A história da vida de Buda é muito conhecida, de modo que nos bastará resumi-la aqui rapidamente: os oitenta anos de sua vida abrangem a maior parte do século V a.C., mas as datas exatas de seu nascimento e sua morte são incertas. O príncipe Siddharttha, filho único do rei Suddhodana do clã dos Sākiya, e de sua esposa Mahā Māyā, nasceu em Kapilavatthu, capital de Kosala, pais que se estendia do Nepal meridional até ao Ganges. Quando falamos do rei (rājā), é preciso não esquecer que a maioria dos reinos do vale dos Ganges nessa época eram na realidade repúblicas presididas pelos “reis” em questão; o processo seguido nos concílios de monges budistas foi análogo ao das assembléias republicanas e ao das corporações e conselhos de províncias.
Até
o momento do Grande Despertar, Siddharttha não passava ainda de um Bodhisatta,
embora essa existência fosse a ultima de inúmeros renascimentos no curso dos
quais ele amadureceu as supremas virtudes e a sagacidade que conduzem à
perfeição. Tornando-se Buda, “o Desperto” é às vezes designado pelo seu nome de
família, Gotama ou Gautama, o que distingue dos sete (ou vinte e quatro) Budas
anteriores dos quais era precisamente o descendente em linha reta. Vários dos
epítetos de Buda o ligam ao Sol ou ao Fogo e subtendem sua natureza divina; ele
é, por exemplo, “o Olho do Mundo”; seu nome é “Verdade”, e entre os sinônimos
mais significativos da palavra Buda (o “Desperto”) temos as expressões “o que
se tornou Brahma”, “o que se tornou Dhamma”. Diversos trechos de sua vida são a
repetição direta dos mitos anteriores.
Por isso somos levados a perguntar-nos se a “vida” do “Vencedor da Morte”, do
“Mestre de sabedoria dos deuses e dos homens”, que declara ter nascido e sido
educado no mundo de Brahma, e ter descido do céu para nascer das entranhas de
Marā Māyā, pode ser considerado como histórico, ou se não é antes mítico, onde
as naturezas e os altos feitos das deidades védicas Agni e Indra se encontram
“evhemerisadas” de modo mais ou menos natural. Não possuímos extratos
contemporâneos; mas no século III a.C. certamente acreditava-se que Buda tinha
vivido como homem entre os homens. É um enigma que não podemos discutir aqui;
embora o autor se incline a dar sua preferência à interpretação mítica,
falaremos de Buda como se fosse uma personagem histórica.
O
príncipe Siddharttha foi educado na opulência da corte de Kapilavatthu; foi
mantido na completa ignorância da velhice, da doença e da morte às quais todos
os seres deste mundo estão submetidos por natureza. Casaram-no com sua prima
Yasodā, que lhe deu um único filho, Rāhula. Foi pouco depois do nascimento de
Rāhula que os deuses acharam que chegara a hora em que Siddatta devia “sair” e
empreender a missão para a qual se preparara durante tantos nascimentos
anteriores, momentaneamente esquecidos por ele. Tinha-se dado ordens; logo que
atravessasse a cidade para se dirigir do palácio ao parque de recreio, nenhum
velho, nenhum doente, nenhum cortejo fúnebre devia aparecer nas ruas. Assim
propunham os homens; mas os deuses apareceram servindo-se das formas de um
doente, de um velho, de um cadáver e de um monge-mendicante (bhikkhu).
Quando Siddhattha viu estes espetáculos, inteiramente novos para ele, e
aprendeu pelo seu cocheiro Channa, que todos os homens estão sujeitos à doença,
à velhice e à morte, e que somente o religioso-mendicante se eleva acima desta
dor que o sofrimento e a morte causam a todos os outros seres humanos, ficou
profundamente abalado. Tentou logo pronunciar remédio a esta qualidade mortal
que é inerente a todos os compostos, a tudo o que teve um começo e deverá ter,
conseqüentemente, um fim. Em outras palavras, dispôs-se a descobrir o segredo
da imortalidade e dá-lo a conhecer ao mundo.
Regressando
ao palácio, informou o pai de sua disposição. Como o rei não o pudesse
dissuadir, tentou reter à força seu filho e herdeiro, colocando guardas em
todas as portas do palácio. Mas uma noite, após ter lançado um ultimo olhar à
sua esposa e a seu filho, que dormiam, Siddhattha chamou seu cocheiro e,
montando seu cavalo Kanthaka, aproximou-se das portas, que os deuses lhe
abriram sem ruído; conseguiu fugir. Era a “Grande Partida”.
Nos
recessos das florestas o príncipe despojou-se de seu turbante real e de sua
longa cabeleira, que não convinham a um religioso-mendicante, e mandou de volta
seu cocheiro. Encontrou-se com eremitas brâmanes e, sob a direção deles,
dedicou-se à vida contemplativa. Depois ele os deixou para se consagrar sozinho
ao “Grande Despertar”; ao mesmo tempo um grupo de cinco monges mendicantes
tornaram-se seus discípulos e entraram a seu serviço na idéia de que ele se
tornaria um Buda. Nesse intuito ele praticou mortificações muito mais severas e
pouco faltou para que se deixasse morrer de fome. Mas compreendendo que o
enfraquecimento do corpo e das faculdades espirituais não o conduziram ao
Despertar (bodhi) pelo qual renunciara à vida mundana, retornou sua
tigela de esmolas e foi mendigar alimento nas aldeias e cidades como os outros
religiosos: vendo isto, seus cinco discípulos o abandonaram. Mas chegara a hora
do Despertas e pelos sonhos que tivera o Bodhisatta pode concluir: “Hoje mesmo
me tornarei um Buda”. Comeu de uma comida em que os deuses tinham misturado sua
ambrosia, e descansou durante o dia. Ao anoitecer aproximou-se da árvore de
Bodhi, e ali, no centro da terra, o rosto voltado para o oriente, sentou-se no
mesmo lugar em que todos os Budas anteriores se sentaram no momento de sua
Iluminação; imóvel, resolveu não se mover antes de ter realizado seu desígnio.
Então
Marā (a Morte), o ancião Ahi-Vrtra-Namuci dos Vedas, “o de firmeza inabalável”,
vencido outrora por Agni-Brhaspati e por Indra, mas jamais morto, observando
que “o Bodhisatta quer se libertar do meu poder” e resolvido a não o deixar
escapar, dirigiu suas hostes contra ele. Os deuses, atemorizados, fugiram; o
Bodhisatta ficou só, sem outra defesa do corpo que a de suas virtudes. O
assalto a Marā, pelas armas do trovão e do relâmpago, das trevas, da água e do
fogo, e de todas as tentações oferecidas pelas três beldades que são as filhas
de Marā, deixaram o Bodhisatta impassível e impávido. Mara, não podendo
reconquistar o trono que pretendia, foi focado a retirar-se. Os deuses voltaram
e celebraram a vitória do príncipe; a noite desceu nesse ínterim.
Penetrando
em planos de contemplação cada vez mais profundos, o Bodhisatta obteve
sucessivamente o conhecimento de suas vidas anteriores, a Sagacidade divina, a
compreensão das origens pelas causas, e finalmente, pela madrugada, a plena
Iluminação, o Grande Despertar (mahā-sambodhi) que buscava. Já não é
mais um Bodhisatta; tornou-se um Buda, um “Desperto”. Um Buda não mais
participa de uma categoria; não pode ser comparado com qualquer outro ser; não
é mais chamado por um nome; não é mais uma pessoa, é um ser que seria vão
querer conhecer pelo nome próprio, e ao qual só poderiam convir epítetos tais
com Arahant (“Digno”), Tathāgata (“o que veio autenticamente), Bhagavā
(“Dispensador”), Mahāpurisa (“Grande Cidadão”), Saccānama
(“aquele cujo nome é Verdade”), Anoma (“Insondável”), dos quais nenhum
designa o individuo. Os sinônimos “O Que se Tornou Dhamma”, e “O que se tornou
Brahma” devem ser observados particularmente, pois Buda se identifica
expressamente com a Lei Eterna (dhamma) que personifica; e a expressão
“O que se tornou Brahma” deve ser considerada como equivalente a uma apoteose
absoluta, bastando para isso o fato de que Buda tinha sido um Brahma e mesmo
Maha Brahma já durante vidas anteriores, e que de qualquer maneira a gnose de
um Brahma é inferior à de um Buda. Aqui mesmo, neste mesmo instante, neste
mundo, Buda tinha atingido essa libertação (vimutti), esta Extinção (nibbāna
= sânscrito nirvana) e essa Imortalidade (amatam) da qual ele
iria daí por diante revelar o Caminho a toda a humanidade.
Nesse
momento ele hesitou, sabendo que a Lei Eterna da qual se tornara o depositário,
e à qual se identificava, seria difícil de compreender para os homens voltados
para o mundo; foi tentado a permanecer um Buda solitário, guardando somente
para si o fruto penosamente adquirido por uma busca que já empreendia há
miríades de danos e cujo termo finalmente atingira. Se queremos ter uma idéia
do Nibbāna budista, é quase indispensável compreender a qualidade desse
“Gozo”: é a suprema beatitude daquele
que rejeitou a noção “eu sou”; daquele “que se renunciou totalmente” e que
assim “depôs o seu fardo”. Foi essa a ultima e a mais sutil tentação que lhe infligiu
Mara: que seria loucura abandonar essa felicidade penosamente adquirida, de
regressar à vida ordinária para pregar o Caminho a uma humanidade que não
queria ouvi-lo nem compreendê-lo. Mais adiante da hesitação de Buda, os deuses
ficaram desesperados: o mais elevado de todos, Brahma Sahampati, surgiu diante
dele, deplorando que “o Mundo se perdesse” e invocando o fato que havia no
mundo alguns seres ao menos de visão suficientemente clara para escutar o
entender seu ensinamento. Pelo amor desses, Buda consentiu, o declarou “abertas
as Portas da Imortalidade”. Dispôs-se então a consagrar os quarenta e cinco
anos que lhe restavam de vida neste mundo a “fazer girar a Roda da Lei”, isto é
a pregar a verdade libertadora, o Caminho que é necessário seguir para atingir
o fim último, a significação da existência, a “finalidade derradeira da
humanidade”.
Buda
encaminhou-se primeiro ao Parque das Gazelas, em Benares, junto dos cinco que
tinham sido seus primeiros discípulos. Ele lhes pregou a doutrina do Caminho do
meio, entre os dois extremos do hedonismo e da mortificação; a doutrina da
submissão ao sofrimento, inerente a todos os seres nascidos e que é necessário
extirpar a causa – isto é, o desejo apetitivo (baseado na ignorância da
natureza verdadeira de todas as coisas desejáveis) – para curar os sintomas; e
a doutrina do “caminhar com Brahma” que leva ao fim de todo o sofrimento. E
enfim ele lhes ensinou a doutrina da libertação vivida desta proposição: de
cada uma e de todas as partes componente desta individualidade psicofísica
sempre mutável que os homens chamam seu Eu, seu Ego, é preciso dizer “Isto não
é meu Eu” (na me so attā) – proposição que, apesar do rigor lógico de
seus termos, tem sido freqüentemente mal compreendida, como se ela implicasse
que “não existe o Eu”. Os cinco monges-mendicantes atingiram a Iluminação, e já
haveria daí por diante seis Arahants neste mundo. Quando o número de Arahants
“libertos de todos os laços humanos ou divinos” se elevou a sessenta e um, Buda
enviou-os a pregar a Lei Eterna e o Caminhar com Brahma; ele lhes deu plenos
poderes para receber e ordenar outros; assim nasceu a Comunidade (sangha),
a Ordem dos Mendicantes budistas, composta de homens que tinham abandonado1
a vida de família e tomado refúgio em Buda, a Lei Eterna, e a Comunidade”.
Dirigindo-se
de Benares a Uruvelā, Buda encontrou um grupo de jovens que excursionavam em
companhia de suas esposas. Um deles, que não era casado, tinha levado sua
amante, mas esta tinha fugido levando objetos que pertenciam a este moço. Todos
a procuravam e perguntaram a Buda se ela a vira. Buda respondeu: “Que achais?
Não faríeis melhor procurando o Eu (attānam gaveseyyātha) em vez da
mulher?” (Vin. I, 23 cf. Vis. 393). Esta resposta, aceita por
estes moços que logo se fizeram discípulos do Mestre, é de uma extrema
importância para nos fazer compreender a doutrina budista da renúncia a si
mesmo. Vemos aí esse mesmo sábio que acabara de aniquilar o seu eu, recomendar
a outro procurar o Eu: contradição aparente que se resolve se fazemos uma
nítida distinção entre os dois Eu em questão: um que é necessário aniquilar,
outro que é preciso cultivar.
Em
Uruvela, Buda morou algum tempo no eremitério de uma escola de brâmanes
adoradores do Fogo, e ali fez dois milagres memoráveis: um o de vencer e domar
a Serpente furiosa (ahi-nāga) que vivia no Templo do Fogo; outro, o de
rachar lenha e de acender o fogo dos brâmanes que não o podiam fazer
convenientemente; e isto por suas faculdades sobrenaturais (iddhi). Em
conseqüência, o mestre dos brâmanes, Kassapa, e todos os seus quinhentos
discípulos, resolveram “caminhar com Brahma” sob a direção de Buda, que os
admitiu em sua ordem.
Buda
continuou seu caminho para Gayāsīsa, acompanhado de todos os que eram desde
então seus discípulos, em número de mil. Ali ele pregou o celebre sermão sobre
o Fogo. Todas as sensações e todos os órgãos sensíveis (por exemplo, a língua e
sua gustação, o espírito e seus pensamentos) estão em fogo: o fogo do apetite,
do ressentimento, da ilusão (rāgo, doso, moho); nascimento, da idade, da
morte e da dor. É um sermão que esclarece particularmente a natureza do Nibbāna
(“o expirar”) no sentido fundamental da palavra: a “extinção” destes fogos que,
ao mesmo tempo que a “individualidade” empírica (atta sambhava) da qual
eles são o “porvir” (bhava), cessam de puxar desde eu eles não mais são
alimentados com combustível. Oferece também um interesse particular, pelo fato
de sua grande analogia com S. Tiago, III, 6, onde “a língua é um fogo...e
incendeia a roda do porvir” ( d trocoz thz genesewz), exatamente como no contexto
budista “a língua está em fogo” (jivhā ādittā) e a vida é a roda do
porvir (bhavocakka). No texto do Novo Testamento, estas fórmulas são
provavelmente de origem órfica mais do que budista, mas talvez tenham elas,
tanto de um lado como do outro, uma origem comum ainda mais antiga.
Buda
foi em seguida a Rajagaha onde pregou perante o rei Bimbisara de Magadha, e uma
assembléia de brâmanes e de “chefes de família”, não sem ter antes convidado
Kasksapa de Uruvelā a explicar porque tinha abandonado seus ritos do fogo.
Kassapa tendo prestado seu testemunho, Buda pregou, e toda a assistência obteve
“a visão da Lei Eterna”, isto é, compreender que “tudo que teve um início deve
também ter um fim”. Não devemos esquecer que esta formula, tão simples na
aparência, e que é ainda mais conhecida sob a seguinte forma:
é de
fato, um autêntico resumo da doutrina de Buda, e um meio suficiente (e se
revolveu por em prática tudo o que está implicado nesta proposição) para
atingir a Imortalidade e por fim a todo o sofrimento. É escusado dizer que ela
se aplica em primeiro lugar à compreensão e à extirpação das causas do “porvir”
em todos os males mortais que herda a “individualidade” passiva. O
desaparecimento do desejo, do ressentimento e da ilusão, a interrupção do
porvir que dela resulta, são a mesma coisa que a Extinção e a Imortalidade, a
última beatitude (S. II, 117; IV, 251, V, 8; Sn. 1095).
Durante
suas viagens, Buda voltou à sua cidade natal Kapilavastthu; seguido de um bando
de Arahants mendigos, esmolou alimento nas ruas e foi visto das janelas do
palácio pela mãe de Rāhula. Aos protestos de seu próprio pai, Buda respondeu
que tal havia sido a prática constante dos Budas do passado. Suddhodana fez-se
seu discípulo leigo, e sobre seu leito de morte tornou-se Arahant, sem jamais
ter abandonado a vida de chefe de família. Entretanto, Buda, seguido de seus
dois principais discípulos, Sāriputta e Mogallāna, enquanto o rei levava sua
tigela de esmolas, fazia uma visita à mãe de Rāhula. Ela se aproximou dele,
apertou com as mãos o seu tornozelo e prostrou a cabeça em seus pés; e o rei
lhe contou que tendo sabido que seu esposo tinha revestido a túnica amarela,
ela tinha feito o mesmo e não tomava mais que uma única refeição por dia e
seguia todas as regras da vida de Buda. Ela mandara seu filho Rāhula procurar
seu pai, encarregando-o de reclamar sua herança, pois ele era agora o herdeiro
do trono. Mas Buda disse a Sāriputta: “Dá-lhe a ordenação dos monges”, o que
foi feito; e foi assim que Rahula recebeu uma herança espiritual. Mas
Suddhodana, muito zangado, disse a Buda: “Quando tu abandonaste a vida mundana,
causaste uma dor cruel; o mesmo acontece hoje que Rāhula faz o mesmo. O amor de
um filho fura a pele, penetra até a medula. Promete-nos que no futuro nenhuma
criança possa receber as ordens sem o consentimento de seu pai e de sua mãe”.
Buda consentiu.
Entretanto,
o príncipe-negociante Anātha Pindika se tornara zelador leigo; tinha comprado
por um elevado preço o jardim Jetavana, em Sabathi, e construíra nesse lugar um
magnífico mosteiro onde convidou Buda a vir residir; o Mestre fez dele com
efeito a sede principal de sua ordem até o fim de seus dias. Este Jetavana,
aliás, é “um lugar que nunca foi abandonado por nenhum Buda” (D. II, 74,
A, IV, 16) e era natural que a “palhoça perfumada”, que ali habitava, se
tornasse o protótipo dos templos budistas posteriores, onde ele mesmo é
representado em imagem. Buda não residia ali sempre; era somente sua morada
oficial, e é a esse respeito que se formula pela primeira vez a questão da
iconografia budista. Com efeito, nós vemos perguntar (no Kalinga Jātaka)
por qual espécie de símbolo ou de santuário (cetiya) pode-se representar
convenientemente Buda, para lhe fazer oferendas em sua ausência. Ele responde
que não pode ser representado convenientemente durante sua vida a não ser pela
Árvore da Grande Sabedoria (mahā-boddhi-rukka), e depois de sua morte
por relíquias corporais; ele condena o uso de imagens figurativas, isto é,
antropomórficas, que ele diz serem imaginárias e sem fundamento. E, com efeito,
constatamos que na arte budista dos primeiros tempos, Buda só é representado de
modo não icônico pelos seus “traços” (dhātu) fáceis de reconhecer: seja
por uma árvore de Bodhi, ou por uma “palhoça perfumada”, seja por uma “Roda da
Lei” (dhamma-cakka), ou a marca de seus pés (pada-valañja) ou por
um túmulo relicário (thūpa); mas jamais por uma efígie (patimā).
De outra parte, quando pelo século I de nossa era, sem duvida, se vai começar a
representa Buda sob sua forma humana, deve-se notar que, no seu mais típico
aspecto, sua imagem será menos feita à semelhança de um homem que modelada
sobre o velho conceito do “Grande Cidadão” (mahā-purisa), da “Grande
Personalidade”, do Homem cósmico, e ela repete bem expressamente o tipo
reconhecido de estátua de Yakkha: um Yakkha é um Agathos, Daimon, ou
gênio tutelar. Isto está bem de acordo com o fato que o próprio Buda é “o
Yakkha a quem se deve sacrifício”, com a doutrina da “pureza do Yakkha”, e com
toda a tradição do culto pré-budista dos Yakkhas entre os Sākiyas, os Licahais
e os Vajjias; não tinha Buda exortado os Vajjias a jamais negligenciar o culto
dos Yakkhas? No tempo em que era Bodhisatta, ele fora tomado um dia como o
gênio da árvore sob a qual se sentara; e da mesma maneira que Buda era
representado em Jetavana e nos inícios da arte budista por “santuário-árvore” (rukkha
cetiya), assim também se figuravam os Yakkhas, em cujos “templos” Buda
gosta de se abrigar durante suas viagens. Estas considerações recebem todo o
seu valor se nos lembrarmos que “o Yaksha” (yakkha) dos Vedas e
dos Upanishads designava primitivamente não apenas Brahma enquanto
princípio vital da Árvore da Vida, mas ainda o Eu imortal que habita nossa
humana “Cidade de Brahma” (brahma-pura) à qual o Homem, enquanto
cidadão, deve seu nome de Purusha; enfim que os epítetos de “o Desperto” (buddho)
e “O que se tornou Brahma” (brahma-bhūto) são sinônimos bm comprovados
daquele que também se chama “O Grande Cidadão” (mahā-purisa) e que, ao
menos num texto, explicitamente – e muitas vezes implicitamente – é
identificado ao Eu universal (D. III, 84, e passim).
Entretanto
o número dos discípulos tinha crescido consideravelmente: eram diversos grupos
de monges-mendicantes (Bhikhu) ou de Exilados (Prabbajita) que
daí por diante em lugar de errarem continuamente, residiam geralmente nos
conventos oferecidos à Comunidade por ricos zeladores leigos. Desde a época em
que Buda era vivo se tinham formulado muitas questões de disciplina, e as
decisões do Mestre foram os fundamentos da regra (vinaya) da vida do
monge-mendicante no que concerne à habitação, às roupas, à alimentação, à
conduta, à manutenção, à admissão e à expulsão. Tomada em seu conjunto, a
comunidade contava com relativamente poucos Mestres graduados (asekho) e
um bem maior número de discípulos noviços (sekho). É uma distinção que é
preciso notar particularmente no caso do grande discípulo Ānanda, que era
primo-irmão de Buda, que se tornou monge-mendicante em Kapilavastthu desde o
segundo ano de prédica: ao cabo de vinte anos foi ele que Buda escolheu para
torná-lo seu servidor pessoal e seu confidente, seu mensageiro e seu
representante; entretanto ele não pôde obter um “grau religioso” a não ser
muito tempo depois da morte do Mestre.
É
a Ānanda que as mulheres devem o fato de ser recebidas na ordem. Diz-se que
Mahā Pajāpatī, a segunda esposa de Suddhodana, que tinha educado o Bodhisatta
depois da morte prematura de Mahā Māyā, pediu para ser admitida na ordem, e que
ela ficou muito desgostosa por receber uma recusa. Ela cortou sua cabeleira,
revestiu a túnica alaranjada dos monges e acompanhada de outras mulheres Sakyas
fez uma nova visita a Buda; todas estas mulheres, exaustas pela caminhada e
cobertas de poeira, permaneceram muito tempo em pé à porta de sua residência na
cidade de Vesālī. Comovido por vê-las assim, Ānanda defendeu-lhes a causa junto
ao Mestre, que reiterou sua recusa por três vezes. Então Ānanda abordou a
questão por outro lado. “As mulheres” – perguntou – “que abandonam a vida do
lar para viver conforme a doutrina e a disciplina que ensina Aquele que
encontrou a Verdade, são capazes de realizar os frutos da “entrada na
corrente”, de se tornar “Aquele que voltara ainda uma vez” ou “Aquele que não
voltará mais” ou de ser Arahant?” Buda não podia responder negativamente;
consentiu na fundação de uma ordem de bhikkunīs paralela à ordem dos bhikkus.
Mas acrescentou que se as mulheres não tivessem sido admitidas na Ordem e na
prática do Caminhar com Brahma, a Verdadeira Lei (saddhamma) seria
mantida mil anos, enquanto que daí por diante ela só duraria quinhentos anos.
No seu octogésimo ano Buda caiu doente; apesar de seu rápido restabelecimento,
compreendeu que seu fim estava próximo. Disse a Ānanda: “Estou velho agora, a
viagem chegou a seu fim, atingi a idade de oitenta anos. Da mesma maneira que
uma carroça usada não pode mais andar a não ser com grande reforço de correias,
parece-me, Ānanda, que o corpo d’Aquele que encontrou a Verdade só pode
prosseguir ainda com a ajuda de medicamentos”. Ānanda desejava saber que
instruções Buda deixava aos monges-mendicantes; Buda respondeu que se um deles
pensava que o sangha (a Comunidade) dependia dele, era a ela que cabia
dar as instruções. – porque deixarei eu instruções concernentes à comunidade?
Aquele que encontrou a Verdade pregou a Lei plenamente, sem nada dissimular”;
nada mais resta que praticar, contemplar e propagar a Verdade por piedade do
mundo, e para o maior bem dos homens e dos deuses. Os medicamentos não deviam
contar com qualquer apoio exterior, deviam “tomar o Eu (attā) por
refúgio, a Lei Eterna como refúgio”...e é por isso que “eu vos deixo, eu parto,
tendo encontrado refúgio no Eu” (D. II, 120).
Foi
em Kusinārā, no bosque de sālas, em Mallas, que Buda se deitou para morrer,
tomando o “repouso do leão”. Uma multidão de leigos, de mendicantes e de deuses
de todas as categorias cercava seu leito, que velava Ānanda. Buda deu-lhe
instruções para que se incinerasse seu corpo e que se construísse um túmulo (thūpa,
dhātu-gabbha) que encerraria seus ossos e suas cinzas. À vista destes
túmulos, erguidos para os Budas, para os Arahants ou para um Rei dos reis,
muitos seres encontrariam a calma e a felicidade, e isso os levaria a renascer
mais tarde num dos céus. Ānanda chorou lembrando-se que ainda não tinha nenhuma
graduação espiritual. Buda assegurou-lhe que ele tinha trabalhado
eficientemente e que não tardaria a ser “livre de todas as vicissitudes”, isto
é: que se tornaria Arahant; e recomendou Ānanda à companhia dos monges,
comparando-o a um Rei dos reis.
“Todas
as coisas compostas estão sujeitas à corrupção. Lutai pelo vosso ideal com
sobriedade”. Tais foram as ultimas palavras d’Aquele que encontrara a Verdade.
Entrando à vontade em cada um dos quatro estados contemplativos superiores, ele
saiu do quarto, e nesse instante “expirou”2 totalmente. A morte
d’Aquele que encontrara a Verdade foi anunciada por Brahma que compreendeu a
morte de todos os seres, sejam quais forem, mesmo a do Grande Mestre, é
inevitável. Indra pronunciou os bem conhecidos versos:
O
Arahant Anuruddha pronunciou um breve panegírico, e fez notar que “não há luta
frenética para o coração fiel, pois o Sábio, o Imutável, encontrou a paz”. Ānanda
estava profundamente comovido. Somente os monges mais jovens choravam, rolavam
pelo chão desesperados, gemendo por ter o “Olho do Mundo se fechado cedo”. Os
antigos os censuravam lembrando-lhes que
O
corpo foi incinerado; as relíquias, divididas em oito partes, foram
distribuídas aos chefes dos clãs que ergueram oito monumentos para encerrá-las.
Assim
Buda que, enquanto fora visível aos olhos humanos, tinha possuído os cinco
fatores da personalidade sem ser identificado à sua totalidade nem a qualquer
deles (S. III, 112) “fez estalar a veste da Ipseidade” (A. IV,
312; cf. Vin. I, 6). Alcançara depois de muito tempo a qualidade de
Imortal (M. I, 172; Vin. I, 9; It. 46, 62) não nascendo,
não envelhecendo, não morrendo (KhA. 180; Dh. A, I 228).
“O corpo envelhece, mas a Verdadeira Lei não envelhece” (S. I, 43; cf. RV.
VI, 18, 7; Bu. III, 2, 12). “Seu nome é Verdade” (A. III, 346,
IV, 289). “A Verdade é a Lei Eterna” (S. I, 168). Ainda hoje pode-se
dizer que “Aquele que vê a Lei (S. III, 120; Mil. 73) vê Aquele que
abriu as portas da Imortalidade”(M. I, 167; Vin. I, 7).
Busquemos
agora o que era esta Lei, esta Verdade à qual ele identificava sua essência.
1. Este abandono é literalmente uma partida
para o exílio (pabhaja); os budistas pensam como Mestre Eckhart, que as
pobres almas que permanecem em sua família para servir a Deus, estão em erro “e
jamais terão a força de buscar e ganhar aquilo que cabe a outros que seguiram
Cristo na pobreza e no exílio”.
2. Parinibbāyati: aqui no sentido de morrer, embora
raramente empregado a respeito de fenômenos materiais.
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