quarta-feira, 5 de junho de 2024

A ESCRITURA E SEUS INTÉRPRETES

 

Por Montesquieu
 
 
CARTA 134

 

RICA  AO MESMO
 

 No dia seguinte voltei a essa biblioteca [num convento], onde encontrei um homem totalmente diferente daquele que havia visto na primeira vez. Tinha aparência simples, de uma fisionomia espiritual e de uma abordagem muito afáveis. Logo que o deixei a par de minha curiosidade, empenhou-se em satisfazê-la e até mesmo, embora fosse estrangeiro, em me instruir.

“Padre, lhe perguntei, que são estes grossos volumes que ocupam todo este lado da biblioteca? – São os intérpretes da Escritura. – Há um grande número deles, continuei; a Escritura devia ser bem obscura outrora e bem clara hoje. Permanecem ainda algumas dúvidas? Pode haver ainda pontos contestados? – Se os há, bom Deus! Se os há! Há tantos quantas são as linhas, respondeu. – Sim? retorqui. E que fizeram todos esses autores? – Esses autores, continuou ele, não procuraram na Escritura o que se deve crer, mas aquilo que eles próprios acreditam; não a consideraram como um livro no qual estavam contidos os dogmas que deviam acatar, mas como uma obra que poderia conferir autoridade a suas próprias idéias; é por isso que corromperam todo o sentido dela e deram outra leitura a todas as suas passagens. É um país onde os homens de todas as seitas fazem incursões e vão à pilhagem; é um campo de batalha onde as nações inimigas que se encontram se entregam decididamente a combates, nos quais se atacam, fazem escaramuças de todas as maneiras.” 

 

De Paris, 23 da lua de Ramazan, 1719.

 

 

REFERÊNCIA:
MONTESQUIEU. Cartas Persas. v. II. Tradução de Antônio Geraldo da Silva. Coleção Grandes Obras do Pensamento Universal, n. 47. São Paulo: Editora Escala, 2006. p. 313.

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