Por Prof.ª
Dr .ª Maria José Cantista*
1. Compreensão
sincrónica e diacrónica da disciplina
A programação de uma disciplina como a de Filosofia
Contemporânea reveste-se da maior complexidade.
São múltiplos os factores que concorrem para tal.
Por um lado, os decorrentes da índole de uma
cadeira que congrega, quer uma vertente historiográfica, quer uma vertente
sistemática.
Delinear os conteúdos programáticos, bem como a
forma ajustada de os impartir aos alunos, exige cautelas reflexivas e
didácticas, a fim de que nenhum dos pendores se veja descurado.
Há, sem dúvida, uma linha diacrónica, uma vertente
historiográfica da filosofia, a exigir métodos preferentemente descritivos do
pensamento dos Autores e da sua inserção nas tendências de uma época (no seu
contexto histórico, historiológico, sóciopolítico e cultural). Há ainda, e
nesta ordem de ideias, a contrastação de épocas e autores relativamente ao
passado (próximo e remoto), para que a sua compreensão seja diferenciadora e ponha em evidência o
«ineditismo». O tema do novo é, no
entanto, controverso em filosofia, prende-se com o problema do «progresso», num
saber desta índole.
A detecção sincrónica da problemática essencial –
transhistórica – deve, pois, acompanhar e entrecruzar a abordagem diacrónica.
Só assim se poderá equacionar
filosoficamente a história da filosofia e compreender como e quando um saber
transepocal se plasma em aculturações, sem nelas se esgotar.
Com efeito, a restrição epocal de um saber racional
discursivo, que tem por tema algo de universal, de transcendental – o fundamento – exige, sim, diferenciações
sistematizadoras, mas proíbe a sectorialização, a atomização, enfim, a
absolutização de qualquer sistema.
A demarcação temática da disciplina que nos ocupa –
filosofia contemporânea – prende-se,
portanto, e em ordem à sua matização, quer com uma vertente sistemática, quer
com uma vertente historiográfica. Todo o discurso
racional acerca do fundamento como o
saber filosófico apresenta características temáticas e sistemáticas inerentes à
sua unidade e universalidade.
Por isso mesmo, um programa de filosofia
contemporânea que pretenda ser filosófico, não deverá iludir, nem a elaboração
temática, a detecção do nuclear (das noções matriciais da filosofia,
trans-históricas), nem a sua contextualização numa determinada época, no
presente caso, a contemporânea. O método utilizado, ao programar uma cadeira de
índole filosófica, mas também de história da filosofia deve, pois, conjugar
(reiteramos) a sincronia e a diacronia. O tratamento analítico de autores e
correntes paradigmáticas deverá aparecer como expressão consequente dos núcleos
matriciais da filosofia. O que se designa por filosofia contemporânea, muito embora se prenda directamente com o
universo de discurso da nossa época, transcende-o inexoravelmente. Com efeito,
o tema da filosofia contemporânea é o
tema da filosofia, em repetição insistente de si, interminável. Por isso mesmo,
toda e qualquer demarcação histórica, tomada num sentido demasiadamente restritivo,
e desinserida do universo inactual inerente ao filosofar, seria ilegítima,
porque não filosófica. A elaboração de um programa de filosofia contemporânea – se deve incidir preferentemente nas
sistematizações filosóficas hodiernas – deverá sempre aspirar a uma visão
integradora, dado que, repetimos, o tema
ou fundamento da filosofia é transcendental, universalizante.
2 Demarcação
do domínio temático da disciplina e problema das relações entre filosofia e
história da filosofia
A elaboração de um programa de filosofia
contemporânea exige, antes de mais, a demarcação do domínio temático, histórica
e sistematicamente identificável com tal designação.
Ao falar de filosofia contemporânea, o primeiro
problema suscitado é o das relações da filosofia
e da história da filosofia. Dois
conceitos que se não confundem nem identificam, ainda que se relacionem
intimamente. Se bem é certo que a filosofia não se identifica com a sua
história – a investigação acerca do fundamento não é de índole histórica e, por
isso mesmo, o saber filosófico nunca se esgota num plano cultural –, se bem é
certo que o saber filosófico atravessa ambos os planos e se dirige, por um lado
ao núcleo livre do existir humano, e, por outro lado, ao tema do fundamento transcendental,
não é menos certo que a filosofia, quer enquanto actividade livre do homem,
quer enquanto resultado formal dessa actividade (como conjunto sistematizado de
proposições) se plasma historicamente. Neste sentido, ao modo como a filosofia
se relaciona com a história poderíamos chamar perenidade. Este é um tema cuja
consideração é capital, quando se trata de elaborar um programa da índole do
que nos ocupamos.
Como afirma Heidegger, ilustrando o carácter
trans-histórico do saber filosófico, o lema da filosofia é, ainda hoje, o que
enunciou Parménides ao afirmar a correspondência do ser e do pensar. E o
problema nuclear da filosofia continua a ser, o da significação da cópula (ser e
pensar).
Esta transcendência do saber filosófico
relativamente ao contexto histórico-cultural significa, portanto, que, quer o
fundamento, quer o saber que busca o fundamento, se não esgotam em qualquer
aculturação. O fundamento não é algo objectivamente dado (como totalidade ele é principial e último), e o pensamento
que com ele se avém é essencialmente infinito (muito embora o homem que pensa
seja finito). Com efeito, a realidade fundante não está dada em presente: o
dado é certamente o que «há», o que existe, isto é, o objectivado na mente. Mas
o fundamento não se confunde com este dado, e não pode ser captado
imediatamente, sem contradição; temos portanto que o buscar, e nessa heurística
consiste precisamente o discurso racional. No entanto, a filosofia como saber
que se busca, como discurso racional acerca do fundamento, tem um começo
histórico indissoluvelmente ligado à descoberta grega de uma dimensão humana
capaz, em princípio, de estrita correspondência com o real na sua totalidade:
essa dimensão humana é o nous, o
intelecto. Forma-se, a partir de então, um universo de sentido, um discurso
coerente acerca do fundamento.
Podemos dizer que a filosofia se apresenta assim,
ao longo da sua história, como um conjunto de sistemas ou universos de sentido.
O processo de aparecimento, desenvolvimento e maturação de cada um destes
universos que se assinalam como marcos ou pilares referenciais da filosofia na
sua história é de tal índole, que nenhum deles se fecha ou completa de um modo cabal.
Se isso acontecesse, então os sistemas filosóficos seriam essencialmente históricos,
não escapando à sorte da caducidade. Mas a filosofia não se deu, de uma vez por
todas, no passado. Pelo que podemos afirmar ainda hoje, por exemplo, a
actualidade de Aristóteles. Isto quer dizer que, muito embora os sistemas de
filosofia se desenvolvam no tempo, não são obras conclusas, independentes e
separadas, entre as quais medeiam relações extrínsecas; nenhum sistema é uma
construção suficiente, e todas comunicam, no fundo, pela própria temática, e
pelo método ou discurso de apropriação. Este é o cáracter insistente da filosofia.
Precisamente porque filosofar é sempre ocupar-se da
formulação do fundamento, a relação com o passado vai além do seu estrito
perfil de obra feita ou lograda; as relações históricas estabelecem-se a partir
de um fundo comum, e não segundo o fio da sucessão temporal. O fundamento é o tema da filosofia e assim se justifica
que à historificação da filosofia se lhe conceda o nome de perenidade. E isto
porque o fundamento não se deixa
possuir (como no caso do objecto de qualquer ciência operativa); não se deixa
«resolver» em qualquer teoria, não se dá actualmente em termos de intuição intelectual.
A filosofia emerge da história, aparece nela como
uma articulação do passado com possibilidades ulteriores. Para o filósofo,
ocupar-se dos «grandes» (seria um grave erro desprezar a tradição que, se é
verdadeira tradição filosófica, é sedimentação viva) não significa estabelecer uma dependência relativamente às
suas obras; significa sim, coincidir com o mesmo tema. É a pessoa quem descobre
o tema da filosofia, e, só por isso, em rigorosa comunidade, entra em contacto
com os filósofos que foram. De acordo com isto, ainda que caiba assinalar-lhe
um começo, a filosofia não nasce na história; o seu começo é intra-histórico e,
por isso, pode pessoalmente repetir-se.
A raiz do filosofar é livre e, consequentemente, pessoal. A compreensão da
filosofia na sua dependência com respeito à liberdade é necessária para
levantar o tema da sua emergência histórica. Todos estes temas implicam um
maior desenvolvimento no decorrer da leccionação.
A historificação da filosofia não é um processo
evolutivo da inteligência humana considerada como uma pura entidade da
natureza. Tão pouco é uma pura sequência cultural. As diferenças existentes
entre os sistemas filosóficos não se entendem cabalmente acudindo apenas à
simples confrontação de textos; do mesmo modo, a sua inegável diferença também
se não explica por influências, transmissões ou aceitações escolares. Não se
pode rigorosamente falar, em filosofia, de sistemas errados e de sistemas
verdadeiros. Tudo o que, no âmbito da história da filosofia se mova no plano
dos documentos, dos restos do passado, ou das simples comparações, é
importante, mas não suficiente para compreender o tema da historificação
filosófica.
A historificação da filosofia é um rasgo formalmente
filosófico e, como tal, a sua perenidade. Esta perenidade alude ao que chamo
núcleo primário – transhistórico –. Quando falo de perenidade não quero dizer
que há uma filosofia perene e outra (ou outras) que o não são. A perenidade é por mim entendida como a
compreensão da relação entre história e filosofia e na medida em que ambas se
não confundem; ou seja, não é o histórico da filosofia nem o filosófico da
história, mas sim o filosófico da história da filosofia. E isto quer dizer
que a noção de perenidade exige também a superação da compreensão «situacional»
da própria história. Ora bem: a história é situação como situação de liberdade,
pelo que, ao superar a citada compreensão da história, nos encontramos com a
liberdade, não já situada, mas sim na sua conjunção com o tema da filosofia, ou
seja, com o fundamento.
Para compreender a noção de perenidade deverá
portanto acudir-se, tanto à liberdade (transcendental), como ao fundamento.
Neste sentido, a perenidade não é um sistema, nem o sistema dos sistemas, mas a
dimensão unitária da filosofia considerada em ordem à historia, um carácter do
conhecimento do fundamento para a liberdade, distinto da abertura de possibilidades
factivas, própria dos saberes operativos ou produtivos. A perenidade é também uma dimensão unitária da história que só aparece
em ordem à filosofia. O carácter transcendental e nuclear da liberdade
deverá entender-se aqui na linha da prioridade fundamental. A liberdade não
consiste em pôr, causar ou fundar a essência humana. O homem, por ser livre,
não se define em ordem à produção da sua própria essência, mas, pelo contrário,
possui-a. O exercício activo da liberdade exige a ausência de valor
determinante em qualquer pressuposto; ou, dito de uma maneira geral, é
incompatível com o influxo de alguma antecipação.
Isto significa que a liberdade alude exclusivamente ao que chamo posse, mantida em ordem ao futuro. O
futuro da liberdade, entendido estritamente como possuído, é transcendental,
por não ser determinável desde o prévio, isto é, por não estar ligada a sua
posse a nenhuma condição de possibilidade, e não se limitar a nenhuma
consistência. O futuro do homem não se pode possuir no plano das possibilidades
factivas, nem estar prefigurado no modo do inesquivável. A capacidade de abrir o futuro por cima de toda a
configuração, ou de se manter, possuindo-o, é o mais próprio da liberdade
humana.
Por futuro transcendental da liberdade entendo
aquilo que não vem dado desde uma região longínqua ou pressuposta em geral, nem
tão pouco deriva de situações prévias, mas que se liga, na sua mesma posse, ao
exercício da liberdade. Esta noção de liberdade, sem dúvida próxima da heideggeriana,
difere desta última enquanto se não confunde com o próprio fundamento. E isto
porque, ao centrar-se a filosofia no tema do fundamento, a razão não coincide
exactamente com a liberdade.
Não se pode entender a liberdade no sentido
exclusivo de deixar ser o ente (Heidegger), isto é, suster que a liberdade se
reduz ao fundamento (fundamento sem fundamento). A liberdade não se confunde
com o fundamento nem tão pouco com a razão, com o discurso racional. Entender a
teoria (busca do fundamento) exclusivamente como conduta, nada resolveria; e a identificação
da razão com a liberdade seria entender aquela como uma espécie de faculdade
adivinhatória do fundamento.
Esta digressão leva-nos a concluir que, sem a
liberdade, o futuro não é e que a história da filosofia se deve entender a
partir da noção de conjunção de liberdade e de fundamento. A filosofia pode
perigar, hoje, com a absolutização da história humana nos termos da técnica
moderna. Se aceitarmos que a técnica actual – forma redutora do saber a saber
produtivo – assumiu a direcção da história, nessa mesma medida, ficamos sem
qualquer espaço para a tarefa da filosofia. E, se, nesta perspectiva, não
quiséssemos negar rotundamente a filosofia, teríamos de a considerar como obra
já cumprida, terminada e improsseguível; o filósofo de hoje não passaria de um
guardião do passado, misto de retórico e de filólogo.
Em síntese: assim como não cabe uma interpretação
da história em termos estritamente filosóficos – a história não se reduz à
filosofia –, também não cabe uma interpretação historicista da filosofia,
porque ela não é susceptível de uma mera estruturação cultural. Esta última não
é, no entanto, obstáculo para a unidade sistemática das doutrinas filosóficas.
A demarcação temática da disciplina que nos ocupa –
filosofia contemporânea – prende-se
portanto, e em ordem à sua matização, quer com uma vertente sistemática, quer
com uma vertente historiográfica. Todo o discurso racional acerca do fundamento
apresenta, como se viu, umas características temáticas e sistemáticas inerentes
à sua unidade e universalidade. Por isso mesmo, um programa de filosofia
contemporânea que pretenda ser filosófico, não deverá iludir a elaboração
temática, tentando uma íntima conexão entre a problemática filosófica trans-histórica
e a sua contextualização numa determinada época, a saber, na época
contemporânea. O método utilizado ao programar uma cadeira de índole filosófica
e de história da filosofia deve conjugar a sincronia e a diacronia, não
descurando o tratamento analítico de autores e correntes paradigmáticas. Mas
esta análise deverá aparecer como expressão consequente dos núcleos temáticos
inerentes à disciplina.
Na sequência do que atrás ficou dito, aquilo que
designamos por filosofia contemporânea, muito embora se prenda directamente com
o universo de discurso inerente à nossa época, transcende-o inexoravelmente.
Com efeito, o tema da filosofia contemporânea
é o tema da filosofia; pelo que toda
e qualquer demarcação epocal tomada num sentido demasiadamente restritivo, e
desinserida do universo inactual inerente ao filosofar, seria ilegítima, porque
não filosófica. A elaboração de um programa de filosofia contemporânea – se
deve incidir preferentemente nas sistematizações filosóficas hodiernas – deverá
aspirar a uma visão integradora, englobadora do tema ou fundamento que é transcendental,
universal. Sendo assim, impõe-se a conexão da filosofia contemporânea com os
principais universos de sentido do passado, a fim de prospeccionar possíveis
tendências ou inflexões que se insinuem desde a actualidade.
FONTE:
CANTISTA,
Maria José. Filosofia contemporânea. vol. I. Porto: FLUP, 2006. p. 9-16. Disponível em: <http://ler.letras.up.pt/uploads/ficheiros/8095.pdf>. Acesso em: 10 fev. 2017.
* Professora
catedrática de filosofia da Faculdade de Letras da Universidade do Porto.
Lecciona a disciplina de Filosofia Contemporânea na licenciatura e coordena a
área de Filosofia Moderna e Contemporânea do Curso Integrado de Estudos Pós-Graduados
em Filosofia da FLUP.
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