quarta-feira, 12 de junho de 2024

EMOÇÃO EM CHRISTINE TAPPOLET

 
 

Por Eugênia Ribeiro Teles

 
Capítulo do livro Pequenos Ensaios sobre Grandes Filósofas, volume 4.

Emoção em Christine Tappolet analisa a teoria perceptual da filósofa suíço-canadense na defesa de um elo entre valores e emoções que torna possível avaliar se as emoções sentidas são ou não adequadas a propriedades presentes nos objetos que as provocam. Essa é, como argumenta Eugênia Ribeiro Teles, uma relevante contribuição ao debate contemporâneo em favor do objetivismo dos valores e do conteúdo cognitivo das emoções.


REFERÊNCIA:
TELES, Eugênia Ribeiro. Emoção em Christine Tappolet. In: ARAÚJO, Carolina; DEPLAGNE, Luciana; NOGUERA, Maria Simone Marinho (org.). Ilustrações de Matheus Dantas de Medeiros. Pequenos Ensaios sobre Grandes Filósofas. v. 4. Campina Grande: EDUEPB, 2024. p. 241-266.

  
LINK PARA DOWNLOAD DO LIVRO: https://zenodo.org/records/11583698

domingo, 9 de junho de 2024

O TEMA DO "SOLITÁRIO", SEGUNDO AVEMPACE

 

 

Por Joaquín Lomba Fuentes

 

Uma vez que Avempace [Abū Bakr Muḥammad ibn Yaḥyà ibn al-Ṣā’iġ Ibn Bājjah; 1085/1090-1138] se propôs tal ideal supremo para o homem, o da total desmaterialização e união com o Intelecto agente, a proposta do mutawaḥḥid ou “solitário” em seu livro Tadbīr al-mutawaḥḥid (O Regime do Solitário) torna-se uma espécie de grito desesperado de quem se debate entre sua própria vocação, inalienável, e sua condição natural de ser social. Avempace viveu numa época em que seu desencanto político o levou a criticar duramente os vícios e corrupção dos Reinos de Taifas, que, em sua opinião, impediam qualquer tentativa de perfeição interna. Por isso, opta por viver na sociedade, embora fora da sua materialidade ao se isolar e viver como um estrangeiro, como um autêntico solitário (mutawaḥḥid), para cumprir seu destino supremo. E isso é tanto mais universal, na qual todos os homens vivem social e individualmente sob o império de um só Deus e de uma só Lei, a šarīʿa, ajudando-se mutuamente para a obtenção do supremo fim humano70.

Ora, para Avempace o homem é um animal social, por essência, e só acidentalmente e de modo excepcional pode prescindir dessa condição, o que não é bom: trata-se de uma anomalia radicalmente dolorosa, como pode ser a ingestão de um veneno para curar uma enfermidade. Diz em O Regime do Solitário:

 

o homem é social por natureza, e na ciência política ficou patente que todo isolamento é mau. Todavia, isto é assim unicamente por essência, mas acidentalmente [o isolar-se pode] ser bom, como ocorre em muitas coisas na natureza. Por exemplo: o pão e a carne são coisas que naturalmente alimentam e são úteis, enquanto o ópio e a coliquíntida são venenos mortais. No entanto, existem às vezes no corpo estados não naturais, para os quais as duas coisas fazem bem e se devem usar, enquanto os alimentos naturais [que dissemos] prejudicam, sendo necessário evitá-los [...]. Assim, pois, a relação que aquelas situações [dos venenos e alimentos] guardam com os corpos é a mesma que a que existe entre os modos de vida [social] e a alma71.

 

Assim, o estado mais perfeito do homem é viver em sociedade, com a condição de que ela seja perfeita, quer dizer, de que todos os seus membros tenham opiniões retas e pratiquem o bem e estejam unidos pelo amor72, quando não forem mais necessários os médicos que curam os excessos dos vícios e os juízes que implantam a justiça profanada pelos malvados. Esta é a utopia política que Avempace propõe em O Regime do Solitário73.

Mas a realidade de seu tempo, segundo ele, está no pólo oposto desse ideal, e a conclusão que tira de tal visão da vida política é que, em tais circunstâncias de degeneração social, o homem que quer ser sábio deve fugir da comunidade e isolar-se. Portanto, embora o ser humano seja social por natureza, Avempace não tem dúvida em defender que, excepcionalmente e de forma acidental, ele renuncie a essa tendência, tal como vimos na passagem supracitada.

Desse modo, Avempace dedica O Regime do Solitário à grande apologia do solitário, ensinando o homem sábio a viver sozinho, a consagrar-se à sabedoria, à virtude e à contemplação da verdade solitariamente:

 

no que diz respeito aos homens felizes, se é possível que existam, só são felizes isolando-se e, por conseguinte, o regime correto será unicamente o do [homem] isolado, que se trate de um único ou de mais, enquanto a comunidade, ou a cidade, não se unir a suas doutrinas74.

 

Assim, a solidão que defende não é a do eremita, mas a de quem, consciente de sua vocação radical, vive entre os demais, porém não entregue ao entorno alienante que lhe pode arrebatar a própria liberdade interior. Esse solitário deve buscar somente a companhia dos que são como ele, se é que em tais comunidades eles existem75.

Os pesquisadores e leitores de Avempace interpretaram essa figura do solitário das mais diversas maneiras e com freqüência a julgaram anti-social, porque acharam que contradizia os princípios mais elementares do pensamento grego para o qual o homem é essencialmente um animal político – de Al-Fārābī e do próprio Islã. Mais ainda, esse solitário foi visto como um homem completamente descomprometido com seu entorno social, posto que Avempace não lhe exigia a missão de modificar a sociedade da qual fugia, convertendo-a de imperfeita em perfeita.

No entanto, é preciso desconsiderar essa acusação de um Avempace anti-social. Em primeiro lugar, como vimos, Avempace jamais nega a natureza social humana nem pretende que o tal solitário abandone fisicamente a sociedade. Simplesmente defender o isolamento do homem de modo acidental e excepcional, vivendo o cotidiano das coisas externas e materiais que lhe são imprescindíveis, mas sentindo-se, ao mesmo tempo, solitário e alheio a elas. Não há, portanto, negação completa da vida social, apenas um simples isolamento interior do sábio.

Em segundo lugar, há numerosos precedentes em Platão e em Aristóteles, os quais Avempace segue, de defesa desse tipo de solitário quando a sociedade lhe é hostil para seus fins. Na verdade, Platão afirma, entre outros escritos, na República e na Apologia de Sócrates76, que se o sábio quiser, como seria a sua obrigação, deverá educar e ensinar à comunidade política, mas deverá prescindir dela e isolar-se definitivamente se ela o rejeitar violentamente. Mais ainda, sublinha o seguinte, perfeitamente aplicável ao caso do solitário de Avempace: o sábio que não foi educado por um Estado ou por uma sociedade concreta não estará obrigado a agradecer-lhe pela formação que recebeu, mas voltará a ela para ensinar e ajudar o corpo social a progredir. E, na mesma República77, Platão afirma que os sábios que atingirem o ápice da perfeição, ao final de suas vidas, terão de isolar-se e viver como solitários nas Ilhas dos Afortunados. Curiosamente, Avempace refere-se a esse isolamento dos sábios com o mesmo sentido de Platão e a citação das mesmas Ilhas78.

Aristóteles dá exemplos similares quando sustenta que os homens excelentes, extraordinários, não têm por que se submeterem às leis comuns da sociedade, as quais se dirigem ao homem médio, ao cidadão comum. O sábio pode viver sua própria vida, em isolamento, sem se adequar às exigências sociais.

E no próprio Islã, os sufis, por exemplo, falam do místico como de um “estrangeiro”, de um “solitário” que se sente estranho e alheio entre seus concidadãos. E no xiismo, do qual Avempace tomou alguns elementos em certos temas, principalmente da Enciclopédia dos Irmãos da Pureza, também surge com frequência a figura do solitário que se isola da sociedade, mas volta para renová-la, tema que também tem seus precedentes na República, de Platão, quando, no mito da caverna, o sábio, que dali sai, retorna ao seu interior para ensinar e conduzir seus semelhantes rumo à luz da verdade. Mas, no caso do mutawaḥḥid de Avempace, renunciou-se a esse regresso à vida social: o solitário se basta a si próprio com sua felicidade. O próprio Platão adverte, no Protágoras79, que, se a sociedade resiste definitivamente em receber seus ensinamentos, o sábio pode e deve renunciar a essa volta a seu interior e à sua missão de guia dos demais. É o caso de Avempace: ele vê tão corrompida a sociedade da época em que vive, que acha impossível fazer algo por ela. Por isso, ele não menciona a missão social do solitário de ensinar e renovar a sociedade.

Assim se alça orgulhosa a figura do sábio de Avempace, isolado da sociedade, dolorosamente arrancado dos demais contra sua própria natureza, auto-suficiente no governo de si próprio e unido mística e intelectualmente ao Intelecto agente, em isolamento, como outro Quixote hispânico.

  

NOTAS:

69. Id., 2000, p. 31.
 
70. LEAMAN, O. Ibn Bājja on society and philosophy. Der Islam, 57, p. 109-119, 1982; ROSENTHAL, E. I. J. The place of Politics in the Philosophy of Ibn Bājjah. Islamic Culture, XXV, p. 187-211, 1951.
 
71. AVEMPACE, op. cit. 1997, p. 169.
 
72. LOMBA FUENTES, Joaquín. Consideraciones sobre el tema del amor em Avempace. La Ciudad de Dios, Homenaje a Fray Luciano Rubio, vol. CCVIII, p. 83-99, mayo/dic 1995a.
 
73. AVEMPACE, op. cit., 1997, p. 98.
 
74 Ibid., p. 102.
 
75. Ibid., p. 168-169.
 
76. PLATÃO, República, 519d et seq.; 492b; 496c; Apologia, 31d.
 
77. Id., República, 540a et seq.
 
78. AVEMPACE, op. cit., 1997, p. 145.
 
79. PLATÃO, Protágoras, 325c et seq.
 

 

REFERÊNCIA:
FUENTES. Joaquín Lomba. Avempace (Ibn Bājjah) Primeiro Comentador de Aristóteles no Ocidente. In: PEREIRA, Rosalie Helena de Souza (org.). O Islã clássico: itinerários de uma cultura. São Paulo: Perspectiva, 2007. p. 441-445.

Observação: texto anterior ao Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.

quarta-feira, 5 de junho de 2024

A ESCRITURA E SEUS INTÉRPRETES

 

Por Montesquieu
 
 
CARTA 134

 

RICA  AO MESMO
 

 No dia seguinte voltei a essa biblioteca [num convento], onde encontrei um homem totalmente diferente daquele que havia visto na primeira vez. Tinha aparência simples, de uma fisionomia espiritual e de uma abordagem muito afáveis. Logo que o deixei a par de minha curiosidade, empenhou-se em satisfazê-la e até mesmo, embora fosse estrangeiro, em me instruir.

“Padre, lhe perguntei, que são estes grossos volumes que ocupam todo este lado da biblioteca? – São os intérpretes da Escritura. – Há um grande número deles, continuei; a Escritura devia ser bem obscura outrora e bem clara hoje. Permanecem ainda algumas dúvidas? Pode haver ainda pontos contestados? – Se os há, bom Deus! Se os há! Há tantos quantas são as linhas, respondeu. – Sim? retorqui. E que fizeram todos esses autores? – Esses autores, continuou ele, não procuraram na Escritura o que se deve crer, mas aquilo que eles próprios acreditam; não a consideraram como um livro no qual estavam contidos os dogmas que deviam acatar, mas como uma obra que poderia conferir autoridade a suas próprias idéias; é por isso que corromperam todo o sentido dela e deram outra leitura a todas as suas passagens. É um país onde os homens de todas as seitas fazem incursões e vão à pilhagem; é um campo de batalha onde as nações inimigas que se encontram se entregam decididamente a combates, nos quais se atacam, fazem escaramuças de todas as maneiras.” 

 

De Paris, 23 da lua de Ramazan, 1719.

 

 

REFERÊNCIA:
MONTESQUIEU. Cartas Persas. v. II. Tradução de Antônio Geraldo da Silva. Coleção Grandes Obras do Pensamento Universal, n. 47. São Paulo: Editora Escala, 2006. p. 313.

sábado, 1 de junho de 2024

DESGOSTO PELA GUERRA

 

Por Laozi (Lao-Tzu)

 


夫佳兵者,不祥之器,

 fū jiā bīng zhě bù xiáng zhī qì

物或恶之

wù huò è zhī

故有道者不处。

gù yǒu dào zhě bù chǔ.

Armas belíssimas não são instrumentos propícios.

São coisas que todos detestam!

Quem possui o Dao não se empenha nelas.

 

君子居则贵左,

 ūnzǐ jū zé guì zuǒ

用兵则贵右。

yòng bīng zé guì yòu.

兵者不祥之器,

bīng zhě bù xiáng zhī qì,

非君子之器,

fēi jūnzǐ zhī qì,

不得已而用之,

bù de yǐ ér yòng zhī,

恬淡为上。

tiándàn wèi shàng.

胜而不美,

shèng ér bù měi,

而美之者,是乐杀人。

ér měi zhī zhě shì lè shā rén. 夫乐杀人者,

fū lè shā rén zhě,

则不可得志于天下矣。

zé bù kě dézhì yú tiānxià yǐ.

Em sua casa, o Homem Nobre honra o lado esquerdo.

Mas ao utilizar as armas, honra o lado direito.

Armas não são instrumentos propícios.

Não são instrumentos do Homem Nobre.

 

Sendo necessário utilizá-las,

ele age com quietude e sobriedade.

Vence sem encontrar o prazer na guerra.

Porém, caso venha a sentir o prazer

e a satisfação em matar as pessoas,

não alcançará seu propósito no mundo.

 

 

吉事尚左

jí shì shàng zuǒ

凶事尚右。

xiōng shì shàng yòu

偏将军居左

piān jiāng jūn jū zuǒ

上将军居右

shàng jiàng jūn jū yòu

言以丧礼处之。

yán yǐ sàng lǐ chǔ zhī

杀人之众

shā rén zhī zhòng

以悲哀泣之

yǐ bēi āi qì zhī

战胜以丧礼处之。

zhàn shèng yǐ sàng lǐ chǔ zhī

Em situações propícias, honra-se o lado esquerdo.

E, em situações nefastas, honra-se o lado direito.

Assim como se cumpre nos ritos fúnebres,

o segundo general deve postar-se no lado esquerdo

e o primeiro general postar-se no lado direito.

 

Quem matou as pessoas deve lastimar

com dor e tristeza as inúmeras mortes.

Após a vitória da guerra, cumpre-se o rito fúnebre.

 



REFERÊNCIA:
LAOZI. Dao De Jing: o livro do Tao. Tradução de Chiu Yi Chih. São Paulo: Mantra, 2017. p. 78-81.