Por Joaquín Lomba Fuentes
Uma vez que Avempace [Abū Bakr Muḥammad ibn Yaḥyà
ibn al-Ṣā’iġ Ibn Bājjah; 1085/1090-1138] se propôs tal ideal supremo para o
homem, o da total desmaterialização e união com o Intelecto agente, a proposta
do mutawaḥḥid ou “solitário” em seu livro Tadbīr al-mutawaḥḥid (O
Regime do Solitário) torna-se uma espécie de grito desesperado de quem se
debate entre sua própria vocação, inalienável, e sua condição natural de ser
social. Avempace viveu numa época em que seu desencanto político o levou a
criticar duramente os vícios e corrupção dos Reinos de Taifas, que, em sua
opinião, impediam qualquer tentativa de perfeição interna. Por isso, opta por
viver na sociedade, embora fora da sua materialidade ao se isolar e viver como
um estrangeiro, como um autêntico solitário (mutawaḥḥid), para cumprir
seu destino supremo. E isso é tanto mais universal, na qual todos os homens
vivem social e individualmente sob o império de um só Deus e de uma só Lei, a šarīʿa,
ajudando-se mutuamente para a obtenção do supremo fim humano70.
Ora, para Avempace o homem é um animal social,
por essência, e só acidentalmente e de modo excepcional pode prescindir dessa
condição, o que não é bom: trata-se de uma anomalia radicalmente dolorosa, como
pode ser a ingestão de um veneno para curar uma enfermidade. Diz em O Regime
do Solitário:
o homem é social por natureza, e na ciência
política ficou patente que todo isolamento é mau. Todavia, isto é assim
unicamente por essência, mas acidentalmente [o isolar-se pode] ser bom, como
ocorre em muitas coisas na natureza. Por exemplo: o pão e a carne são coisas
que naturalmente alimentam e são úteis, enquanto o ópio e a coliquíntida são
venenos mortais. No entanto, existem às vezes no corpo estados não naturais,
para os quais as duas coisas fazem bem e se devem usar, enquanto os alimentos
naturais [que dissemos] prejudicam, sendo necessário evitá-los [...]. Assim,
pois, a relação que aquelas situações [dos venenos e alimentos] guardam com os
corpos é a mesma que a que existe entre os modos de vida [social] e a alma71.
Assim, o estado mais perfeito do homem é viver
em sociedade, com a condição de que ela seja perfeita, quer dizer, de que todos
os seus membros tenham opiniões retas e pratiquem o bem e estejam unidos pelo
amor72, quando
não forem mais necessários os médicos que curam os excessos dos vícios e os juízes
que implantam a justiça profanada pelos malvados. Esta é a utopia política que
Avempace propõe em O Regime do Solitário73.
Mas a realidade de seu tempo, segundo ele, está
no pólo oposto desse ideal, e a conclusão que tira de tal visão da vida
política é que, em tais circunstâncias de degeneração social, o homem que quer
ser sábio deve fugir da comunidade e isolar-se. Portanto, embora o ser humano
seja social por natureza, Avempace não tem dúvida em defender que,
excepcionalmente e de forma acidental, ele renuncie a essa tendência, tal como
vimos na passagem supracitada.
Desse modo, Avempace dedica O Regime do
Solitário à grande apologia do solitário, ensinando o homem sábio a viver
sozinho, a consagrar-se à sabedoria, à virtude e à contemplação da verdade
solitariamente:
no que diz respeito aos homens felizes,
se é possível que existam, só são felizes isolando-se e, por conseguinte, o
regime correto será unicamente o do [homem] isolado, que se trate de um único
ou de mais, enquanto a comunidade, ou a cidade, não se unir a suas doutrinas74.
Assim, a solidão que defende não é a do
eremita, mas a de quem, consciente de sua vocação radical, vive entre os
demais, porém não entregue ao entorno alienante que lhe pode arrebatar a
própria liberdade interior. Esse solitário deve buscar somente a companhia dos
que são como ele, se é que em tais comunidades eles existem75.
Os pesquisadores e leitores de Avempace
interpretaram essa figura do solitário das mais diversas maneiras e com
freqüência a julgaram anti-social, porque acharam que contradizia os princípios
mais elementares do pensamento grego para o qual o homem é essencialmente um
animal político – de Al-Fārābī e do próprio Islã. Mais ainda, esse solitário
foi visto como um homem completamente descomprometido com seu entorno social,
posto que Avempace não lhe exigia a missão de modificar a sociedade da qual
fugia, convertendo-a de imperfeita em perfeita.
No entanto, é preciso desconsiderar essa
acusação de um Avempace anti-social. Em primeiro lugar, como vimos, Avempace
jamais nega a natureza social humana nem pretende que o tal solitário abandone fisicamente
a sociedade. Simplesmente defender o isolamento do homem de modo acidental e excepcional,
vivendo o cotidiano das coisas externas e materiais que lhe são
imprescindíveis, mas sentindo-se, ao mesmo tempo, solitário e alheio a elas. Não
há, portanto, negação completa da vida social, apenas um simples isolamento
interior do sábio.
Em segundo lugar, há numerosos precedentes em
Platão e em Aristóteles, os quais Avempace segue, de defesa desse tipo de
solitário quando a sociedade lhe é hostil para seus fins. Na verdade, Platão
afirma, entre outros escritos, na República e na Apologia de Sócrates76, que se
o sábio quiser, como seria a sua obrigação, deverá educar e ensinar à
comunidade política, mas deverá prescindir dela e isolar-se definitivamente se
ela o rejeitar violentamente. Mais ainda, sublinha o seguinte, perfeitamente
aplicável ao caso do solitário de Avempace: o sábio que não foi educado por um
Estado ou por uma sociedade concreta não estará obrigado a agradecer-lhe pela
formação que recebeu, mas voltará a ela para ensinar e ajudar o corpo social a
progredir. E, na mesma República77, Platão
afirma que os sábios que atingirem o ápice da perfeição, ao final de suas
vidas, terão de isolar-se e viver como solitários nas Ilhas dos Afortunados.
Curiosamente, Avempace refere-se a esse isolamento dos sábios com o mesmo
sentido de Platão e a citação das mesmas Ilhas78.
Aristóteles dá exemplos similares quando
sustenta que os homens excelentes, extraordinários, não têm por que se
submeterem às leis comuns da sociedade, as quais se dirigem ao homem médio, ao
cidadão comum. O sábio pode viver sua própria vida, em isolamento, sem se
adequar às exigências sociais.
E no próprio Islã, os sufis, por exemplo, falam
do místico como de um “estrangeiro”, de um “solitário” que se sente estranho e
alheio entre seus concidadãos. E no xiismo, do qual Avempace tomou alguns elementos
em certos temas, principalmente da Enciclopédia dos Irmãos da Pureza,
também surge com frequência a figura do solitário que se isola da sociedade,
mas volta para renová-la, tema que também tem seus precedentes na República,
de Platão, quando, no mito da caverna, o sábio, que dali sai, retorna ao seu
interior para ensinar e conduzir seus semelhantes rumo à luz da verdade. Mas,
no caso do mutawaḥḥid de Avempace, renunciou-se a esse regresso à vida
social: o solitário se basta a si próprio com sua felicidade. O próprio Platão
adverte, no Protágoras79, que,
se a sociedade resiste definitivamente em receber seus ensinamentos, o sábio pode
e deve renunciar a essa volta a seu interior e à sua missão de guia dos demais.
É o caso de Avempace: ele vê tão
corrompida a sociedade da época em que vive, que acha impossível fazer algo por
ela. Por isso, ele não menciona a missão social do solitário de ensinar e
renovar a sociedade.
Assim se alça orgulhosa a figura do sábio de
Avempace, isolado da sociedade, dolorosamente arrancado dos demais contra sua
própria natureza, auto-suficiente no governo de si próprio e unido mística e
intelectualmente ao Intelecto agente, em isolamento, como outro Quixote
hispânico.
NOTAS:
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