Um blog sobre ciência da religião, filosofia, esoterismo ocidental e outros assuntos de meu interesse. Textos de terceiros não representam as opiniões e crenças do "dono" do blog. Em geral, os títulos das postagens não constam nos textos originais.
domingo, 22 de setembro de 2024
O FIM DA AÇÃO COMUNICATIVA
Por
Byung-Chul Han
No universo pós-factual das tribos digitais, a
opinião não tem mais relação alguma com os fatos. Desse modo, prescinde de toda
e qualquer racionalidade. Não é nem criticável, nem necessita de fundamentação.
Quem se compromete com ela, contudo, recebe uma sensação de pertencimento.
O discurso é substituído, portanto, pela crença e pelo voto de fé. Fora
da área de cada tribo, então, há apenas inimigos – os outros, afinal – que
devem ser combatidos. O tribalismo atual, que pode ser observado não apenas na
direita, mas também na política identitária de esquerda, divide e polariza a
sociedade. Faz da identidade um escudo ou uma fortaleza que rechaça toda
outridade. A tribalização progressiva da sociedade ameaça a democracia. Leva a
uma ditadura da identidade e da opinião tribalista que carece de toda
racionalidade comunicativa.
A comunicação tem se tornado hoje cada vez
menos discursiva, à medida que lhe escapa cada vez mais a dimensão do outro.
A sociedade decai em identidades inconciliáveis sem alteridade. Em vez
do discurso, tem lugar uma guerra de identidades. A sociedade perde, com
isso, o comum [Gemeinsame], o espírito público [Gemeinsinn]. Não
ouvimos mais o outro de maneira atenta. Ouvir atentamente é um ato
político, à medida que só com ele as pessoas formam uma comunidade e se tornam
capazes de discursar. Ele promove um nós. A democracia é uma comunidade
da escuta atenta. A comunicação digital como comunicação sem comunidade
destrói a política da escuta atenta. Só ouvimos ainda, então, a nós
mesmos falar. Isso seria o fim da ação comunicativa.
REFERÊNCIA:
HAN, Byung-Chul. Infocracia: digitalização e a crise da democracia.
Tradução de Gabriel S. Philipson. Petrópolis: Vozes, 2022. p. 61-62.
segunda-feira, 9 de setembro de 2024
“DEUS QUER ASSIM!”
Por
Pierre Bourdieu
Em
uma sociedade dividida em classes, a estrutura dos sistemas de
representações e práticas religiosas próprias aos diferentes grupos ou
classes, contribui para a perpetuação e para a reprodução da ordem social (no
sentido de estrutura das relações estabelecidas entre os grupos e as classes)
ao contribuir para consagrá-la, ou seja, sancioná-la e santificá-la. Tal sucede
porque no momento mesmo em que ela se apresenta oficialmente como una e
indivisa, esta estrutura se organiza em relação a duas posições polares, a
saber: 1) os sistemas de práticas e de representações (religiosidade dominante)
tendentes a justificar a hegemonia das classes dominantes; 2) os sistemas de
práticas e de representações (religiosidade dominada) tendentes a impor aos dominados
um reconhecimento da legitimidade da dominação fundada no desconhecimento do
arbitrário da dominação dos modos de expressão simbólicos da dominação (por
exemplo, o estilo de vida bem como a religiosidade das classes dominantes),
contribuindo, desta maneira, para o reforço simbólico da representação dominada
do mundo político e de ethos da resignação e da renúncia
diretamente inculcado pelas condições de existência. Em outros termos, trata-se
de reforçar simbolicamente a propensão para medir as esperanças pelas
possibilidades inscritas nestas condições de existência, por intermédio de
técnicas de manipulação simbólica de aspirações tão diversas (embora
convergentes) como o deslocamento das aspirações e conflitos através da
compensação e da transfiguração simbólica (promessa da salvação) ou a transmutação
do destino em escolha (exaltação do ascetismo).
REFERÊNCIA:
BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. Sergio Miceli
(introdução, organização e seleção). 8. ed. São Paulo: Perspectiva, 2015. p. 52-53.
DA ILUSÃO, A DESOLAÇÃO
O que há de singular é que essa América, que recebe
todos os anos tantos novos habitantes, está deserta e não tira proveito das perdas
contínuas da África. Esses escravos, que são transferidos para outro clima,
morrem aos milhares; os trabalhos nas minas a que são destinados tanto os
nativos como os estrangeiros, as exalações maléficas que delas efluem, o
mercúrio que deve ser usado continuamente, os destrói sem retorno.
Não há nada de tão extravagante como fazer perecer
um número incontável de homens para tirar do fundo da terra ouro e prata; esses
metais, em si mesmos totalmente inúteis, e que só são riquezas porque foram
escolhidos para serem símbolos.
De Paris, último dia da lua de
Shahban, 1718.