Versão/ English version: Anthony Waugh
Desenhos originais aquarelados por/ Original drawings watercoloured by:
Márcia Süssekind
Material iconográfico gentilmente cedido pela/ Iconographic material
kindly ceded by: Attar Editorial, São Paulo
Mergulhar no universo de imagens e ideias alquímicas é antes de tudo
atrever-se a sonhar. As belas imagens colorizadas, do original de La Rochelle,
foram feitas exclusivamente com o intuito de convidar o leitor de Ventura a
realizar essa viagem onírica proposta pelo Mutus Liber.
“Reza, lê, lê, lê, relê, pratica, e descobrirás”.
A Alquimia, a prática secreta da manipulação
e transmutação dos metais ordinários em ouro e prata, tem existido desde a mais
remota Antiguidade. Somente no séc. XVIII, com o advento da química empírica,
que demonstrou a impossibilidade de se converter um metal em outro, tal prática
foi relegada à condição de mera superstição, atribuída a um misto de ganância e
ignorância dos antigos. Desde então, durante os últimos quase trezentos anos, a
maioria dos historiadores tem tentado explicar sua existência milenar
unicamente através dos critérios e métodos do Racionalismo e da ciência
moderna, desprezando seu contexto original, seu caráter eminentemente simbólico
e espiritual.
A primeira pista da verdadeira
natureza da busca alquímica reside no fato de que, muito antes de converterem-se
em medida de valor de mercadorias, o ouro e a prata já eram considerados metais
sagrados: representações terrenas do Sol e da Lua e, por conseguinte, de todas
as qualidades espirituais a estes atribuídas, segundo o simbolismo mítico-astrológico
vigente nas chamadas sociedades tradicionais. É o que pode ser constatado entre
egípcios, caldeus, hindus, gregos, árabes, incas (para quem o ouro é o sangue
vertido pelo Deus-Sol) e, a despeito das diferenças cosmológicas e doutrinais,
também no Ocidente medieval, onde o valor de ambos os metais variava de acordo
com a revolução solar e lunar, até mesmo a forma redonda das moedas reforçam o
parentesco com os astros. A relação entre os astros e os metais é, assim, o fundamento
primeiro do simbolismo alquímico, e vai muito além de uma coincidência estética
ou mera alegoria, pois ambos partilham da mesma essência sagrada, da mesma perfeição
qualitativa, enquanto que seu valor material tem somente importância secundária.
O adepto, ao reconhecer no ouro e no Sol essa mesma e única essência deve então
buscar realizá-la em si mesmo, confeccionando o ouro simbólico interior, a meta
da opus alquímica.
A dificuldade de compreensão da
tradição alquímica deve-se, nó entanto, não somente às deficiências e falta de
referências simbólicas, mas também à natureza do ensinamento que não pode ser
transmitido de modo dissociado da experiência individual e interior da busca,
a qual deve mobilizar e aguçar as funções superiores do iniciado, tais como a intuição,
a capacidade de sentir, enfim, de por-se em sintonia e correspondência com o
todo ao seu redor. Além disso, cada alquimista deve expressar o que encontrou
criando suas próprias imagens, metáforas, alegorias, de modo que o simbolismo
de sua obra escrita ou impressa acaba sendo, em boa medida, intensamente
pessoal. Precisamente por essa razão, o termo “hermetismo”, usado para designar
a alquimia [em homenagem a seu fundador Hermes Trimegisto, “o três vezes grande
Hermes”, o deus da Grécia Antiga, que os egípcios chamaram Thot, regente das
artes e ciências sagradas], passou também a ser sinônimo de obscuridade.
O Mutus
Liber, literalmente, o Livro Mudo, de Altus, é uma das obras mais
singulares entre os milhares de textos e manuscritos que se reconhecem como
pertencentes à tradição alquímica. Estudiosos, comentadores e adeptos não
cansam em destacar-lhe as virtudes filosóficas e estéticas, utilizando uma
variedade de adjetivos e expressões para descrevê-lo: misterioso, enigmático,
fascinante, impenetrável, “Bíblia dos alquimistas”, “pérola máxima da coleção alquímica”.
O livro foi publicado no ocaso da tradição hermética, em 1677, e por essa razão
gozou do privilégio de fazer uma síntese até então inédita do processo
alquímico, descrevendo em quinze pranhcas, aqui reproduzidas, os passos da “Grande
Obra” apenas por imagens, sendo possivelmente o único livro conhecido sobre a
sabedoria hermética sem o uso da narração. Praticamente esquecido durante quase
trezentos anos, assim como toda a literatura alquímica, foi redescoberto na
Modernidade para um público mais amplo por C. G. Jung, e desde então, vem
despertando o interesse não somente de estudiosos do pensamento tradicional como
René Guénon, Mecea [sic] Eliade e Titus Burckhardt, como de autores como Fernando
Pessoa e Jacques Derrida.
O que fez o autor do Livro Mudo foi radicalizar o formato
clássico e eliminar de vez a parte narrada das alegorias e argumentos
herméticos. Enfim, o autor do Mutus Liber,
fiel ao lema alquímico, parece ter concluído que, para revelar mais, seria
preciso justamente dizer menos. De nossa parte, o melhor de tudo seria nada
dizer – mostrar as imagens, apenas, poderia ser mais eficaz e profundo.
lmmersing oneself in the universe of
AIchemical ideas and images is, above all, daring to dream. The truly beautiful
coloured prints of the La Rochelle original are here presented exclusively to
invite the Ventura
reader to embark on this dreamy voyage, as proposed by the Mutus Liber.
“Pray, read, reed, read, and read
again, constantly practice, and you will make discoveries”.
Alchemy,
the secret practice of manipulation and transmutation of ordinary metals into
silver and gold, has existed in both the East and the West since the most remote
Antiquity. However, in the eighteenth century, with the advent of empirical
chemistry, it become obvious that it was simply not possible to convert one
metal into another, and alchemy was pronounced to be a mere superstition,
attributed to a confluence of greed and ignorance among the ancients.
Consequently, over the last three hundred years, most historians have tried to
explain the perpetuation of alchemy for thousands of years by using only the criteria
and methods dictated by Rationalism, completely discounting the science’s
original context and its eminently symbolic and spiritual character.
The
first clue to the true nature of the alchemical quest resides in the fact that,
long before they had been adopted as measures for the value of merchandise,
silver and gold were considered to be sacred metals: terrestrial
representations of the Sun and the Moon and, consequently, of all the spiritual
qualities which the mythical/astrological cults – powers in the traditional
ancient societies – attributed to those entities. This symbolism was common
among the Egyptians, Chaldeans, Hindu, Greeks, Arabs and Incas (for whom gold
was simply blood which had been transmuted by the Sun-God). Despite the
cosmological and ideological differences, this creed was also common in
medieval Europe, where the value of both metals varied in accordance with the
lunar and solar cycles; even the round shape adopted for coins reinforces the
metals’ relationship with the stars… Accordingly, this relationship between
precious metals and the firmament forms the primary fundament for alchemical
symbolism. Both aspects share the same sacred essence, the same qualitative
perfection, which goes far beyond an aesthetic coincidence or a mere allegory, so
that their material value assumes a decidedly secondary order of importance.
On recognizing this same and unique essence in both gold and the Sun, the
Adept must then strive to achieve the a similar essence within his soul. He
must fabricate his internal and symbolic gold, which is the objective of all
alchemical opus.
However,
our greatest difficulties in understanding the alchemical tradition springs not
only from the deficiencies and lack of symbolic references, but also from the
very nature of transmitting knowledge. Alchemical knowledge is impossible to
acquire without constant soul searching and individual experimentation: this
spiritual quest must mobilize and sharpen the higher functions of the initiate,
such as his intuition and emotional capacity; in short, it must place him in
permanent contact and synchronicity with his whole world… Additionally, each
alchemist must express everything he encounters, by creating his own particular
images, metaphors and allegories, so that the symbolism of his written or
printed work becomes – to a significant extent – intensely personal. It was
precisely because of this practice that the term “hermetic” [in a homage to the
founding father, Thrice Great Hermes, god of ancient Greece, and worshipped in
Pharaonic Egypt as Thoth, god of the arts and sacred sciences], widely used to
designate alchemy, became accepted as a synonym for obscurity.
The
Mutus Liber – literally, The Book of
Silence – is one of the most extraordinary works to be found among the
thousands of texts and manuscripts which are recognized as belonging to the
alchemic tradition. Researchers, commentators and adepts never tire of pointing
out the work’s philosophic and aesthetic virtues, using a variety of adjectives
and expressions to describe it: mysterious, enigmatic, fascinating,
impenetrable, “The Alchemist’s Bible”, “the greatest pearl in the whole
alchemic collection” is ascribed to an alchemist who was known as Altus. The 15
plates which are reproduced in this edition were published in 1677, in the
declining days of the hermetic tradition. Perhaps for this very reason, the Mutus Liber was granted the special privilege
of being permitted to present an – until then religiously hermetic – synthesis
of the alchemical process. ln what is possible the only known book on hermetic
tradition which discards the written word, Altus describes the steps required for
the “Great Work” in fifteen illustrative plates, containing the absolute
minimum of inscriptions. Practically forgotten for almost three hundred years –
along with the rest of alchemical literature – it was rediscovered, dusted off
and presented to a wider public, in the first half of the twentieth century, by
C. G. Jung. Subsequently, the Book has caught the interest of not only students
of traditional thought, such as René Guénon, Mecea [sic] Eliade and Titus
Burckhardt, but also of writers like Fernando Pessoa and Jacques Derrida.
The
author’s greatest feat was to radicalize the classical format and totally
eliminate the narrative, with its hermetic allegories and arguments.
Paradoxically,
it would seem that Altus – true to his chemic credo – decided that, in order to
reveal more, he would have to say less. From our point of view, it would have
been even better if he had said nothing at all: just presenting the images
could have transmitted a deeper and more efficient message.
REFERÊNCIAS:
RIZEK, Sérgio. Mutus Liber. In: p. Ventura. outono 2000. n. 32. Rio de Janeiro: Ventura Cultural Ltda, 2000. p. 186-198.
Noite escura, o jovem buscador sonha.
Os anjos o despertam para que dê início ao trabalho da Grande Obra.
ln the dark
of the night, the young seeker dreams. He is awoken by the angels so that he
may begin his labours on the Great Work.
The angels
deliver the Philosopher’s Egg, inside of which Neptune announces the birth of the
Sun and the Moon. Beneath the Moon, the couple of Alchemists pray before the just-lit vessel.
O Cosmos Filosófico e suas múltiplas
transformações. Júpiter rege sobre os três círculos concêntricos, onde os
princípios e as naturezas mais diversas interagem.
The
Philosophical Cosmos and its multiple transformations. Jupiter rules over the
three concentric circles, where the most diverse principles and natures interact.
O alquimista e sua soror mystica recolhem o orvalho, ou
flor do céu.
The Alchemist
and his soror mystica gather the dew,
or the flower from the sky.
Práticas de laboratório: o orvalho
coletado é conduzido ao fogo vivo, fazendo surgir enxofre e mercúrio, logo
entregues ao Vulcano Lunático, o fogo secreto.
Laboratory
procedures: the collected dew is fed to the live flame, producing sulphur and
mercury, which are immediately handed over to the Lunar Vulcan, the secret
fire.
Continuação das práticas anteriores:
o Sol Apolo recebe a precipitação da rosa de seis pétalas, símbolo da pedra
filosofal.
Continuation
of the previous procedures: Apollo, the Sun god, receives precipitation from
the six petal rose, symbol of the Philosopher’s Stone.
Passagem da via úmida à via seca:
Saturno emasculado, símbolo do nigredo,
entrega o vitríolo a Diana, símbolo da albedo.
Passage from
the wet way to the dry way: emasculated Saturn, symbol of the nigredo, hands over the vitriol to
Diana, symbol of the albedo.
O Mercúrio [sic] filosófico realizado
no interior do Ovo. Com o fogo do atanor desligado, o casal alquímico ora e
espera.
Philosophic Mercury
generated within the Egg. Once the vessel’s fire has been extinguished, the
couple wait and pray.
Outra etapa da purificação da matéria
prima: a operadora entrega, pela décima vez, o líquido sutil ao jovem Mercúrio.
Another stage
in purifying the raw materials: for the tenth time, the operator offers the subtle
liquid to young Mercury.
Operações finais da fase de
conjunção: Apolo e Diana se dão as mãos festejando a obra que completou, pela
primeira vez, seu ciclo de cores.
Final
operations in the conjunction phase: Apollo and Diana join hands in celebration
of the fact that, for the first time, the Work has completed its cycle of
colours.
Em cima, a realização do regime solar
da Obra. Embaixo, abrem-se todas as janelas do
laboratório.
Above,
completion of the Work’s solar regimen. Below, all
the laboratory’s windows are flung open.
Final
preparations: the interchange between the pair of Alchemists and the
god-prince, Mercury, intensifies.
Multiplication
Stage: the final phase of transmuting the metals into gold.
Realizada a Obra, o casal pede
segredo. No interior do atanor, o lapis philosophorum
(pedra filosofal) exibe, feliz, o lema do trabalho alquímico.
Once the Work
has been concluded, the couple swear secrecy. Inside the vessel, the happy lapis philosophorum (Philosopher’s
Stone) proclaims the Alchemists’ motto.
A transfiguração do Adepto: o
sonhador finalmente completou a viagem iniciática e ascende agora à união com o
Todo na condição de imortal. Oculatus
abis: Vais, Clarividente”.
Transfiguration
of the Adept: the dreamer finally completes his initiatory voyage and now,
immortal, ascends to his union with the All. Oculatus abis: “Go, Clairvoyant”.
“Ai de mim se revelo e ai de mim se não revelo!
Se digo que sei, os maus aprenderão a cultuar seu mestre;
Se não digo, os companheiros continuarão ignorantes da
verdadeira sabedoria”
Livro I prólogo 11b
“I’m cursed if I publish, and
damned if I don’t!
Should I reveal what I know,
the wicked will learn to revere their master;
Should my lips stay sealed, my
colleagues will remain ignorant of the true knowledge.”
Book I; prologue 11b
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