domingo, 9 de junho de 2024

O TEMA DO "SOLITÁRIO", SEGUNDO AVEMPACE

 

 

Por Joaquín Lomba Fuentes

 

Uma vez que Avempace [Abū Bakr Muḥammad ibn Yaḥyà ibn al-Ṣā’iġ Ibn Bājjah; 1085/1090-1138] se propôs tal ideal supremo para o homem, o da total desmaterialização e união com o Intelecto agente, a proposta do mutawaḥḥid ou “solitário” em seu livro Tadbīr al-mutawaḥḥid (O Regime do Solitário) torna-se uma espécie de grito desesperado de quem se debate entre sua própria vocação, inalienável, e sua condição natural de ser social. Avempace viveu numa época em que seu desencanto político o levou a criticar duramente os vícios e corrupção dos Reinos de Taifas, que, em sua opinião, impediam qualquer tentativa de perfeição interna. Por isso, opta por viver na sociedade, embora fora da sua materialidade ao se isolar e viver como um estrangeiro, como um autêntico solitário (mutawaḥḥid), para cumprir seu destino supremo. E isso é tanto mais universal, na qual todos os homens vivem social e individualmente sob o império de um só Deus e de uma só Lei, a šarīʿa, ajudando-se mutuamente para a obtenção do supremo fim humano70.

Ora, para Avempace o homem é um animal social, por essência, e só acidentalmente e de modo excepcional pode prescindir dessa condição, o que não é bom: trata-se de uma anomalia radicalmente dolorosa, como pode ser a ingestão de um veneno para curar uma enfermidade. Diz em O Regime do Solitário:

 

o homem é social por natureza, e na ciência política ficou patente que todo isolamento é mau. Todavia, isto é assim unicamente por essência, mas acidentalmente [o isolar-se pode] ser bom, como ocorre em muitas coisas na natureza. Por exemplo: o pão e a carne são coisas que naturalmente alimentam e são úteis, enquanto o ópio e a coliquíntida são venenos mortais. No entanto, existem às vezes no corpo estados não naturais, para os quais as duas coisas fazem bem e se devem usar, enquanto os alimentos naturais [que dissemos] prejudicam, sendo necessário evitá-los [...]. Assim, pois, a relação que aquelas situações [dos venenos e alimentos] guardam com os corpos é a mesma que a que existe entre os modos de vida [social] e a alma71.

 

Assim, o estado mais perfeito do homem é viver em sociedade, com a condição de que ela seja perfeita, quer dizer, de que todos os seus membros tenham opiniões retas e pratiquem o bem e estejam unidos pelo amor72, quando não forem mais necessários os médicos que curam os excessos dos vícios e os juízes que implantam a justiça profanada pelos malvados. Esta é a utopia política que Avempace propõe em O Regime do Solitário73.

Mas a realidade de seu tempo, segundo ele, está no pólo oposto desse ideal, e a conclusão que tira de tal visão da vida política é que, em tais circunstâncias de degeneração social, o homem que quer ser sábio deve fugir da comunidade e isolar-se. Portanto, embora o ser humano seja social por natureza, Avempace não tem dúvida em defender que, excepcionalmente e de forma acidental, ele renuncie a essa tendência, tal como vimos na passagem supracitada.

Desse modo, Avempace dedica O Regime do Solitário à grande apologia do solitário, ensinando o homem sábio a viver sozinho, a consagrar-se à sabedoria, à virtude e à contemplação da verdade solitariamente:

 

no que diz respeito aos homens felizes, se é possível que existam, só são felizes isolando-se e, por conseguinte, o regime correto será unicamente o do [homem] isolado, que se trate de um único ou de mais, enquanto a comunidade, ou a cidade, não se unir a suas doutrinas74.

 

Assim, a solidão que defende não é a do eremita, mas a de quem, consciente de sua vocação radical, vive entre os demais, porém não entregue ao entorno alienante que lhe pode arrebatar a própria liberdade interior. Esse solitário deve buscar somente a companhia dos que são como ele, se é que em tais comunidades eles existem75.

Os pesquisadores e leitores de Avempace interpretaram essa figura do solitário das mais diversas maneiras e com freqüência a julgaram anti-social, porque acharam que contradizia os princípios mais elementares do pensamento grego para o qual o homem é essencialmente um animal político – de Al-Fārābī e do próprio Islã. Mais ainda, esse solitário foi visto como um homem completamente descomprometido com seu entorno social, posto que Avempace não lhe exigia a missão de modificar a sociedade da qual fugia, convertendo-a de imperfeita em perfeita.

No entanto, é preciso desconsiderar essa acusação de um Avempace anti-social. Em primeiro lugar, como vimos, Avempace jamais nega a natureza social humana nem pretende que o tal solitário abandone fisicamente a sociedade. Simplesmente defender o isolamento do homem de modo acidental e excepcional, vivendo o cotidiano das coisas externas e materiais que lhe são imprescindíveis, mas sentindo-se, ao mesmo tempo, solitário e alheio a elas. Não há, portanto, negação completa da vida social, apenas um simples isolamento interior do sábio.

Em segundo lugar, há numerosos precedentes em Platão e em Aristóteles, os quais Avempace segue, de defesa desse tipo de solitário quando a sociedade lhe é hostil para seus fins. Na verdade, Platão afirma, entre outros escritos, na República e na Apologia de Sócrates76, que se o sábio quiser, como seria a sua obrigação, deverá educar e ensinar à comunidade política, mas deverá prescindir dela e isolar-se definitivamente se ela o rejeitar violentamente. Mais ainda, sublinha o seguinte, perfeitamente aplicável ao caso do solitário de Avempace: o sábio que não foi educado por um Estado ou por uma sociedade concreta não estará obrigado a agradecer-lhe pela formação que recebeu, mas voltará a ela para ensinar e ajudar o corpo social a progredir. E, na mesma República77, Platão afirma que os sábios que atingirem o ápice da perfeição, ao final de suas vidas, terão de isolar-se e viver como solitários nas Ilhas dos Afortunados. Curiosamente, Avempace refere-se a esse isolamento dos sábios com o mesmo sentido de Platão e a citação das mesmas Ilhas78.

Aristóteles dá exemplos similares quando sustenta que os homens excelentes, extraordinários, não têm por que se submeterem às leis comuns da sociedade, as quais se dirigem ao homem médio, ao cidadão comum. O sábio pode viver sua própria vida, em isolamento, sem se adequar às exigências sociais.

E no próprio Islã, os sufis, por exemplo, falam do místico como de um “estrangeiro”, de um “solitário” que se sente estranho e alheio entre seus concidadãos. E no xiismo, do qual Avempace tomou alguns elementos em certos temas, principalmente da Enciclopédia dos Irmãos da Pureza, também surge com frequência a figura do solitário que se isola da sociedade, mas volta para renová-la, tema que também tem seus precedentes na República, de Platão, quando, no mito da caverna, o sábio, que dali sai, retorna ao seu interior para ensinar e conduzir seus semelhantes rumo à luz da verdade. Mas, no caso do mutawaḥḥid de Avempace, renunciou-se a esse regresso à vida social: o solitário se basta a si próprio com sua felicidade. O próprio Platão adverte, no Protágoras79, que, se a sociedade resiste definitivamente em receber seus ensinamentos, o sábio pode e deve renunciar a essa volta a seu interior e à sua missão de guia dos demais. É o caso de Avempace: ele vê tão corrompida a sociedade da época em que vive, que acha impossível fazer algo por ela. Por isso, ele não menciona a missão social do solitário de ensinar e renovar a sociedade.

Assim se alça orgulhosa a figura do sábio de Avempace, isolado da sociedade, dolorosamente arrancado dos demais contra sua própria natureza, auto-suficiente no governo de si próprio e unido mística e intelectualmente ao Intelecto agente, em isolamento, como outro Quixote hispânico.

  

NOTAS:

69. Id., 2000, p. 31.
 
70. LEAMAN, O. Ibn Bājja on society and philosophy. Der Islam, 57, p. 109-119, 1982; ROSENTHAL, E. I. J. The place of Politics in the Philosophy of Ibn Bājjah. Islamic Culture, XXV, p. 187-211, 1951.
 
71. AVEMPACE, op. cit. 1997, p. 169.
 
72. LOMBA FUENTES, Joaquín. Consideraciones sobre el tema del amor em Avempace. La Ciudad de Dios, Homenaje a Fray Luciano Rubio, vol. CCVIII, p. 83-99, mayo/dic 1995a.
 
73. AVEMPACE, op. cit., 1997, p. 98.
 
74 Ibid., p. 102.
 
75. Ibid., p. 168-169.
 
76. PLATÃO, República, 519d et seq.; 492b; 496c; Apologia, 31d.
 
77. Id., República, 540a et seq.
 
78. AVEMPACE, op. cit., 1997, p. 145.
 
79. PLATÃO, Protágoras, 325c et seq.
 

 

REFERÊNCIA:
FUENTES. Joaquín Lomba. Avempace (Ibn Bājjah) Primeiro Comentador de Aristóteles no Ocidente. In: PEREIRA, Rosalie Helena de Souza (org.). O Islã clássico: itinerários de uma cultura. São Paulo: Perspectiva, 2007. p. 441-445.

Observação: texto anterior ao Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.

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