojamento de todos os luxos e de determinadas práticas e maneiras
muito particulares de vivenciar a religiosidade. Esta busca por um Islã que é considerado místico
e repleto de sentidos
não evidentes para todos, e que almejava
o contato pessoal
e direto com o divino, teve entre seus
adeptos tanto sunitas
quanto xiitas e atingiu todas
as camadas da população de diversos países
muçulmanos. Conforme bem
destaca John Esposito:
A junção de devocionalismo com ascetismo transformou o sufismo de sua relativamente limitada
base de elite
em um
movimento que atraiu e abraçou todos os estratos da sociedade [...].
Ainda que suas origens e fontes (interpretações sufistas do Corão e da vida
do Profeta) fossem claramente islâmicas,
influências externas foram absorvidas,
de eremitas cristãos do Egito e do Líbano,
do monaquismo budista
do Afeganistão, do devocionalismo hinduísta e do neo-platonismo.30
Certamente o fecundo encontro de culturas que
ocorreu através dos
caminhos da Rota da Seda e o fato de que muitos
letrados no Oriente
Medieval eram também viajantes contribuiu para que
houvesse um rico
intercâmbio não apenas de mercadorias mas também de ideias31, e os sufistas
foram especialmente receptivos à incorporação de práticas diversas
em suas buscas
da experiência direta da divindade. Sua
organização se deu, desde o início, em
ordens ou confrarias em torno de um mestre inspirador e orientador das diversas práticas do grupo. Dependendo
do mestre, da origem
e da cultura à qual
pertence o grupo, as práticas são variadas, embora as mais frequentes envolvam
recitação de trechos do Corão, dos
Hadith ou dos muitos nomes de Deus, de forma ritmada, como se fossem mantras, além de danças
e cantos.
Tanto por suas críticas ao poder político quanto por não
seguir a religião de maneira ortodoxa, os sufistas foram
muitas vezes perseguidos. A partir dos séculos XI e XII, porém, o chamado “califado
universal” se desintegrou, cresceu a rivalidade entre os estados muçulmanos e, neste contexto histórico de grandes transformações no Oriente Médio e no norte da
África, as ordens ou confrarias sufistas se fortaleceram.
Um dos mais conhecidos mestres sufistas
é Jalal al-Din Muhammad
Rumi (1207-1273), respeitado jurista, poeta e místico
muçulmano de família
persa cujas obras alcançaram enorme
sucesso no mundo
todo. O professor Franklin Lewis,
da Universidade de Chicago,
especialista e biógrafo de Rumi, destaca
que o sufista é conhecido
entre os muçulmanos pelo nome de Mawlavi, em persa, ou de Mevlevi, em turco, que
significa “nosso mestre/ líder”, palavra que deu o nome à ordem fundada por seu filho,
após a sua morte32. A ordem Mevlevi
é também conhecida como a dos “dervixes rodopiantes”33 que
alcançaram fama por
sua impressionante dança em círculos. Para Rumi
a música e a dança eram meios para entrar em contato com o divino, para atingir o êxtase dos místicos.
Em Konya, na Anatólia, onde Rumi
viveu parte de sua vida e veio a falecer, o
seu túmulo passou a ser – e se mantém até hoje – um local de importante peregrinação para os muçulmanos, tanto xiitas quanto
sunitas, que são adeptos do sufismo.
Esta é, também,
uma das importantes características dos sufistas, a de exaltar seus mestres,
sendo que alguns
deles alcançaram características de “santos”, aproximando-se
muito da piedade cristã, mas também incorporando crenças e práticas do paganismo. No Marrocos e no norte
da África tais características são muito
evidentes. O antropólogo Clifford Geertz que estudou o Islã em diversos contextos históricos, entre eles
a Indonésia e o Marrocos, observou a influência de religiosidades locais que foram
incorporadas ao sufismo.
Segundo ele:
A despeito
das ideias sobre
o além e das atividades tantas vezes associadas a ele, o sufismo como realidade
histórica consiste em uma série
de experimentos diferentes e até mesmo contraditórios, a maioria ocorrendo entre os séculos IX e XIX,
no afã de trazer o islã (ele
próprio longe de ser uma sólida
unidade) para uma relação efetiva
com o mundo, tornando-o acessível a seus
seguidores, e estes
acessíveis a ele. No Oriente
Médio isto parece
ter significado sobretudo reconciliar o panteísmo árabe
com o legalismo do Alcorão; na Indonésia, recolocar o
iluminacionismo hinduísta em expressões árabes; na África
Ocidental, definir sacrifício, possessão, exorcismo e cura, como rituais muçulmanos. No
Marrocos, significou fundir as concepções genealógica e miraculosa da
santidade – canonizando os “hommes fétiches”34.
Tais considerações, apesar de bastante coerentes com o que todas as pesquisas evidenciam, muitas
vezes não são aceitas por alguns autores muçulmanos que insistem em ver o Islã como puramente ligado
às revelações divinas recebidas por Maomé, e aos
Hadith do Profeta, fazendo destes textos uma
leitura que abre pouco
espaço a interpretações fora
da ortodoxia35. Abdelwahab Meddeb, no entanto, é um escritor e acadêmico árabe
que enfatiza também
as influências externas do sufismo e o considera uma espiritualidade poderosa
pelo fato de trazer em si tradições espirituais
anteriores. Ao afirmar com muita clareza
que o Islã “soldou” tradições
díspares, considera que:
Em razão
de uma tal
situação [da fusão de outras tradições espirituais], o “maior mestre do sufismo”, Ibn ‘Arabi (Murcia, 1165-Damasco, 1240), teve direito a associações múltiplas. A obra é tão poliforme
e aberta que seu autor foi percebido tanto como um “cristão inconsciente” (pelo jesuíta espanhol
Miguel Asín Palacios) quanto como um neoplatônico (pelo
egípcio A. E. Affifi, discípulo de Reynold A. Nicholson).
Fica muito evidente que os
cruzamentos culturais são uma realidade – aliás para todas
as religiões e não apenas para o Islã – e dos múltiplos encontros surgem sempre as transformações, com aportes
variados. A interferência dos poderes políticos também
altera, muitas vezes,
a liberdade de práticas religiosas e, no caso dos sufistas, foi o estado
laico da Turquia que colocou os maiores empecilhos ao seu desenvolvimento no mundo contemporâneo. A ordem Mevlev, dos “dervixes rodopiantes”, não
escapou às regras do laicismo estabelecidas por Atatürk. Ela
foi fechada, junto
com outras ordens
sufistas, todas elas
proibidas de ter
sede própria e de realizar
reuniões ou quaisquer cerimônias públicas, inclusive a tão apreciada dança circular dos dervixes. Em 1225 o mausoléu de Rumi, que atraía um grande número de peregrinos, foi também fechado
à visitação mas acabou sendo
reaberto dois anos
depois como museu,
dado o seu
prestígio no mundo todo.
As restrições aos sufistas foram, aos poucos, sendo abrandadas na Turquia, já que havia interesse também em manter algumas
manifestações que tinham repercussão
internacional. A partir
de 1950, vendo
que os “dervixes rodopiantes”36 eram
considerados também uma atração turística, o governo turco
decidiu autorizar suas apresentações em datas específicas e em certas
festividades. Finalmente, em 2005, a UNESCO proclamou sua cerimônia de dança como
sendo “Obra Prima
do Patrimônio Oral
e Intangível da Humanidade”.
No Ocidente o sufismo
se disseminou com
rapidez e despertou grande interesse principalmente por parte
de diversos grupos
esotéricos que pouco
se referem às fontes originais e muitas vezes
fazem de Rumi
uma leitura superficial, deturpando seu conteúdo. Muitos
destes grupos sequer
sabem que se trata de um autor
que era muçulmano devoto e que remetia efetivamente ao Corão em quase toda
a sua obra. Este é, no entanto, um dos lados
inevitáveis de seu
sucesso e do alcance de seus escritos, que tocam a muitos e são alvo de interpretações distintas.
No Irã, a memória
de Rumi continua sendo prestigiada e ele é visto sobretudo como uma grande
figura da literatura persa. Em alguns
momentos, porém, têm havido choques
entre o poder central
e os dervixes iranianos, principalmente porque o sufismo
critica os governos
teocráticos e recusa que a política
possa influenciar a religião.
O sufismo, no entanto,
é largamente praticado no país e, para os xiitas em geral, a ideia
de uma leitura esotérica da palavra divina
e de manifestações místicas não lhes é estranha.
Conclusão
Nos seus muitos séculos de existência o Islã passou por diversas
rupturas e transformações, especialmente importantes no período compreendido entre os séculos VII e XIII.
Uma grande variedade de práticas dá testemunho também
da multiplicidade
de formas de piedade individual, nem sempre bem aceitas pela ortodoxia mas
nem por isto
pouco relevantes. Ascetismo, autoflagelação, culto
aos santos e, inclusive, estrutura clerical, no caso do xiismo, costumam sofrer críticas do sunismo estrito mas, sem a menor dúvida,
se constituem em presenças
fortes em diversas correntes que são parte
integrante do Islã.
Acreditamos que o sufismo
pode ser considerado emblemático da diversidade já que entre
seus seguidores há representantes do
sunismo e do xiismo, bem como praticantes imbuídos de maior sincretismo, como os do norte da África. Pelo fato
do Islã ser
ainda hoje a religião oficial
de diversos estados, é visível uma tendência, em grande
parte de seus textos,
de homogeneidade na descrição de seus princípios, dificultando para a pesquisa
a diferenciação entre o que é aceito por suas autoridades e o que é efetivamente praticado. A ortodoxia, porém,
não consegue encobrir
a riqueza do intercâmbio de ideias desde
que se lance, sobre o Islã, um olhar atento.
O estudo da religiosidade muçulmana de suas múltiplas
faces, porém, não deve, em nosso entender, incluir
grupos como Al Qaeda e outros que estão relacionados ao que se denomina “Islã
político” e que instrumentalizam a religião para suas
finalidades específicas. Trata-se, nestes
casos caso,
de um outro tipo de fenômeno, dentro do contexto das disputas políticas, das questões de formação de nacionalidade e das lutas pelo poder. O enfoque,
então, no caso da pesquisa sobre tais grupos
– que não deixa de ser importante – deve ser voltado para a análise
das diversas
facções engajadas em lutas e bandeiras que
se apropriam da religiosidade, seja ela em sua vertente sunita ou xiita,
para justificar suas
agendas.
Nosso trabalho, apresentado neste artigo, procurou
dar uma visão
geral de uma religiosidade que
tem muitas faces e que permite, por isto mesmo,
uma grande riqueza de interpretações. Pesquisas específicas sobre vários temas
aqui apontados poderão desvendar um leque ainda
maior de facetas
e de interações com outras formas de espiritualidade. O campo de investigação é amplo e relativamente pouco explorado sob
a ótica do historiador.
RESUMO
ABSTRACT
Keywords: Islam; Sunnism; Shi’a; Sufism.
1 – Doutora em História pela Universidade de Brasília. Professora da Pós-Graduação Lato Sensu do UniCeub. Pesquisadora do Grupo de Pesquisa Officium (UFPB) e do Grupo de Estudos Persas/ Middle Persian Studies (UnB). E-Mail: <carmenlicia@gmail.com>.
2 – Utilizaremos a datação do calendário ocidental para facilitar as relações com o contexto histórico geral. Os autores árabes e iranianos que citamos neste artigo e que escreveram suas obras em idiomas ocidentais e não em árabe ou em persa também fizeram uso das datas ocidentais.
3 – Al-TABARI, Muhammad bin Jarir. The victory of Islam: Muhammad at Medina. Tradução de Michael Fishbein. Albany: State University of New York; Suny Press, 1997. . The last years of the Prophet: the formation of the State. Tradução de Ismail K. Poonawala. Nova York: State University of New York, Suny Press, 1990.
4 – VERNET, Juan. As origens do Islã. Tradução de Maria Cristina Cupertino. Rio de Janeiro: Editora Globo, 2004, p. 55.
5 – ESPOSITO, John L. Islam: the
straight path. Nova York; Oxford:
New York University Press, p. 08-09.
6 – NASR, Vali. The Shia revival. Nova York: W. W. Norton & Company, 2006, p. 38. Texto original: “Sunnis, whose familiar name is short for ahl al-sunnah wa’l-jama ah (people of tradition and consensus), believe that the Prophet’s sucessor was succeeding only to his role as leader of the Islamic community and not to his special relationship with God or prophetic calling, and that the consensus of the Muslim community that selected Abu Bakr and the succeeding Rightly Guided Caliphs reflected the truth of the of the Islamic message”.
7 – É sempre importante ter presente que Ali era primo de Maomé mas também seu genro, já que era marido de sua filha, Fátima. Os filhos de Ali e de Fátima se constituíam, portanto, em herdeiros por direito de sangue e, segundo os xiitas, podiam ser indicados como califas.
8 – NASR, The Shia…, p. 57. Texto original: “The sufferings of the imams lie at the heart of the Shia doctrine of martyrdom (shahadat). Just as early Christian saints accepted ‘the crown of the martyrdom’ steadfast in their faith and believing that their blood would be the seed of the church, so do Shias revere martyrdom. The imams died, as witnesses to the faith as did many of their followers. Husayn is popularly known as the Lord of the Martyrs (Sayyd al-Shuhada). Shias believe that martyrdom is the highest testament of faith”.
9 – KHURI, Fuad I. Imams and emirs: State, religion and Sects in Islam. Londres: Saqi Books, 2006, p. 99. Texto original: “The sovereignty of the state is a necessary condition guaranteeing the supremacy of the divine law, for that matter, upholding religion (Islam) as a formulation of public policy.”
10 – ESPOSITO, John L. Islam, the... Nova York /Oxford: Oxford University Press, 1998, p. 43. Texto original: “The fundamental difference between Sunni and Shii Muslims is the Shii doctrine of the imamate as distinct from the Sunni caliphate. […] the caliphe was the selected or elected successor of the Prophet. He succeeded to political and military leadership but not to Muhammad’s religious authority. By contrast, for the Shii, leadership of the Muslim community is vested in the Imam (leader), who, though not a prophet, is the divinely inspired, sinless, infallible, religiopolitical leader of the community”.
11 – Sobre a conquista e os reinos muçulmanos na Península Ibérica, ver: PALAZZO, Carmen Lícia. “Muçulmanos e cristãos em Al Andalus: uma identidade que transcende o corte entre Oriente e Ocidente”. Universitas Humanas, vol. 8, n. 2, jul./ dez. 2011, p. 01-17. Normalmente se aceita a data de 711 como o início da conquista muçulmana da Península Ibérica, mas o emirado de Córdoba data de 756 e só passa a ser califado a partir de 929. Abd-al-Rahmân I manteve-se como emir e nunca buscou o título de califa, provavelmente porque os eventos da derrota do Omíadas pelos Abássidas no Oriente Médio ainda eram muito recentes. O primeiro governante de Córdoba a se intitular califa foi Abd-al-Rahmân III (o termo Al-Andalus refere-se a toda a Península Ibérica muçulmana e não apenas à região da Andaluzia).
12 – A melhor obra para se entender o xiismo duodécimo continua sendo a de Henri Corbin. CORBIN, Henri. En Islam Iranian: aspects spirituels et philosophiques, le Shi’ism duodécimain. Paris: Gallimard, 1991.
13 – NASR, Seyyed Hossein. The heart of Islam. Nova York: Harper-Collins, 2004, p. 71.
14 – Sobre a história dos fatímidas: YAACOV, Lev. State and society in Fatimid Egypt. Leiden: E. J. Brill, 1991. Ver especialmente o capítulo 8, “Ismailism in fatimid Egypt”, p. 133-152.
15 – NASR, The heart…, p. 74.
16 – KHURI, Imans…, p. 198. O texto original: “[…] many Christian and Persian holidays, including Christmas, Epiphany (6 January), Easter […] as well as the Persian New Year, Nayruz”.
17 – “The Druzes: One Thousand Years of Tradition and reform”. International Studies and Overseas program’s Newsletter, vol. 21, n. 1, out. 1998.
18 – AVICENA. Avicena: A origem e o retorno. Tradução de Jamil Ibrahim Iskandar. Porto Alegre: Edipucrs, 1999.
19 – AVICENNE. “Épitre sur les parties des Sciences intelectuelles d’Abu Ali AL-Husayn Ibn Sina”. In: JOLIVET, Jean e RASHED, Roshdi (org.) Études sur Avicenne. Paris: Les Belles Lettres, 1984, p. 145.
20 – AVICENNE. Psychologie d’Ibn Sina d’après son oeuvre As-Sifa II. Praga: Ed. de l’Académie Tchécoslovaque des Sciences, 1956.
21 – Ver: PETERS, F. E. Os monoteístas. São Paulo: Contexto, 2008. Ver também: ATTIE FILHO, Miguel. Os sentidos internos em Ibn Sina. Porto Alegre: Edipucrs, 2000.
22 – CORBIN, Henry. Histoire de La Philosophie islamique. Paris: Gallimard, 1986, p. 51-54.
23 – FAHRAT, May. “Shi’I Piety and Dynastic legitimacy: Mashhad under the Early Safavid Shahs”. Journal of the International Society for Iranian Studies, vol. 47, n. 2, mar. 2014, p. 201.
24 – KEDDIE Nikki R. Iran: religion, politics and society. Londres: Routledge, 1983, p. 91.
25 – MOMEN, Moojan. An introduction to Shi’i Islam. New Haven: Yale University Press, 1985, p. 193.
26 – Para um estudo mais aprofundado sobre este tema é fundamental a leitura dos escritos de Ruhollah Khomeini, o que pode ser feito na tradução de Hamid Algar que foi revista e autorizada pelo próprio Khomeini: Islam and Revolutions: Writings and Declarations of Imam Khomeini. Berkeley: Mizan Press, 1981.
27 – Constituição da República Islâmica do Irã, artigo 107. Texto original: “[…] great leader of the universal Islamic revolution, and founder of the Islamic Republic of Iran […]”. Disponível em:<http://www.iranonline.com/>. Tradução em Língua Inglesa autorizada pelo governo iraniano. Acesso em: 30 mar. 2014.
28 – Sobre este tema, ver a excelente análise de Phillip Smyth: SMYTH, Phillip. “The Battle for the Soul of Shi’ism”. Middle East Review of International Affairs, vol. 16, n. 3, Outono de 2012. Disponível em: <http://www.gloria-center.org/>. Acesso em: 30 mar. 2014.
29 – Para mais detalhes sobre as estatísticas, ver: <http://www.pewforum.org/2009/10/07/mapping-the- global-muslim-population/> Acesso em: 30 mar. 2014.
30 – ESPOSITO, Islam, the…, p. 102. Texto original: “The joining of devotionalism with ascetism transformed Sufism from its relatively limited elite base into a movement that attracted and embraced all strata of society […] Though its origins and sources (Sufi interpretation of the Quran and life of the Prophet) were clearly Islamic, outside influences were absorbed from the Christian hermits of Egypt and Lebanon, Buddhist monasticism in Afghanistan, Hindu devotionalism, and Neoplatonism”.
31 – PALAZZO, Carmen Lícia. “Rota da Seda: caminhos de mercadores e peregrinos”. In: MACEDO, José Rivair (org.). Os viajantes medievais da Rota da Seda. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2011, p. 55-68.
32 – A biografia escrita pelo professor Lewis é uma excelente introdução aos estudos sobre Rumi. Ver: LEWIS, Franklin. Rumi Past and Present, East and West: the Life, teachings, and poetry of Jalâl al- Din Rumi. Londres: Oneworld Publications, 2008.
33 – Darvish/ dervish é uma palavra persa para designar um religioso mendicante. Origina-se da palavra dar, que significa porta em farsi e pode ser entendida, para definer os dervixes, como “quem vai de porta em porta”. HUGHES Dictionnary of Islam. Londres: s.r., 1885, p. 69.
34 – GEERTZ, Clifford Observando o Islã: o desenvolvimento religioso no Marrocos e na Indonésia. Rio de Janeiro: Zahar, p. 59-60. Sobre os hommes fetiches, santos guerreiros do Marrocos, ver: BEL, Alfred. La Religion Musulmane en Berbérie. Paris: Librairie Orientaliste P. Geuthner, 1938, p. 389.
35 – Ver, sobre a opinião mais ortodoxa: NASR, The heart…, p. 213.
36 – Sobre a cerimônia da dança dos
dervixes Mevlev ver:
SCHIMMEL, Annemarie. Mystical dimensions of Islam. Chapel Hill: University of North Carolina
Press, 1975, p. 325.
REFERÊNCIA:
PALAZZO, Carmen Lícia. As múltiplas faces do Islã. In: Sæculum - revista de história. [30]. João Pessoa. jan./jun. 2014. p. 161-176.
Disponível em: <http://periodicos.ufpb.br/index.php/srh/article/view/22242>.
Acesso em: 25 out. 2017.
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