Imagem tibetana de
Nagarjuna, produzida entre 1700-1799, de origem da linhagem Gelug. 71,12 x
45,72 cm. Pigmento mineral moído sobre algodão. Da coleção do Rubin Museum of
Art, Nova York, NY.
ANÁLISE DO CAPÍTULO I DO MŪLAMADHYAMAKA-KĀRIKĀ
(VERSOS
FUNDAMENTAIS DO CAMINHO DO MEIO)
Por João Florindo Batista Segundo
O
Mūlamadhyamaka-kārikā (Versos Fundamentais do Caminho do Meio)
é de autoria de Acharya Nagarjuna (c. 150 - 250 d.C.), um dos mais importantes
filósofos budistas depois do Buda histórico (Siddhartha Gautama, c. 563 a.C. -
483 a.C.).
O
Mūlamadhyamaka-kārikā é composto por
27 capítulos escritos sob a forma de versos em parelha, onde o pensador estuda
todo o fundamento filosófico e doutrinal do budismo. Tamanha a relevância desta
obra que a escola cuja fundação a ele é reputada (com o apoio do discípulo
Aryadeva) denomina-se Madhyamaka
(componente do Budismo Mahayana)
tomou seu nome do título. Pertinente recordar que Aryadeva dedicou a sua vida à
divulgação do pensamento de seu mestre, no que obteve considerável sucesso. O
texto é por vezes enigmático, por conta da supressão do argumento explícito, o
que gera desafios à sua interpretação.
O
tema central desta obra é o vazio e o Capítulo I argumenta contra a existência
de causas e sobre a existência de uma variedade de condições. Em Nagarjuna,
fica patente a crítica bem fundamentada à coerência de algumas das mais
estimadas convicções indianas, reputadas como tais tanto por budistas quanto por
não-budistas. Assim como Buda, Nagarjuna também empregou o princípio do
terceiro excluído (tetralema) e outras ferramentas lógicas e retóricas para
expor e negar toda forma de pensamento extremista. E apesar de exaltar a
doutrina de surgimento condicional (pratitya-samutpada,
causas e condições em perpétua mudança) do Buda histórico, ele refuta as
suposições subjacentes à doutrina de causalidade, o que vai de encontro às
afirmações dos defensores de Buda: para Nagarjuna, uma vez que pratitya-samutpada não envolve nem uma
identidade nem uma diferença, por consequência não é nem uma coisa e nem uma
relação.
Assim,
para os budistas da Terra Pura, Nagarjuna foi um patriarca; para alguns
seguidores da Mahayana, ele foi seu
precursor, ao atacar a Hinayana; para
os budistas tibetanos, as críticas de Nagarjuna enfocavam o budismo de
Abhidharma; os tântricos descrevem-no como um especialista em tantra etc. Sem
conseguir refutá-lo, a escola lógica hindu, Nyaya,
taxou-o de nastika (niilista).
Entremente, Nagarjuna direciona suas críticas principalmente às categorias
conceituais das metafísicas das escolas com as quais dialogou e polemizou.
Voltando-nos
para o Mūlamadhyamaka-kārikā, no Capítulo
I, intitulado Considerações das condições
(Pratyayapariksa), o filósofo
argumenta em desfavor da existência última da causalidade e contra os quatro
tipos de condicionamentos que as escolas budistas tradicionalmente aceitam, a
saber, causa, objeto, precedente e predominante. A bem da verdade, ele inicia a
segunda estrofe afirmando que não há uma quinta causa; e depois, refuta as
demais.
Estes
condicionantes são também conhecidos como agregados (skandha, em sânscrito; khandha,
em páli) reputados como constituintes do ser senciente. Enquanto o Buda
histórico defende que nenhum agregado pode ser considerado como “eu” ou “meu”,
o budista aqui estudado vai mais além e afirma que os agregados sequer existem.
Neste
sentido, pode-se observar também que na Escola Theravada é o apego aos agregados, a causa do sofrimento humano; e
ao desapego reputa-se a libertação, enquanto na Mahayana é a profunda observação dos agregados que permite a
libertação.
Em
I.1, Nagarjuna afirma que não existe nexo de causalidade, quando o nexo de
causalidade é pensado como envolvendo atividade causal, embora haja condições
– de quatro tipos distintos – que podem
ser objeto de explicação e previsão de fenômenos. E quando emprega o vernáculo
“causa” se refere a um evento ou estado que tem em si poder, que é parte de sua
essência e que serve para produzir o seu efeito, ao passo que por “condição”
entenda-se um evento, estado ou processo que pode ser objeto de explicação de
outro evento, estado ou processo.
Ao
passo que antes a prática espiritual chegava ao seu clímax no nirvana (cessação), ou seja, pela
ausência de fenômenos, agora com Nagarjuna, a iluminação se dá pela percepção
da não-dualidade e da vacuidade consequente e pelo retorno ao mundo dos
fenômenos no qual o praticante sempre esteve.
Assim,
a não-dualidade e a dualidade são não-duais, de modo que a iluminação é a
percepção de que não há uma realidade transcendental para onde a mente do
indivíduo possa se transferir do mundo dos fenômenos, pois, não há outro lugar
além de aqui mesmo. A suprema visão consiste então em perceber o aqui e agora e
sua vacuidade enquanto campo onde nossas experiências individuais se
desenvolvem. Isto fica claro na afirmação da ausência de relação entre
atividade e condições, que denota a ausência de interdependência porque nada há
de dependente e/ou de mantenedor.
Num
primeiro momento, pode-se pensar que lidamos aqui com uma metafísica da
vacuidade, o que suscita a busca de uma explicação, a qual, infelizmente, na
forma de uma verdade suprema é ausente em todo o corpo do livro sob análise.
Todavia,
não se deve entender o vazio (sunyata)
em Nagarjuna como vazio cósmico, não-existência, ou niilismo, mas, sim, como a
ausência de essência própria (svabhava),
autodefinida, capaz de criar a si mesma. No hinduísmo em geral, às coisas que
possuem essência própria é atribuída a capacidade de serem eternas também: para
eles, as coisas mais importantes com essência própria são Deus e a alma (Si
Mesmo). De acordo com o budismo, a convicção em um “eu” permanente e
independente e o medo da morte e da possibilidade da não-existência é que
conduz a humanidade à busca de uma tábua de salvação que não existe. A noção de “eu” é sintomática de nossos
anseios mais interiores e sua superação nos conduz a yatha-bhutam: à visão de como as coisas realmente são.
Buda
difundia o “caminho do meio” entre os extremos do eternalismo (continuidade) e
do aniquilacionismo (descontinuidade, niilismo) e Nagarjuna captou tal ideia
como a necessidade de eliminar as teorizações hipotéticas e a elevou ao ponto
de refutar como irreais em última instância todas as entidades conceituais
elaboradas pelo homem para explicar racionalmente o mundo. Ora, se tomada como
real a diferença entre uma coisa (digamos, X) e outra coisa (Y), tem-se a
impossibilidade de identidades e a falta de inteligibilidade das coisas.
Já
no verso I.4, Nagarjuna demonstra que a exploração de um evento ou entidade
como uma condição de explicação não lhe atribui qualquer poder causal. E
respondendo ao fato de que alguns eventos têm dependência e não outros, afirma
em I.5 que são as regularidades que contam.
Quanto
à distinção entre “existente” e “inexistente”, entenda-se a oposição entre a
existência e não-existência inerente e a existência ou inexistência
convencional. Tenha-se em mente que para uma coisa existir é inerente que ela
possua uma essência e para que uma coisa possa existir independentemente de
outras entidades ela é independente de convenção. E para uma coisa ser
inerentemente inexistente ela não existe em nenhum sentido – nem mesmo
convencionalmente, ou dependente de outra coisa.
O
filósofo defende o surgimento dependente enquanto rejeita a causalidade. Ele
observa em I.6 que se as entidades são concebidas como inerentemente
existentes, elas existem de forma independente e, portanto, não precisam de
condições para a sua produção. Com efeito, elas não podem ser produzidas, se
elas existirem desta forma. Por outro lado, se as coisas existem segue-se
trivialmente que elas são desprovidas de condições. Este verso e os vários que
seguem (I.6-10) relacionam cada um dos quatro tipos de condições.
Em
I.10, Nagarjuna responde à inferência da realidade causal e sua incorporação em
entidades reais, cujas essências incluem esses poderes. Ele alega que é por não
existir tal realidade que a fórmula budista da verdade do surgimento dependente
pode ser afirmada. Não poderia ser afirmado se de fato há entidades reais. Se a
fórmula fosse interpretada neste contexto como apontando para qualquer poder
causal, seria falsa.
No
Mūlamadhyamaka-kārikā se explora a
incoerência presente nas noções de identidade e diferença para relacionar
quaisquer definições (de coisas) ou relações (entre coisas) com ao menos uma
das três consequências insatisfatórias da presumida realidade, a saber,
tautologia, contradição mutuamente exclusiva e/ou regressão infinita. Ele
demonstra que as coisas nem podem ser adequadamente explicadas enquanto
unidades autônomas em isolamento (X=X, tautologia) nem quando relacionadas com
outras coisas (X=Y, X implica Y, X causa Y, X define -X), pois se X está
relacionado a Y, então eles são o mesmo e
são diferentes ao mesmo tempo, o que é ilógico, e tentar combiná-los produz incoerências adicionais
insustentáveis. Claro então que as opções “X”, “não-X”, “tanto X e não-X” e
“nem X nem não-X” são permeadas pela insatisfatoriedade e insustentabilidade e
as operações dialéticas com elas realizadas esvaziam toda possibilidade de
formulação linguística imperfeita: todas podem ser demonstradas como sendo
inválidas e inadequadas.
Em
Nagarjuna, a linguagem é tautológica, porém não se deve descurar que duas
condições diferentes estão sendo empregadas para descrever um evento que só
ocorre em razão da separação entre suas causas, separação que leva a uma ilusão
linguística de independência. Deste modo, pode-se dizer que a linguagem não se
refere às coisas, mas é autorreferente (os conteúdos são um ente por convenção,
convencional), pois todos os conceitos e categorias possíveis advêm da relação
de dependência recíproca com suas contrapartes conceituais, que são
inconsistentes e insustentáveis.
Assim,
os procedimentos lógico-argumentativos de nosso autor não resultam ou sugerem
uma metafísica alternativa e contrária àquelas empregadas pelas categorias por
ele criticadas. Pois, se não há nenhum predicado que possa se referir ao ser
enquanto ser, tem-se a subtração de ferramentas a qualquer metafísica que se
possa formular e o descarte de todas as existentes. Como os céticos do
Ocidente, Nagarjuna evita sistematicamente a defesa de doutrinas metafísicas
positivas, por incoerentes que são em razão de nossas convenções carecerem de
relação entre nossa estrutura conceitual e a realidade independente.
Em
I.14, Nagarjuna responde concisa e enigmaticamente aos questionamentos dos
realistas apresentados anteriormente (I.11-13). Por este verso, depreende-se
que enquanto os críticos à Madhyamaka
desaprovam-na por falhar em alcançar um nexo de causalidade suficientemente
robusto para conectar fenômenos essencialmente reais, para o filósofo Madhyamaka, a principal razão para a
ausência de tal nexo de causalidade é a própria ausência de tais fenômenos.
Alegar que o nexo de causalidade é não-vazio ou inerentemente existente é
sucumbir à tentação de fundamentar nossa prática explicativa e discursiva em
verdadeiros poderes causais que ligam causas aos efeitos. E responder aos
argumentos contra a existência do nexo de causalidade inerente ao sugerir que
não há qualquer possibilidade de recorrer a condições de explicação dos
fenômenos – que não há origem dependente em tudo – é o extremo do niilismo,
também claramente rejeitado por Nagarjuna.
À
guisa de conclusão, afirmamos que Nagarjuna busca recuperar a essência do
ensinamento de Buda e propor uma transformação em que a lógica e a
racionalidade recuperem seu sentido de ferramentas úteis às finalidades da
existência humana. Para nosso pensador, um dos mais importantes meios de
demonstrar o vazio dos fenômenos é argumentar que eles têm origem dependente. E
assim, a alegação de que o surgimento dependente em si é vazio passa a ser a
afirmação de que a vacuidade dos fenômenos em si é vazia.
REFERÊNCIAS:
FERRARO,
Giuseppe. Finalidade antimetafísica da
filosofia de Nagarjuna. Disponível em:
<http://periodicos.ufpb.br/ojs/index.php/co/article/view/23543>. Acesso
em 20 set. 2015.
GARFIELD, Jay L. Dependent
Arising and the Emptiness of Emptiness: Why did Nagarjuana start with
causation? Disponível
em:
<http://www.thezensite.com/ZenEssays/Nagarjuna/Dependent_Arising.htm>.
Acesso em: 18 set. 2015.
LUSTHAUS,
Dan. Nagarjuna. Disponível em: <
http://www.nossacasa.net/shunya/default.asp?menu=943>. Acesso em: 18 set.
2015.
NAGARJUNA.
Versos sobre los fundamentos del camino
medio. Barcelona: Kairós, 2003.
NAVARRO,
Juan Arnau. La palabra frente al vacio:
Filosofia de Nagarjuna. México: FCE, COLMEX, 2005.
SIDERITS,
Mark; KATSURA, Shōryū. Nāgārjuna’s
Middle way: the Mūlamadhyamakakārikā. Somerville: Wisdom Publications, 2013.
MŪLAMADHYAMAKA-KĀRIKĀ
(Fundamental Verses on the Middle Way)
PRATYAYAPARIKSA
(An Analysis of Conditions)
I.1. Not from itself,
not from another, not from both, nor without cause: Never in any way is there
any existing thing that has arisen.
na svato nāpi parato na dvābhyāṃ nāpy ahetutaḥ |
utpannā
jātu vidyante bhāvāḥ kva cana ke cana
I.2. The intrinsic
nature of existents does not exist in the conditions, etc.
The intrinsic nature not occurring, neither is extrinsic nature found.
na hi
svabhāvo bhāvānāṃ pratyayādiṣu vidyate |
avidyamāne
svabhāve parabhāvo na vidyate
I.3. [The opponent:]
There are four conditions: the primary cause, the objective support, the
proximate condition, and of course the dominant condition; there is no fifth
condition.
catvāraḥ
pratyayā hetur ārambaṇam anantaram |
tathaivādhipateyaṃ
ca pratyayo nāsti pañcamaḥ
I.4. An action does not
possess conditions; nor is it devoid of conditions. Conditions are not
devoid of an action; neither are they provided with an action.
kriyā
na pratyayavatī nāpratyayavatī kriyā |
pratyayā
nākriyāvantaḥ kriyāvantaś ca santy uta
I.5. They are said to be
conditions when something arises dependent on them. When something has
not arisen, why then are they not nonconditions?
utpadyate
pratītyemān itīme pratyayāḥ kila |
yāvan
notpadyata ime tāvan nāpratyayāḥ katham
I.6. Something cannot be
called a condition whether the object [that is the supposed effect] is not yet
existent or already existent.
If nonexistent, what is it the condition of?
And if existent, what is the point of the condition?
naivāsato
naiva sataḥ pratyayo ’rthasya yujyate |
asataḥ
pratyayaḥ kasya sataś ca pratyayena kim
I.7. Since a dharma does
not operate whether existent, nonexistent, or both existent and nonexistent,
how in that case can something be called an operative cause?
na san
nāsan na sadasan dharmo nirvartate yadā |
kathaṃ
nirvartako hetur evaṃ sati hi yujyate
I.8. A dharma, being
existent, is said to indeed be without objective support. Then why again posit
an objective support in the case of a dharma without an objective support?
anārambaṇa
evāyaṃ san dharma upadiśyate |
athānārambaṇe
dharme kuta ārambaṇaṃ punaḥ
I.9. Destruction does
not hold when dharmas have not yet originated.
Thus nothing can be called a proximate condition; if it is destroyed,
how can it be a condition?
anutpanneṣu
dharmeṣu nirodho nopapadyate |
nānantaram
ato yuktaṃ niruddhe pratyayaś ca kaḥ
I.10. Since things devoid
of intrinsic nature are not existent, “This existing, that comes to be” can
never hold.
bhāvānāṃ
niḥsvabhāvānāṃ na sattā vidyate yataḥ |
satīdam
asmin bhavatīty etan naivopapadyate
I.11. That product does
not exist in the conditions whether they are taken separately or together.
What does not exist in the conditions, how can that come from the
conditions?
na ca
vyastasamasteṣu pratyayeṣv asti tat phalam |
pratyayebhyaḥ
kathaṃ tac ca bhaven na pratyayeṣu yat
I.12. If that which does
not exist [in them] is produced from those conditions, how is it that the
product does not also come forth from nonconditions?
athāsad
api tat tebhyaḥ pratyayebhyaḥ pravartate |
apratyayebhyo
’pi kasmān nābhipravartate phalam
I.13. The product
consists of the conditions, but the conditions do not consist of themselves.
How can that which is the product of things
that do not consist of themselves consist of conditions?
phalaṃ
ca pratyayamayaṃ pratyayāś cāsvayaṃmayāḥ |
phalam
asvamayebhyo yat tat pratyayamayaṃ katham
I.14. Therefore neither a
product consisting of conditions nor one consisting of nonconditions exists; if
the product does not exist, how can there be a condition or noncondition?
tasmān
na pratyayamayaṃ nāpratyayamayaṃ phalam |
saṃvidyate
phalābhāvāt pratyayāpratyayāḥ kutaḥ
REFERÊNCIA:
SIDERITS, Mark; KATSURA, Shōryū. Nāgārjuna’s Middle way: the Mūlamadhyamakakārikā. Somerville: Wisdom
Publications, 2013. p. 18-29.
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