segunda-feira, 5 de março de 2018

MUTUS LIBER




Texto/ Text: Sérgio Rizek
Versão/ English version: Anthony Waugh
Desenhos originais aquarelados por/ Original drawings watercoloured by: Márcia Süssekind
Material iconográfico gentilmente cedido pela/ Iconographic material kindly ceded by: Attar Editorial, São Paulo

Mergulhar no universo de imagens e ideias alquímicas é an­tes de tudo atrever-se a sonhar. As belas ima­gens colorizadas, do original de La Rochel­le, foram feitas exclu­sivamente com o intui­to de convidar o leitor de Ventura a realizar essa viagem onírica proposta pelo Mutus Li­ber.

“Reza, lê, lê, lê, relê, pratica, e descobrirás”.
A Alquimia, a prática secreta da manipulação e transmutação dos metais ordinários em ouro e prata, tem existido desde a mais remota Antiguidade. Somente no séc. XVIII, com o advento da química empírica, que demonstrou a impossibilidade de se converter um metal em outro, tal prática foi relegada à condição de mera superstição, atribuída a um misto de ganância e ignorância dos antigos. Desde então, durante os últimos quase trezentos anos, a maioria dos historiadores tem tentado explicar sua existência milenar unicamente através dos critérios e métodos do Racionalismo e da ciência moderna, desprezando seu contexto original, seu caráter eminentemente simbólico e espiritual.
A primeira pista da verdadeira natureza da busca alquímica reside no fato de que, muito antes de con­verterem-se em medida de valor de mercadorias, o ouro e a prata já eram considerados metais sagrados: representações terrenas do Sol e da Lua e, por conseguinte, de to­das as qualidades espirituais a estes atribuídas, segundo o simbolismo mítico-astrológico vigente nas chamadas sociedades tradicionais. É o que pode ser constatado entre egípcios, caldeus, hindus, gregos, árabes, incas (para quem o ouro é o sangue vertido pelo Deus-Sol) e, a despeito das diferenças cosmoló­gicas e doutrinais, também no Oci­dente medieval, onde o valor de ambos os metais variava de acordo com a revolução solar e lunar, até mesmo a forma redonda das moedas reforçam o parentesco com os astros. A relação entre os astros e os metais é, assim, o fundamento primeiro do simbolismo alquímico, e vai muito além de uma coincidência estética ou mera alegoria, pois ambos partilham da mesma essência sagrada, da mesma perfeição qualitativa, enquanto que seu valor material tem somente importância secundária. O adepto, ao reconhecer no ouro e no Sol essa mesma e única essência deve então buscar realizá-la em si mesmo, confeccionando o ouro simbólico interior, a meta da opus alquímica.
A dificuldade de compreensão da tradição alquímica deve-se, nó en­tanto, não somente às deficiências e falta de referências simbólicas, mas também à natureza do ensina­mento que não pode ser transmiti­do de modo dissociado da experi­ência individual e interior da bus­ca, a qual deve mobilizar e aguçar as funções superiores do iniciado, tais como a intuição, a capacidade de sentir, enfim, de por-se em sintonia e correspondência com o todo ao seu redor. Além disso, cada alquimista deve expressar o que encontrou criando suas próprias imagens, metáforas, alegorias, de modo que o simbolismo de sua obra escrita ou impressa acaba sendo, em boa medida, intensamente pessoal. Precisamente por essa razão, o termo “hermetismo”, usado para designar a alquimia [em homenagem a seu fundador Hermes Trimegisto, “o três vezes grande Hermes”, o deus da Grécia Antiga, que os egípcios chamaram Thot, regen­te das artes e ciências sagradas], passou também a ser sinônimo de obscuridade.
O Mutus Liber, literalmente, o Li­vro Mudo, de Altus, é uma das obras mais singulares entre os mi­lhares de textos e manuscritos que se reconhecem como pertencentes à tradição alquímica. Estudiosos, comentadores e adeptos não cansam em destacar-lhe as virtudes filosóficas e estéticas, utilizando uma variedade de adjetivos e expressões para descrevê-lo: misterioso, enigmático, fascinante, impenetrável, “Bíblia dos alquimistas”, “pérola máxima da coleção alquímica”. O livro foi publicado no ocaso da tradição hermética, em 1677, e por essa razão gozou do privilégio de fazer uma síntese até então inédita do processo alquímico, descrevendo em quinze pranhcas, aqui reproduzidas, os passos da “Grande Obra” apenas por imagens, sendo possivelmente o único livro conhecido sobre a sabedoria hermética sem o uso da narração. Praticamente esquecido durante quase trezentos anos, assim como toda a literatura alquímica, foi redescoberto na Modernidade para um público mais amplo por C. G. Jung, e desde então, vem despertando o interesse não somente de estudiosos do pensamento tradicional como René Guénon, Mecea [sic] Eliade e Titus Burckhardt, como de autores como Fernan­do Pessoa e Jacques Derrida.

O que fez o autor do Livro Mudo foi radicalizar o formato clássico e eliminar de vez a parte narrada das alegorias e argumentos herméticos. Enfim, o autor do Mutus Liber, fiel ao lema alquímico, parece ter concluído que, para revelar mais, seria preciso justamente dizer menos. De nossa parte, o melhor de tudo seria nada dizer – mostrar as imagens, apenas, poderia ser mais eficaz e profundo.




lmmersing oneself in the universe of AIchemical ideas and images is, above all, daring to dream. The truly beautiful coloured prints of the La Roch­elle original are here presented exclusively to invite the Ventura reader to embark on this dreamy voyage, as proposed by the Mu­tus Liber.

“Pray, read, reed, read, and read again, constantly practice, and you will make discoveries”.
Alchemy, the secret practice of manipulation and transmutation of ordinary metals into silver and gold, has existed in both the East and the West since the most remote Antiquity. However, in the eighteenth century, with the advent of empirical chemistry, it become obvious that it was simply not possible to convert one metal into another, and alchemy was pronounced to be a mere superstition, attributed to a confluence of greed and ignorance among the ancients. Consequently, over the last three hundred years, most historians have tried to explain the perpetuation of alchemy for thousands of years by using only the criteria and methods dictated by Rationalism, completely discounting the science’s original context and its eminently symbolic and spiritual character.
The first clue to the true nature of the alchemical quest resides in the fact that, long before they had been adopted as measures for the value of merchandise, silver and gold were considered to be sacred metals: terrestrial representations of the Sun and the Moon and, consequently, of all the spiritual qualities which the mythical/astrological cults – powers in the traditional ancient societies – attributed to those entities. This symbolism was common among the Egyptians, Chaldeans, Hindu, Greeks, Arabs and Incas (for whom gold was simply blood which had been transmuted by the Sun-God). Despite the cosmological and ideological differences, this creed was also common in medieval Europe, where the value of both metals varied in accordance with the lunar and solar cycles; even the round shape adopted for coins reinforces the metals’ relationship with the stars… Accordingly, this relationship between precious metals and the firmament forms the primary fundament for alchemical symbolism. Both aspects share the same sacred essence, the same qualitative perfection, which goes far beyond an aesthetic coincidence or a mere allegory, so that their materi­al value assumes a decidedly sec­ondary order of importance. On recognizing this same and unique es­sence in both gold and the Sun, the Adept must then strive to achieve the a similar essence within his soul. He must fabricate his internal and symbolic gold, which is the objective of all alchemical opus.
However, our greatest difficulties in understanding the alchemical tradition springs not only from the deficiencies and lack of symbolic references, but also from the very nature of transmitting knowledge. Alchemical knowledge is impossible to acquire without constant soul searching and individual experimentation: this spiritual quest must mobilize and sharpen the higher functions of the initiate, such as his intuition and emotional capacity; in short, it must place him in permanent contact and synchronicity with his whole world… Additionally, each alchemist must express everything he encounters, by creating his own particular images, metaphors and allegories, so that the symbolism of his written or printed work becomes – to a significant extent – intensely personal. It was precisely because of this practice that the term “hermetic” [in a homage to the founding father, Thrice Great Hermes, god of ancient Greece, and worshipped in Pharaonic Egypt as Thoth, god of the arts and sacred sciences], widely used to designate alchemy, became accepted as a synonym for obscurity.
The Mutus Liber – literally, The Book of Silence – is one of the most extraordinary works to be found among the thousands of texts and manuscripts which are recognized as belonging to the alchemic tradition. Researchers, commentators and adepts never tire of pointing out the work’s philosophic and aesthetic virtues, using a variety of adjectives and expressions to describe it: mysterious, enigmatic, fascinating, impenetrable, “The Alchemist’s Bible”, “the greatest pearl in the whole alchemic collection” is ascribed to an alchemist who was known as Altus. The 15 plates which are reproduced in this edition were published in 1677, in the declining days of the hermetic tradition. Perhaps for this very reason, the Mutus Liber was granted the special privilege of being permitted to present an – until then religiously hermetic – synthesis of the alchemical process. ln what is possible the only known book on hermetic tradition which discards the written word, Altus describes the steps required for the “Great Work” in fifteen illustrative plates, containing the absolute minimum of inscriptions. Practically forgotten for almost three hundred years – along with the rest of alchemical literature – it was rediscovered, dusted off and presented to a wid­er public, in the first half of the twentieth century, by C. G. Jung. Subsequently, the Book has caught the interest of not only students of traditional thought, such as René Guénon, Mecea [sic] Eliade and Titus Burckhardt, but also of writers like Fernando Pessoa and Jacques Derrida.
The author’s greatest feat was to radicalize the classical format and totally eliminate the narrative, with its hermetic allegories and arguments.
Paradoxically, it would seem that Altus – true to his chemic credo – decided that, in order to reveal more, he would have to say less. From our point of view, it would have been even better if he had said nothing at all: just presenting the images could have transmitted a deeper and more efficient message.



REFERÊNCIAS:

RIZEK, Sérgio. Mutus Liber. In: p. Ventura. outono 2000. n. 32. Rio de Janeiro: Ventura Cultural Ltda, 2000.  p. 186-198.






Noite escura, o jovem buscador sonha. Os anjos o despertam para que dê início ao trabalho da Grande Obra.

ln the dark of the night, the young seeker dreams. He is awoken by the angels so that he may begin his labours on the Great Work. 



Os anjos trazem o ovo filosófico, dentro do qual Netuno anuncia o nascimento do Sol e da Lua. No plano sublunar, o casal alquímico ora diante do atanor recém ­ligado.

The angels deliver the Philosopher’s Egg, inside of which Neptune announces the birth of the Sun and the Moon. Beneath the Moon, the couple of Alchemists pray before the just-lit vessel.



O Cosmos Filosófico e suas múltiplas transformações. Júpiter rege sobre os três círculos concêntricos, onde os princípios e as naturezas mais diversas interagem.

The Philosophical Cosmos and its multiple transformations. Jupiter rules over the three concentric circles, where the most diverse principles and natures interact. 


O alquimista e sua soror mystica recolhem o orvalho, ou flor do céu.

The Alchemist and his soror mystica gather the dew, or the flower from the sky. 


Práticas de laboratório: o orvalho coletado é conduzido ao fogo vivo, fazendo surgir enxofre e mercúrio, logo entregues ao Vulcano Lunático, o fogo secreto.

Laboratory procedures: the collected dew is fed to the live flame, producing sulphur and mercury, which are immediately handed over to the Lunar Vulcan, the secret fire.


Continuação das práticas anteriores: o Sol Apolo recebe a precipitação da rosa de seis pétalas, símbolo da pedra filosofal.


Continuation of the previous procedures: Apollo, the Sun god, receives precipitation from the six petal rose, symbol of the Philosopher’s Stone.


Passagem da via úmida à via seca: Saturno emasculado, símbolo do nigredo, entrega o vitríolo a Diana, símbolo da albedo.


Passage from the wet way to the dry way: emasculated Saturn, symbol of the nigredo, hands over the vitriol to Diana, symbol of the albedo.

O Mercúrio [sic] filosófico realizado no interior do Ovo. Com o fogo do atanor desligado, o casal alquímico ora e espera.


Philosophic Mercury generated within the Egg. Once the vessel’s fire has been extinguished, the couple wait and pray.

Outra etapa da purificação da matéria prima: a operadora entrega, pela décima vez, o líquido sutil ao jovem Mercúrio.

Another stage in purifying the raw materials: for the tenth time, the operator offers the subtle liquid to young Mercury.


Operações finais da fase de conjunção: Apolo e Diana se dão as mãos festejando a obra que completou, pela primeira vez, seu ciclo de cores.

Final operations in the conjunction phase: Apollo and Diana join hands in celebration of the fact that, for the first time, the Work has completed its cycle of colours.


Em cima, a realização do regime solar da Obra. Embaixo, abrem-se todas as janelas do laboratório.

Above, completion of the Work’s solar regimen. Below, all the laboratory’s windows are flung open.


Preparativos finais: intensifica-se o intercâmbio entre o casal alquímico e o deus-princípio Mercúrio.

Final preparations: the interchange between the pair of Alchemists and the god-prince, Mercury, intensifies.


Estágio da Multiplicação, fase terminal da transmutação dos metais em ouro.


Multiplication Stage: the final phase of transmuting the metals into gold.


Realizada a Obra, o casal pede segredo. No interior do atanor, o lapis philosophorum (pedra filosofal) exibe, feliz, o lema do trabalho alquímico.

Once the Work has been concluded, the couple swear secrecy. Inside the vessel, the happy lapis philosophorum (Philosopher’s Stone) proclaims the Alchemists’ motto. 


A transfiguração do Adepto: o sonhador finalmente completou a viagem iniciática e ascende agora à união com o Todo na condição de imortal. Oculatus abis: Vais, Clarividente”.

Transfiguration of the Adept: the dreamer finally completes his initiatory voyage and now, immortal, ascends to his union with the All. Oculatus abis: “Go, Clairvoyant”.



“Ai de mim se revelo e ai de mim se não revelo!
Se digo que sei, os maus aprenderão a cultuar seu mestre;
Se não digo, os companheiros continuarão ignorantes da verdadeira sabedoria”
Livro I prólogo 11b

“I’m cursed if I publish, and damned if I don’t!
Should I reveal what I know, the wicked will learn to revere their master;
Should my lips stay sealed, my colleagues will remain ignorant of the true knowledge.”
Book I; prologue 11b

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