terça-feira, 28 de fevereiro de 2017

A VIDA DE BUDA





Por Ānanda K. Coomarasvamy


Reduz à humildade as idéias insensatas de tua vontade, e empenha-te em subjugar a besta cruel. Estás preso à vontade; esforça-te em desatar este laço que não poderia ser rompido. Tua vontade é tua Eva.
 
S. BOAVENTURA, De Conversione

   

A história da vida de Buda é muito conhecida, de modo que nos bastará resumi-la aqui rapidamente: os oitenta anos de sua vida abrangem a maior parte do século V a.C., mas as datas exatas de seu nascimento e sua morte são incertas. O príncipe Siddharttha, filho único do rei Suddhodana do clã dos Sākiya, e de sua esposa Mahā Māyā, nasceu em Kapilavatthu, capital de Kosala, pais que se estendia do Nepal meridional até ao Ganges.  Quando falamos do rei (rājā), é preciso não esquecer que a maioria dos reinos do vale dos Ganges nessa época eram na realidade repúblicas presididas pelos “reis” em questão; o processo seguido nos concílios de monges budistas foi análogo ao das assembléias republicanas e ao das corporações e conselhos de províncias.

Até o momento do Grande Despertar, Siddharttha não passava ainda de um Bodhisatta, embora essa existência fosse a ultima de inúmeros renascimentos no curso dos quais ele amadureceu as supremas virtudes e a sagacidade que conduzem à perfeição. Tornando-se Buda, “o Desperto” é às vezes designado pelo seu nome de família, Gotama ou Gautama, o que distingue dos sete (ou vinte e quatro) Budas anteriores dos quais era precisamente o descendente em linha reta. Vários dos epítetos de Buda o ligam ao Sol ou ao Fogo e subtendem sua natureza divina; ele é, por exemplo, “o Olho do Mundo”; seu nome é “Verdade”, e entre os sinônimos mais significativos da palavra Buda (o “Desperto”) temos as expressões “o que se tornou Brahma”, “o que se tornou Dhamma”. Diversos trechos de sua vida são a repetição  direta dos mitos anteriores. Por isso somos levados a perguntar-nos se a “vida” do “Vencedor da Morte”, do “Mestre de sabedoria dos deuses e dos homens”, que declara ter nascido e sido educado no mundo de Brahma, e ter descido do céu para nascer das entranhas de Marā Māyā, pode ser considerado como histórico, ou se não é antes mítico, onde as naturezas e os altos feitos das deidades védicas Agni e Indra se encontram “evhemerisadas” de modo mais ou menos natural. Não possuímos extratos contemporâneos; mas no século III a.C. certamente acreditava-se que Buda tinha vivido como homem entre os homens. É um enigma que não podemos discutir aqui; embora o autor se incline a dar sua preferência à interpretação mítica, falaremos de Buda como se fosse uma personagem histórica.

O príncipe Siddharttha foi educado na opulência da corte de Kapilavatthu; foi mantido na completa ignorância da velhice, da doença e da morte às quais todos os seres deste mundo estão submetidos por natureza. Casaram-no com sua prima Yasodā, que lhe deu um único filho, Rāhula. Foi pouco depois do nascimento de Rāhula que os deuses acharam que chegara a hora em que Siddatta devia “sair” e empreender a missão para a qual se preparara durante tantos nascimentos anteriores, momentaneamente esquecidos por ele. Tinha-se dado ordens; logo que atravessasse a cidade para se dirigir do palácio ao parque de recreio, nenhum velho, nenhum doente, nenhum cortejo fúnebre devia aparecer nas ruas. Assim propunham os homens; mas os deuses apareceram servindo-se das formas de um doente, de um velho, de um cadáver e de um monge-mendicante (bhikkhu). Quando Siddhattha viu estes espetáculos, inteiramente novos para ele, e aprendeu pelo seu cocheiro Channa, que todos os homens estão sujeitos à doença, à velhice e à morte, e que somente o religioso-mendicante se eleva acima desta dor que o sofrimento e a morte causam a todos os outros seres humanos, ficou profundamente abalado. Tentou logo pronunciar remédio a esta qualidade mortal que é inerente a todos os compostos, a tudo o que teve um começo e deverá ter, conseqüentemente, um fim. Em outras palavras, dispôs-se a descobrir o segredo da imortalidade e dá-lo a conhecer ao mundo.

Regressando ao palácio, informou o pai de sua disposição. Como o rei não o pudesse dissuadir, tentou reter à força seu filho e herdeiro, colocando guardas em todas as portas do palácio. Mas uma noite, após ter lançado um ultimo olhar à sua esposa e a seu filho, que dormiam, Siddhattha chamou seu cocheiro e, montando seu cavalo Kanthaka, aproximou-se das portas, que os deuses lhe abriram sem ruído; conseguiu fugir. Era a “Grande Partida”.

Nos recessos das florestas o príncipe despojou-se de seu turbante real e de sua longa cabeleira, que não convinham a um religioso-mendicante, e mandou de volta seu cocheiro. Encontrou-se com eremitas brâmanes e, sob a direção deles, dedicou-se à vida contemplativa. Depois ele os deixou para se consagrar sozinho ao “Grande Despertar”; ao mesmo tempo um grupo de cinco monges mendicantes tornaram-se seus discípulos e entraram a seu serviço na idéia de que ele se tornaria um Buda. Nesse intuito ele praticou mortificações muito mais severas e pouco faltou para que se deixasse morrer de fome. Mas compreendendo que o enfraquecimento do corpo e das faculdades espirituais não o conduziram ao Despertar (bodhi) pelo qual renunciara à vida mundana, retornou sua tigela de esmolas e foi mendigar alimento nas aldeias e cidades como os outros religiosos: vendo isto, seus cinco discípulos o abandonaram. Mas chegara a hora do Despertas e pelos sonhos que tivera o Bodhisatta pode concluir: “Hoje mesmo me tornarei um Buda”. Comeu de uma comida em que os deuses tinham misturado sua ambrosia, e descansou durante o dia. Ao anoitecer aproximou-se da árvore de Bodhi, e ali, no centro da terra, o rosto voltado para o oriente, sentou-se no mesmo lugar em que todos os Budas anteriores se sentaram no momento de sua Iluminação; imóvel, resolveu não se mover antes de ter realizado seu desígnio.

Então Marā (a Morte), o ancião Ahi-Vrtra-Namuci dos Vedas, “o de firmeza inabalável”, vencido outrora por Agni-Brhaspati e por Indra, mas jamais morto, observando que “o Bodhisatta quer se libertar do meu poder” e resolvido a não o deixar escapar, dirigiu suas hostes contra ele. Os deuses, atemorizados, fugiram; o Bodhisatta ficou só, sem outra defesa do corpo que a de suas virtudes. O assalto a Marā, pelas armas do trovão e do relâmpago, das trevas, da água e do fogo, e de todas as tentações oferecidas pelas três beldades que são as filhas de Marā, deixaram o Bodhisatta impassível e impávido. Mara, não podendo reconquistar o trono que pretendia, foi focado a retirar-se. Os deuses voltaram e celebraram a vitória do príncipe; a noite desceu nesse ínterim.

Penetrando em planos de contemplação cada vez mais profundos, o Bodhisatta obteve sucessivamente o conhecimento de suas vidas anteriores, a Sagacidade divina, a compreensão das origens pelas causas, e finalmente, pela madrugada, a plena Iluminação, o Grande Despertar (mahā-sambodhi) que buscava. Já não é mais um Bodhisatta; tornou-se um Buda, um “Desperto”. Um Buda não mais participa de uma categoria; não pode ser comparado com qualquer outro ser; não é mais chamado por um nome; não é mais uma pessoa, é um ser que seria vão querer conhecer pelo nome próprio, e ao qual só poderiam convir epítetos tais com Arahant (“Digno”), Tathāgata (“o que veio autenticamente), Bhagavā (“Dispensador”), Mahāpurisa (“Grande Cidadão”), Saccānama (“aquele cujo nome é Verdade”), Anoma (“Insondável”), dos quais nenhum designa o individuo. Os sinônimos “O Que se Tornou Dhamma”, e “O que se tornou Brahma” devem ser observados particularmente, pois Buda se identifica expressamente com a Lei Eterna (dhamma) que personifica; e a expressão “O que se tornou Brahma” deve ser considerada como equivalente a uma apoteose absoluta, bastando para isso o fato de que Buda tinha sido um Brahma e mesmo Maha Brahma já durante vidas anteriores, e que de qualquer maneira a gnose de um Brahma é inferior à de um Buda. Aqui mesmo, neste mesmo instante, neste mundo, Buda tinha atingido essa libertação (vimutti), esta Extinção (nibbāna = sânscrito nirvana) e essa Imortalidade (amatam) da qual ele iria daí por diante revelar o Caminho a toda a humanidade.

Nesse momento ele hesitou, sabendo que a Lei Eterna da qual se tornara o depositário, e à qual se identificava, seria difícil de compreender para os homens voltados para o mundo; foi tentado a permanecer um Buda solitário, guardando somente para si o fruto penosamente adquirido por uma busca que já empreendia há miríades de danos e cujo termo finalmente atingira. Se queremos ter uma idéia do Nibbāna budista, é quase indispensável compreender a qualidade desse “Gozo”:  é a suprema beatitude daquele que rejeitou a noção “eu sou”; daquele “que se renunciou totalmente” e que assim “depôs o seu fardo”. Foi essa a ultima e a mais sutil tentação que lhe infligiu Mara: que seria loucura abandonar essa felicidade penosamente adquirida, de regressar à vida ordinária para pregar o Caminho a uma humanidade que não queria ouvi-lo nem compreendê-lo. Mais adiante da hesitação de Buda, os deuses ficaram desesperados: o mais elevado de todos, Brahma Sahampati, surgiu diante dele, deplorando que “o Mundo se perdesse” e invocando o fato que havia no mundo alguns seres ao menos de visão suficientemente clara para escutar o entender seu ensinamento. Pelo amor desses, Buda consentiu, o declarou “abertas as Portas da Imortalidade”. Dispôs-se então a consagrar os quarenta e cinco anos que lhe restavam de vida neste mundo a “fazer girar a Roda da Lei”, isto é a pregar a verdade libertadora, o Caminho que é necessário seguir para atingir o fim último, a significação da existência, a “finalidade derradeira da humanidade”.

Buda encaminhou-se primeiro ao Parque das Gazelas, em Benares, junto dos cinco que tinham sido seus primeiros discípulos. Ele lhes pregou a doutrina do Caminho do meio, entre os dois extremos do hedonismo e da mortificação; a doutrina da submissão ao sofrimento, inerente a todos os seres nascidos e que é necessário extirpar a causa – isto é, o desejo apetitivo (baseado na ignorância da natureza verdadeira de todas as coisas desejáveis) – para curar os sintomas; e a doutrina do “caminhar com Brahma” que leva ao fim de todo o sofrimento. E enfim ele lhes ensinou a doutrina da libertação vivida desta proposição: de cada uma e de todas as partes componente desta individualidade psicofísica sempre mutável que os homens chamam seu Eu, seu Ego, é preciso dizer “Isto não é meu Eu” (na me so attā) – proposição que, apesar do rigor lógico de seus termos, tem sido freqüentemente mal compreendida, como se ela implicasse que “não existe o Eu”. Os cinco monges-mendicantes atingiram a Iluminação, e já haveria daí por diante seis Arahants neste mundo. Quando o número de Arahants “libertos de todos os laços humanos ou divinos” se elevou a sessenta e um, Buda enviou-os a pregar a Lei Eterna e o Caminhar com Brahma; ele lhes deu plenos poderes para receber e ordenar outros; assim nasceu a Comunidade (sangha), a Ordem dos Mendicantes budistas, composta de homens que tinham abandonado1 a vida de família e tomado refúgio em Buda, a Lei Eterna, e a Comunidade”.

Dirigindo-se de Benares a Uruvelā, Buda encontrou um grupo de jovens que excursionavam em companhia de suas esposas. Um deles, que não era casado, tinha levado sua amante, mas esta tinha fugido levando objetos que pertenciam a este moço. Todos a procuravam e perguntaram a Buda se ela a vira. Buda respondeu: “Que achais? Não faríeis melhor procurando o Eu (attānam gaveseyyātha) em vez da mulher?” (Vin. I, 23 cf. Vis. 393). Esta resposta, aceita por estes moços que logo se fizeram discípulos do Mestre, é de uma extrema importância para nos fazer compreender a doutrina budista da renúncia a si mesmo. Vemos aí esse mesmo sábio que acabara de aniquilar o seu eu, recomendar a outro procurar o Eu: contradição aparente que se resolve se fazemos uma nítida distinção entre os dois Eu em questão: um que é necessário aniquilar, outro que é preciso cultivar.

Em Uruvela, Buda morou algum tempo no eremitério de uma escola de brâmanes adoradores do Fogo, e ali fez dois milagres memoráveis: um o de vencer e domar a Serpente furiosa (ahi-nāga) que vivia no Templo do Fogo; outro, o de rachar lenha e de acender o fogo dos brâmanes que não o podiam fazer convenientemente; e isto por suas faculdades sobrenaturais (iddhi). Em conseqüência, o mestre dos brâmanes, Kassapa, e todos os seus quinhentos discípulos, resolveram “caminhar com Brahma” sob a direção de Buda, que os admitiu em sua ordem.

Buda continuou seu caminho para Gayāsīsa, acompanhado de todos os que eram desde então seus discípulos, em número de mil. Ali ele pregou o celebre sermão sobre o Fogo. Todas as sensações e todos os órgãos sensíveis (por exemplo, a língua e sua gustação, o espírito e seus pensamentos) estão em fogo: o fogo do apetite, do ressentimento, da ilusão (rāgo, doso, moho); nascimento, da idade, da morte e da dor. É um sermão que esclarece particularmente a natureza do Nibbāna (“o expirar”) no sentido fundamental da palavra: a “extinção” destes fogos que, ao mesmo tempo que a “individualidade” empírica (atta sambhava) da qual eles são o “porvir” (bhava), cessam de puxar desde eu eles não mais são alimentados com combustível. Oferece também um interesse particular, pelo fato de sua grande analogia com S. Tiago, III, 6, onde “a língua é um fogo...e incendeia a roda do porvir” ( d trocoz thz  genesewz), exatamente como no contexto budista “a língua está em fogo” (jivhā ādittā) e a vida é a roda do porvir (bhavocakka). No texto do Novo Testamento, estas fórmulas são provavelmente de origem órfica mais do que budista, mas talvez tenham elas, tanto de um lado como do outro, uma origem comum ainda mais antiga.

Buda foi em seguida a Rajagaha onde pregou perante o rei Bimbisara de Magadha, e uma assembléia de brâmanes e de “chefes de família”, não sem ter antes convidado Kasksapa de Uruvelā a explicar porque tinha abandonado seus ritos do fogo. Kassapa tendo prestado seu testemunho, Buda pregou, e toda a assistência obteve “a visão da Lei Eterna”, isto é, compreender que “tudo que teve um início deve também ter um fim”. Não devemos esquecer que esta formula, tão simples na aparência, e que é ainda mais conhecida sob a seguinte forma:

 

De tudo que teve uma origem causal, Aquele que achou a
[Verdade mostrou a causa;
E de todas estas coisas, o Grande Asceta igualmente explicou
[a cessação
(Vin. I, 41, etc.)

 

é de fato, um autêntico resumo da doutrina de Buda, e um meio suficiente (e se revolveu por em prática tudo o que está implicado nesta proposição) para atingir a Imortalidade e por fim a todo o sofrimento. É escusado dizer que ela se aplica em primeiro lugar à compreensão e à extirpação das causas do “porvir” em todos os males mortais que herda a “individualidade” passiva. O desaparecimento do desejo, do ressentimento e da ilusão, a interrupção do porvir que dela resulta, são a mesma coisa que a Extinção e a Imortalidade, a última beatitude (S. II, 117; IV, 251, V, 8; Sn. 1095).

Durante suas viagens, Buda voltou à sua cidade natal Kapilavastthu; seguido de um bando de Arahants mendigos, esmolou alimento nas ruas e foi visto das janelas do palácio pela mãe de Rāhula. Aos protestos de seu próprio pai, Buda respondeu que tal havia sido a prática constante dos Budas do passado. Suddhodana fez-se seu discípulo leigo, e sobre seu leito de morte tornou-se Arahant, sem jamais ter abandonado a vida de chefe de família. Entretanto, Buda, seguido de seus dois principais discípulos, Sāriputta e Mogallāna, enquanto o rei levava sua tigela de esmolas, fazia uma visita à mãe de Rāhula. Ela se aproximou dele, apertou com as mãos o seu tornozelo e prostrou a cabeça em seus pés; e o rei lhe contou que tendo sabido que seu esposo tinha revestido a túnica amarela, ela tinha feito o mesmo e não tomava mais que uma única refeição por dia e seguia todas as regras da vida de Buda. Ela mandara seu filho Rāhula procurar seu pai, encarregando-o de reclamar sua herança, pois ele era agora o herdeiro do trono. Mas Buda disse a Sāriputta: “Dá-lhe a ordenação dos monges”, o que foi feito; e foi assim que Rahula recebeu uma herança espiritual. Mas Suddhodana, muito zangado, disse a Buda: “Quando tu abandonaste a vida mundana, causaste uma dor cruel; o mesmo acontece hoje que Rāhula faz o mesmo. O amor de um filho fura a pele, penetra até a medula. Promete-nos que no futuro nenhuma criança possa receber as ordens sem o consentimento de seu pai e de sua mãe”. Buda consentiu.

Entretanto, o príncipe-negociante Anātha Pindika se tornara zelador leigo; tinha comprado por um elevado preço o jardim Jetavana, em Sabathi, e construíra nesse lugar um magnífico mosteiro onde convidou Buda a vir residir; o Mestre fez dele com efeito a sede principal de sua ordem até o fim de seus dias. Este Jetavana, aliás, é “um lugar que nunca foi abandonado por nenhum Buda” (D. II, 74, A, IV, 16) e era natural que a “palhoça perfumada”, que ali habitava, se tornasse o protótipo dos templos budistas posteriores, onde ele mesmo é representado em imagem. Buda não residia ali sempre; era somente sua morada oficial, e é a esse respeito que se formula pela primeira vez a questão da iconografia budista. Com efeito, nós vemos perguntar (no Kalinga Jātaka) por qual espécie de símbolo ou de santuário (cetiya) pode-se representar convenientemente Buda, para lhe fazer oferendas em sua ausência. Ele responde que não pode ser representado convenientemente durante sua vida a não ser pela Árvore da Grande Sabedoria (mahā-boddhi-rukka), e depois de sua morte por relíquias corporais; ele condena o uso de imagens figurativas, isto é, antropomórficas, que ele diz serem imaginárias e sem fundamento. E, com efeito, constatamos que na arte budista dos primeiros tempos, Buda só é representado de modo não icônico pelos seus “traços” (dhātu) fáceis de reconhecer: seja por uma árvore de Bodhi, ou por uma “palhoça perfumada”, seja por uma “Roda da Lei” (dhamma-cakka), ou a marca de seus pés (pada-valañja) ou por um túmulo relicário (thūpa); mas jamais por uma efígie (patimā). De outra parte, quando pelo século I de nossa era, sem duvida, se vai começar a representa Buda sob sua forma humana, deve-se notar que, no seu mais típico aspecto, sua imagem será menos feita à semelhança de um homem que modelada sobre o velho conceito do “Grande Cidadão” (mahā-purisa), da “Grande Personalidade”, do Homem cósmico, e ela repete bem expressamente o tipo reconhecido de estátua de Yakkha: um Yakkha é um Agathos, Daimon, ou gênio tutelar. Isto está bem de acordo com o fato que o próprio Buda é “o Yakkha a quem se deve sacrifício”, com a doutrina da “pureza do Yakkha”, e com toda a tradição do culto pré-budista dos Yakkhas entre os Sākiyas, os Licahais e os Vajjias; não tinha Buda exortado os Vajjias a jamais negligenciar o culto dos Yakkhas? No tempo em que era Bodhisatta, ele fora tomado um dia como o gênio da árvore sob a qual se sentara; e da mesma maneira que Buda era representado em Jetavana e nos inícios da arte budista por “santuário-árvore” (rukkha cetiya), assim também se figuravam os Yakkhas, em cujos “templos” Buda gosta de se abrigar durante suas viagens. Estas considerações recebem todo o seu valor se nos lembrarmos que “o Yaksha” (yakkha) dos Vedas e dos Upanishads designava primitivamente não apenas Brahma enquanto princípio vital da Árvore da Vida, mas ainda o Eu imortal que habita nossa humana “Cidade de Brahma” (brahma-pura) à qual o Homem, enquanto cidadão, deve seu nome de Purusha; enfim que os epítetos de “o Desperto” (buddho) e “O que se tornou Brahma” (brahma-bhūto) são sinônimos bm comprovados daquele que também se chama “O Grande Cidadão” (mahā-purisa) e que, ao menos num texto, explicitamente – e muitas vezes implicitamente – é identificado ao Eu universal (D. III, 84, e passim).

Entretanto o número dos discípulos tinha crescido consideravelmente: eram diversos grupos de monges-mendicantes (Bhikhu) ou de Exilados (Prabbajita) que daí por diante em lugar de errarem continuamente, residiam geralmente nos conventos oferecidos à Comunidade por ricos zeladores leigos. Desde a época em que Buda era vivo se tinham formulado muitas questões de disciplina, e as decisões do Mestre foram os fundamentos da regra (vinaya) da vida do monge-mendicante no que concerne à habitação, às roupas, à alimentação, à conduta, à manutenção, à admissão e à expulsão. Tomada em seu conjunto, a comunidade contava com relativamente poucos Mestres graduados (asekho) e um bem maior número de discípulos noviços (sekho). É uma distinção que é preciso notar particularmente no caso do grande discípulo Ānanda, que era primo-irmão de Buda, que se tornou monge-mendicante em Kapilavastthu desde o segundo ano de prédica: ao cabo de vinte anos foi ele que Buda escolheu para torná-lo seu servidor pessoal e seu confidente, seu mensageiro e seu representante; entretanto ele não pôde obter um “grau religioso” a não ser muito tempo depois da morte do Mestre.

É a Ānanda que as mulheres devem o fato de ser recebidas na ordem. Diz-se que Mahā Pajāpatī, a segunda esposa de Suddhodana, que tinha educado o Bodhisatta depois da morte prematura de Mahā Māyā, pediu para ser admitida na ordem, e que ela ficou muito desgostosa por receber uma recusa. Ela cortou sua cabeleira, revestiu a túnica alaranjada dos monges e acompanhada de outras mulheres Sakyas fez uma nova visita a Buda; todas estas mulheres, exaustas pela caminhada e cobertas de poeira, permaneceram muito tempo em pé à porta de sua residência na cidade de Vesālī. Comovido por vê-las assim, Ānanda defendeu-lhes a causa junto ao Mestre, que reiterou sua recusa por três vezes. Então Ānanda abordou a questão por outro lado. “As mulheres” – perguntou – “que abandonam a vida do lar para viver conforme a doutrina e a disciplina que ensina Aquele que encontrou a Verdade, são capazes de realizar os frutos da “entrada na corrente”, de se tornar “Aquele que voltara ainda uma vez” ou “Aquele que não voltará mais” ou de ser Arahant?” Buda não podia responder negativamente; consentiu na fundação de uma ordem de bhikkunīs paralela à ordem dos bhikkus. Mas acrescentou que se as mulheres não tivessem sido admitidas na Ordem e na prática do Caminhar com Brahma, a Verdadeira Lei (saddhamma) seria mantida mil anos, enquanto que daí por diante ela só duraria quinhentos anos. No seu octogésimo ano Buda caiu doente; apesar de seu rápido restabelecimento, compreendeu que seu fim estava próximo. Disse a Ānanda: “Estou velho agora, a viagem chegou a seu fim, atingi a idade de oitenta anos. Da mesma maneira que uma carroça usada não pode mais andar a não ser com grande reforço de correias, parece-me, Ānanda, que o corpo d’Aquele que encontrou a Verdade só pode prosseguir ainda com a ajuda de medicamentos”. Ānanda desejava saber que instruções Buda deixava aos monges-mendicantes; Buda respondeu que se um deles pensava que o sangha (a Comunidade) dependia dele, era a ela que cabia dar as instruções. – porque deixarei eu instruções concernentes à comunidade? Aquele que encontrou a Verdade pregou a Lei plenamente, sem nada dissimular”; nada mais resta que praticar, contemplar e propagar a Verdade por piedade do mundo, e para o maior bem dos homens e dos deuses. Os medicamentos não deviam contar com qualquer apoio exterior, deviam “tomar o Eu (attā) por refúgio, a Lei Eterna como refúgio”...e é por isso que “eu vos deixo, eu parto, tendo encontrado refúgio no Eu” (D. II, 120).

Foi em Kusinārā, no bosque de sālas, em Mallas, que Buda se deitou para morrer, tomando o “repouso do leão”. Uma multidão de leigos, de mendicantes e de deuses de todas as categorias cercava seu leito, que velava Ānanda. Buda deu-lhe instruções para que se incinerasse seu corpo e que se construísse um túmulo (thūpa, dhātu-gabbha) que encerraria seus ossos e suas cinzas. À vista destes túmulos, erguidos para os Budas, para os Arahants ou para um Rei dos reis, muitos seres encontrariam a calma e a felicidade, e isso os levaria a renascer mais tarde num dos céus. Ānanda chorou lembrando-se que ainda não tinha nenhuma graduação espiritual. Buda assegurou-lhe que ele tinha trabalhado eficientemente e que não tardaria a ser “livre de todas as vicissitudes”, isto é: que se tornaria Arahant; e recomendou Ānanda à companhia dos monges, comparando-o a um Rei dos reis.

“Todas as coisas compostas estão sujeitas à corrupção. Lutai pelo vosso ideal com sobriedade”. Tais foram as ultimas palavras d’Aquele que encontrara a Verdade. Entrando à vontade em cada um dos quatro estados contemplativos superiores, ele saiu do quarto, e nesse instante “expirou”2 totalmente. A morte d’Aquele que encontrara a Verdade foi anunciada por Brahma que compreendeu a morte de todos os seres, sejam quais forem, mesmo a do Grande Mestre, é inevitável. Indra pronunciou os bem conhecidos versos:

 

Transitórias são todas as coisas compostas; cabe-lhes ter uma
[origem, envelhecer,
e tendo tido uma origem, ser novamente destruídas; tê-las detido,
[eis a beatitude

 

O Arahant Anuruddha pronunciou um breve panegírico, e fez notar que “não há luta frenética para o coração fiel, pois o Sábio, o Imutável, encontrou a paz”. Ānanda estava profundamente comovido. Somente os monges mais jovens choravam, rolavam pelo chão desesperados, gemendo por ter o “Olho do Mundo se fechado cedo”. Os antigos os censuravam lembrando-lhes que

 

“Todas as coisas compostas estão sujeitas á corrupção; não
[poderia ser de outra maneira.”

 

O corpo foi incinerado; as relíquias, divididas em oito partes, foram distribuídas aos chefes dos clãs que ergueram oito monumentos para encerrá-las.

Assim Buda que, enquanto fora visível aos olhos humanos, tinha possuído os cinco fatores da personalidade sem ser identificado à sua totalidade nem a qualquer deles (S. III, 112) “fez estalar a veste da Ipseidade” (A. IV, 312; cf. Vin. I, 6). Alcançara depois de muito tempo a qualidade de Imortal (M. I, 172; Vin. I, 9; It. 46, 62) não nascendo, não envelhecendo, não morrendo (KhA. 180; Dh. A, I 228). “O corpo envelhece, mas a Verdadeira Lei não envelhece” (S. I, 43; cf. RV. VI, 18, 7; Bu. III, 2, 12). “Seu nome é Verdade” (A. III, 346, IV, 289). “A Verdade é a Lei Eterna” (S. I, 168). Ainda hoje pode-se dizer que “Aquele que vê a Lei (S. III, 120; Mil. 73) vê Aquele que abriu as portas da Imortalidade”(M. I, 167; Vin. I, 7).

Busquemos agora o que era esta Lei, esta Verdade à qual ele identificava sua essência.


 NOTAS:

1. Este abandono é literalmente uma partida para o exílio (pabhaja); os budistas pensam como Mestre Eckhart, que as pobres almas que permanecem em sua família para servir a Deus, estão em erro “e jamais terão a força de buscar e ganhar aquilo que cabe a outros que seguiram Cristo na pobreza e no exílio”.

 

2. Parinibbāyati: aqui no sentido de morrer, embora raramente empregado a respeito de fenômenos materiais.

 

REFERÊNCIA:
COOMARASVAMY, Ānanda K. O Pensamento Vivo de Buda. Ary Vasconcelos (tradutor). Biblioteca do Pensamento Vivo. São Paulo: Livraria Martins Editora S.A., 1952. p. 15-30.

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