O
Tibete, conhecido como “reino das neves eternas” ou “telhado do mundo”, povoa
a imaginação de muitos ocidentais há séculos, em especial dos estudantes de
Misticismo. Mas o que há de realidade em todas as lendas, histórias e doutrinas
a respeito deste estranho país?
Podemos
dizer que há três Tibetes: um exotérico, um mesotérico e um esotérico. Os
primeiros dois referem-se respectivamente a (1) o que de errôneo foi escrito a
respeito do país e (2) à cultura e religião dos tibetanos. O terceiro (3), o
esotérico, representa a verdade a respeito das doutrinas secretas abrigadas no
Tibete. É importante esclarecer que a entrada no terceiro círculo não se dá
passando-se pelos dois primeiros, ao contrário do que se poderia pensar, mas
por uma via externa e diferente, conforme veremos.
O Tibete exotérico
Nos
séculos passados algumas informações filtradas para fora dos contrafortes
tibetanos chegaram à Europa, devido talvez, em primeiro lugar, às explorações
do veneziano Marco Pólo, que o levaram ao Extremo Oriente1. Graças
à pena de seu amanuense, Rusticiano, ficou-se sabendo dos estranhos prodígios
que Pólo disse ter visto entre os monges budistas, chineses e tibetanos.
Mais
tarde, outros exploradores alcançaram o Tibete. As gotas de informação, misturadas
à imaginação popular, deram nascimento a um Tibete mítico. Quando se soube que
no coração do Himalaia havia um reino dedicado inteiramente a uma religião pacífica,
que cultuava deuses e demônios, com oráculos e yogues por toda parte, apinhado
de mosteiros, e cujo líder máximo residia em um imenso palácio branco e dourado
no topo de uma montanha, considerado pelos seus súditos como um “deus-rei” que
se reencarnava sucessivamente, as portas do maravilhoso abriram-se...
O
interesse pelo Tibete exotérico atingiu em cheio o Ocidente, se transformando
em verdadeira febre, pelas mãos de um habilidoso escritor inglês, Cyril
Hoskins, que assumiu o pseudônimo de Terça-Feira
Lobsang Rampa, o qual alegava ser um lama tibetano que atingira o Ocidente
após múltiplas aventuras físicas e místicas. Seu primeiro livro, The Third Eye (A Terceira Visão, 1956),
que trazia na capa a foto de Rampa com um terceiro olho na testa, tornou-se
rapidamente um best-seller mundial, conquistando entusiásticos adeptos.
Na
saga concebida por Lobsang Rampa, ou melhor, Cyril Hoskins, somos apresentados
a uma trama que mistura ficção e realidade. É inegável que várias informações
oferecidas em seus livros são autênticas e verificáveis2, mas muitas
outras são totalmente inverídicas, começando pela mais importante delas, a
identidade do autor. Rampa contou com mais um apoio decisivo para o fascínio
que exerceu sobre o público: seu brilhantismo como escritor, pois de forma
simples e bem-humorada conseguiu evocar uma época do Tibete muito saborosa que,
infelizmente, desapareceu com a invasão chinesa de 1959.
Nem
mesmo a descoberta da verdadeira identidade de Rampa conseguiu arrefecer o
entusiasmo pelos seus livros. Ainda hoje suas obras são muito procuradas... De
todo modo, se um mérito cabe a Lobsang Rampa foi, indubitavelmente, o de ter
divulgado, como nenhum outro em sua época, e por muitas décadas seguintes, a
triste situação do povo tibetano, coisa reconhecida até mesmo pelos atuais
representantes do Tibete, entre eles o XIV Dalai Lama.
É
a Rampa, pois, que cabe muito dos equívocos divulgados sobre o Tibete, e na
esteira dele muitos autores começaram a explorar o veio, originando inúmeras
obras em que fantasia, ficção e realidade se misturam formando um mágico
caleidoscópio que ainda seduz muitos buscadores.
O Tibete mesotérico
Antes
de Lobsang Rampa, informações fidedignas sobre o Tibete já haviam chegado ao
Ocidente, por meio de exploradores e pesquisadores. O Tibete mesotérico é,
como vimos, o Tibete intermediário entre o totalmente fantasioso e o
verdadeiramente místico. Trata-se de um Tibete autêntico do ponto de vista de
sua cultura e religião, mas enganoso quando se confunde estas com as
verdadeiras doutrinas secretas abrigadas naquele país.
O
Ocidente começou a conhecer mais acerca do Tibete cultural e religioso, ainda
que limitadamente, já em 1784, quando o orientalista e filólogo húngaro Sándor
Kőrösi Csoma, mais conhecido como Alexander Csoma de Kőrös, realizou pesquisas
na própria terra das neves,
originando o primeiro dicionário tibetano-inglês do mundo. No século seguinte,
entre 1844-1866, os padres lazaristas Evariste Huc e Joseph Gabet procederam a
uma expedição pelo Extremo Oriente, publicando logo após o livro Travels in Tartary, Thibet and China
(Viagens pela Tartária, Tibete e China - 1887), com relatos sobre suas
experiências nesses países. E no início do século XX, os russos Ferdinand
Antoni Ossendowski e Nicholas Roerich, a exemplo dos exploradores anteriores,
publicaram obras sobre suas viagens pelo Oriente, em especial pelo Tibete. O
primeiro é autor do livro Beasts, Men and
Gods (Bestas, Homens e Deuses - 1921); o segundo escreveu The Way to Shamballa (O Caminho para
Shamballa - 1928), além de outros livros sobre o Oriente.
Mas,
da mesma forma que pode se imputar a Lobsang Rampa a paternidade do Tibete
exotérico, é à francesa Alexandra David-Néel, pseudônimo de Louise Eugénie
Alexandrine Marie David, que cabe o mérito de ter trazido ao amplo
conhecimento do Ocidente informações precisas sobre a cultura e a religião do
país, isso também nas primeiras décadas do século XX. David-Néel viveu e viajou
pelo Tibete durante 14 anos, tendo se tornado a primeira mulher ocidental a
ser consagrada como Lama. Esta notável exploradora escreveu vários livros
sobre suas aventuras, sendo que as obras mais emblemáticas são Voyage d’une Parisienne à Lhassa
(Viagens de uma Parisiense a Lhasa - 1927) e Mystiques et Magiciens du Tibete (Místicos e Mágicos do Tibete - 1929).
Foi
também nessa época que o escritor inglês James Hilton lançou seu livro Lost Horizon (Horizonte Perdido, 1933),
em que aparece a mística cidade perdida de “Shangri-La”, um local paradisíaco
nas montanhas himalaicas. A obra rapidamente se transformou em sucesso mundial,
gerando dois filmes nas décadas seguintes, sendo que a primeira versão, de
1937, dirigida por Frank Capra, contou com a consultoria de H. Spencer Lewis,
então Imperator da AMORC, quanto à confecção dos cenários.
Foi
também no início do século XX que os estudos sobre o Tibete, do ponto de vista
exclusivamente acadêmico, tomaram corpo, graças aos trabalhos pioneiros do
americano Walter Yeeling Evans-Wentz, que traduziu várias obras capitais do Budismo
Tibetano para o Inglês, como “O Livro Tibetano dos Mortos”.
A
partir daí, mais pesquisadores ocidentais se dedicaram a estudar o país, e
quando o mesmo foi invadido pela China, em 1959, muitos dos próprios tibetanos
e seus mestres religiosos migraram para o Ocidente, criando Centros, Templos e
Fundações para a preservação de sua cultura e religião.
A
magia e o mistério associados ao Tibete são assuntos constantemente submetidos
por ocidentais aos budistas tibetanos. Em uma de suas autobiografias, “Liberdade
no Exílio” (1992), o atual Dalai Lama dedicou um capítulo ao tema, dizendo o
seguinte: “Frequentemente sou perguntado
sobre os aspectos assim chamados ‘mágicos’ do budismo tibetano. Muitas pessoas
no Ocidente querem saber se os livros sobre o Tibete, escritos por pessoas como
Lobsang Rampa e alguns outros, onde se fala em práticas ocultas, são
verdadeiros. Também me perguntam se Shambhala (um país legendário referido em
certas escrituras e supostamente oculto nas regiões desérticas do norte do
Tibete) realmente existe. Há também a carta que eu recebi de um eminente
cientista, no início dos anos 60, dizendo que ele havia ouvido que certos
lamas são capazes de realizar certos fenômenos sobrenaturais, e perguntando se
ele mesmo poderia realizar experimentos para determinar a veracidade disso.”
O
Dalai Lama prossegue afirmando que livros como os de Rampa são ficção, mas que
segundo o Budismo Tibetano, Shambhala existe, mas não no plano convencional; e
que certas práticas de sua religião, que integra exercícios de yoga, realmente
dão origem a fenômenos que podem ser considerados “mágicos”, como
clarividência, telepatia, controle da temperatura do corpo etc.
É
importante considerar que o Budismo Tibetano é uma forma de Budismo que absorveu
os cultos xamânicos autóctones do Tibete e que, com eles, formou uma teologia
bastante singular, que integra o Budismo original com conceitos pitorescos como
oráculos, fenômenos psíquicos, deuses, demônios e outros agregados.
Tibete esotérico
Mas
existe um Tibete verdadeiramente esotérico, que justifique todas as esperanças
e comentários através dos séculos? Nos círculos de místicos, o Tibete sempre
foi apontado como sede da Grande Loja Branca a partir de uma época, que lá
teria se radicado depois de ter estado sediada em outros países, No livro “A
Vida Mística de Jesus”, H. Spencer Lewis revela que a Fraternidade, após ter
sido fundada por Tutmés III e dinamizada por Akhenaton, permaneceu no Egito até
a época de Cristo, tendo se transferido para o Monte Carmelo e, após, mudado em
definitivo para algum lugar no Himalaia. A Tradição também fala da Ordem de Melquisedeque (outro nome para
a Grande Loja Branca), deixando o Egito e migrando para a Ásia, o Tibete
especificamente.
Segundo
a historiadora teosófica Isabel Cooper-Oakley, autora de uma importante
biografia do Conde de Saint-Germain, The
Comte Saint Germain (O Conde de Saint-Germain, 1912) no século XVIII este enigmático
personagem, que assombrou a Europa, disse a seus amigos Grafer e Barão de
Linden que, após sua missão na Europa, se retiraria para o “lar”, situado por
ele em algum lugar do Himalaia3. No século XIX, H. P. Blavatsky,
fundadora da Sociedade Teosófica, referiu-se várias vezes ao Tibete como a sede
do conhecimento oculto do mundo. Aliás, ela própria lá esteve em treinamento
com seus Mestres, por três anos, segundo seus biógrafos e seus próprios
depoimentos. Blavatsky fez questão de diferenciar esse Centro Oculto, ou Grande
Loja Branca, das práticas religiosas e culturais do Tibete. Ela escreveu: “Há,
além dos Himalaias, um núcleo de Adeptos de várias nacionalidades (...) Meu
Mestre e K.H.4 e vários outros que conheço pessoalmente estão lá,
indo e vindo, pois eles estão todos em comunicação com Adeptos do Egito e na
Síria, e mesmo na Europa”.
A
cidade mística do Budismo Tibetano, Shambhala, que inspirou a Shangri-La de
James Hilton, encontrou uma espécie de confirmação nos relatos de Ferdinand
Ossendowski, que em seu livro, já citado aqui, disse ter descoberto que na
Ásia existia a Ienda de uma cidade oculta de iluminados, chamada “Agharta”. Um
Lama de um Mosteiro na fronteira tibetana disse-lhe que sabia que essa cidade
era dirigida pelo “Rei do Mundo”, ou o “Grande Estrangeiro”, mas não
acrescentou muito mais ao assunto. Alguns pesquisadores colocam Shambhala como
a capital de Agharta, outros vice-versa. É interessante lembrar que a primeira
pessoa a se referir a essa cidade mística com o nome de “Agharta”, considerada
por alguns como existindo nos subterrâneos da terra, foi o ocultista francês
Saint Yves D’Alveydre, no final do século XIX, localizando-a também no Tibete.
Isto está relatado em seu livro Mission
de l'Inde en Europe (Missão da Índia na Europa, 1886), que causou furor
entre os esoteristas franceses da Belle Époque.
Os
Iniciados sabem que as lendas orientais de Shambhala e Agharta são a interpretação
confusa, popular e exotérica da Grande Fraternidade Branca sediada no Tibete.
H. Spencer Lewis escreveu muito sobre o assunto nas revistas da Ordem, durante
sua época. E apontou seu amigo e Frater, Nicholas Roerich, como uma das poucas
pessoas que tinham conhecimento direto do fato, com passagem livre para os
locais exatos, no Himalaia, da Grande Loja Branca. Referiu-se também a
Blavatsky como uma mensageira anterior da Loja do Himalaia, assim como outros
antes dela.
As
Escolas Iniciáticas como a Ordem Rosacruz, AMORC são canais para a Grande
Fraternidade Branca, portanto, conforme alertado muitas vezes pelos dirigentes
dos movimentos iniciáticos autênticos, não é necessário se deslocar ao Oriente
para localizar os Mestres Cósmicos, o que seria totalmente infrutífero, pois
são eles que vão até o discípulo quando este está pronto. Estando sob os
auspícios de uma Escola Mística autêntica, o estudante tem, portanto, uma
conexão direta com o Centro Oculto do Mundo. E quando chegar o momento...
Por
certo, é muito interessante e inspirador viajar para as longínquas terras do
Oriente, conhecer seus povos e costumes, mas isso não é requisito para
desenvolvimento espiritual, pois toda a instrução esotérica só serve para
fazer o aluno descobrir o seu “Himalaia de dentro”, a sua “Shangri-La interior”.
Blavatsky afirmou em um de seus escritos, com o qual terminamos este artigo: “Na
verdade, não há absolutamente necessidade de ir ao Tibete ou à Índia para
encontrar algum conhecimento e poder que estão em estado latente em cada alma
humana”
Notas:
1.
Marco Pólo, aliás, notabilizou-se pelas relações que manteve com o poderoso
Kublai Kan, ou o Grande Kan;
2.
Multas mosteiros citados em seus livros realmente existiram, assim como são verdadeiros
alguns detalhes da cidade de Lhasa e seus arredores, bem como aspectos da
cultura Tibetana;
3.
As informações levantadas por Cooper-Oakley devem-se à sua pesquisa nas maiores
bibliotecas do mundo, bem como à sua investigação no diário de uma amiga
pessoal de Maria Antonieta, Madame D’Adhémar, a qual conheceu Saint-Germain
pessoalmente.
4. Refere-se
aos Mestres Morya e Kut-Hu-Mi.
Bibliografia:
COOPER-OAKLEY, Isabel. O Conde de Saint Germain. São Paulo: Pensamento.
CRANSTON, Sylvia. Helena Blavatsky: a vida e a influência extraordinária da fundadora
do movimento teosófico moderno. Brasília: Teosófica, 1994.
D’ALVEYDRE, Saint-Yves. Missão da Índia na Europa - Missão
da Europa na Ásia: a questão do Mahatma e sua solução. São Paulo: Madras,
2006.
DAVID-NEEL, Alexandra. Tibete: magia e mistério. Portugal: Hemus, 2004.
EVANS-WENTZ, Walter Yeeling. O Livro Tibetano dos Mortos. Pensamento:
São Paulo, 1985.
HILTON, James. Horizonte Perdido. Claridade, 2002.
LAMA, Dalai. Liberdade no Exílio. São Paulo: Siciliano, 1992.
LEWIS, H. Spencer. A vida mística de Jesus. Curitiba: GLP, 2008.
OSSENDOWSKI, Ferdinand Antoni. Bestas, Homens e Deuses: o enigma do
rei do mundo. Portugal: Hemus, 2002.
RAMPA, T. Lobsang. A terceira visão. São Paulo: Record.
ROERICH, Nicholas. O segredo de Shambhala: em busca da nova era. Nova Era: São Paulo,
1996.
REFERÊNCIA:
SALLOUM JR., Jamil. Tibete:
em busca de Shangri-La. O Rosacruz. n. 275. verão 2011.
Curitiba: AMORC-GLP, 2011. p. 8-13.
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