quarta-feira, 25 de outubro de 2017

AS MÚLTIPLAS FACES DO ISLÃ



 

Por Carmen Lícia Palazzo1

 

Introdução

 

Os primórdios do Islã são conhecidos através de relatos referindo-se à vida de Maomé, geralmente descrito como um mercador árabe nascido em Meca, provavelmente no ano de 570, na tribo dos Quaraish. A partir do ano de 610 ele teria recebido revelações vindas diretamente de Deus (Allah, em árabe) e anunciadas pelo anjo Gabriel, passando a ser visto então como um novo profeta em uma região na qual conviviam pessoas de diversas religiões, muitas delas pertencentes aos dois mais conhecidos grupos monoteístas: judeus e cristãos. No entanto, a maioria das informações que constam dos relatos sobre Maomé só foram registradas por escrito bem mais adiante, após sua morte, que ocorreu em 6322. Uma das fontes mais utilizadas pelos historiadores para as pesquisas sobre o Profeta e sobre o novo monoteísmo que começava a se desenvolver na Península Arábica é a obra de Muhammad bin Jarir al-Tabari, que data do início do século X e registra inúmeros acontecimentos, na maioria dos casos fazendo referência a uma cadeia de transmissão oral3. Al-Tabari fornece, muitas vezes, mais de uma versão para os mesmos fatos, dependendo da variedade de testemunhas que se manifestaram sobre eles até o momento em que foram colocados por escrito.

Além de cronistas como al-Tabari, outros textos essenciais para entender os primeiros anos do Islã são o próprio Corão e os Hadith, um conjunto de falas e ações atribuídas a Maomé. Trata-se, pois, de um corpus documental que demanda muito cuidado em sua utilização na medida em que seus registros são todos muito posteriores aos acontecimentos e têm como objetivo principal a consolidação de uma fé. O que importa, porém, para a pesquisa histórica, é entender tal conjunto de documentos como fundadores de uma nova religiosidade sem tecer considerações sobre a veracidade das revelações a Maomé ou sobre a efetiva autoria dos Hadith.

Juan Vernet, acadêmico espanhol, escreveu sobre as origens do Islã, cruzando os relatos de al-Tabari com os diversos capítulos (suras ou suratas) do Corão e com os Hadith. Vernet, referindo-se aos problemas encontrados para escrever uma biografia de Maomé destaca que a dificuldade que:

 

[...] reside no fato de os textos, as fontes em que temos de nos basear, serem tardios, posteriores um ou dois séculos à sua morte [de Maomé], e sempre laudatórios – os muçulmanos, ou depreciativos os cristãos.4

 

A partir da fratura ocorrida após o califado de Ali (656-661) e a morte de seu filho Husayn (680) já existem documentos contemporâneos aos fatos, mas ainda assim é comum que os registros apresentem diferenças de acordo com sua origem, seja ela sunita ou xiita. No presente artigo, as fontes de pesquisa se constituem na historiografia sobre o tema com a escolha, prioritariamente, de autores muçulmanos de correntes e nacionalidades distintas, mas também fazendo uso da bibliografia de origem não-muçulmana, de especialistas no tema. Nosso objetivo não é o de levantar um debate teológico, mas sim o de apresentar uma síntese histórica de uma religião que, embora afirmando-se muitas vezes una, enquanto fundamentada nas revelações corânicas e nas palavras de Maomé, na verdade se fracionou em muitas correntes e interpretações que, ao longo dos séculos, travaram duras disputas entre si.

 

A primeira e maior fratura: sunitas e xiitas

 

A história das múltiplas faces do Islã é a de diversas rupturas, tanto por motivos políticos quanto em relação a interpretações diferenciadas do Corão e dos Hadith. Inicialmente, enquanto Maomé era ele próprio o líder da nova religião liderança esta que exercia tanto em questões de quanto político-militares e de expansão territorial a unidade dos muçulmanos se mantinha sólida e sem questionamentos. As disputas que ocorriam eram entre os seus seguidores e aqueles que não o aceitavam como profeta e arauto das revelações divinas. Basicamente, eram desavenças entre as tribos, envolvendo comerciantes e também as autoridades de Meca, muitos se sentindo ameaçados em suas atividades por uma pregação sobre a verdade revelada de um Deus único.

Centro caravaneiro e ponto de encontro de mercadores das mais diversas regiões do Oriente, Meca prosperava na medida em que acolhia o comércio sem que houvesse restrições às crenças individuais. O temor era de que a nova religião, que se mostrava de caráter exclusivo, pudesse criar problemas para os mercadores que cultuavam os mais variados deuses e que circulavam livremente pela cidade, frequentando sem restrições o que era então o santuário pagão da Caaba5.

O abandono de Meca por Yathrib, que ficou então conhecida como Madinat al-nabi, a cidade do Profeta (atual Medina), ocorreu em 622, ano que marca o início do calendário muçulmano. Trata-se de uma data fundadora do Islã, a da Hégira (Hijrah, migração ou fuga) e passa a diferenciar o grupo dos demais à sua volta, enfatizando a ideia de comunidade (umma) reunida em torno de seu Profeta. Politicamente, tal realização totalmente ancorada nas visões de Maomé conduziu a um reforço de sua liderança. Graças a este tipo de centralização ele mesmo acumulava as funções de controle, ditando as regras para todos os aspectos da vida dos muçulmanos e assim conduzia também a expansão territorial em nome da fé.

A sucessão de Maomé, após a sua morte no ano de 632, teve início com Abu Bakr. Bakr era pai de Aisha, uma de suas mulheres, e também seu seguidor de primeira hora. A escolha foi feita de acordo com a prática tribal da região: o conselho de idosos o indicou porque era considerado um “velho sábio”, detentor dos conhecimentos que lhe haviam sido transmitidos no convívio estreito com o Profeta. Ali, primo e genro de Maomé, casado com sua filha Fátima, postulava também a sucessão, mas aceitou Abu Bakr e os dois califas seguintes, Umar e Uthman, vindo a ser ele próprio o quarto califa, escolhido no ano de 656, após a morte de Uthman.

versões distintas sobre a escolha dos quatro primeiros líderes, que afinal ficaram conhecidos como os “califas bem guiados”, que pertenciam ao próprio círculo bem próximo de Maomé. No entanto, apesar das prováveis desavenças mencionadas por alguns autores, a verdadeira ruptura vai se dar após a morte de Ali.

De um modo geral, o processo sucessório não ocorreu sem discussões e, desde cedo, Ali e seus seguidores defenderam a posição de que os califas deveriam pertencer à família de Maomé e não se constituiriam apenas em líderes políticos da comunidade, mas seriam também divinamente inspirados para guiar os fiéis enquanto intermediários entre eles e Deus. No entanto, para o outro grupo que não defendia a sucessão pelo sangue, mas pelas normas da tradição das lideranças tribais, o califado era de ordem política e caberia a seu líder garantir a prática da religião sem exercer, porém, o papel de intermediário com o divino.

Para Vali Nasr, acadêmico iraniano que tem escrito sobre a história do Islã abordando seus diversos aspectos:

 

Os sunitas, cujo nome familiar é uma abreviação de “ahl al-sunnah wa’l-jama ah” (povo da tradição e do consenso), acreditam que o sucessor do Profeta o sucedia apenas na sua função de líder da comunidade islâmica e não por sua relação especial com Deus ou pelo chamado profético e [ acreditam] que o consenso da comunidade muçulmana que escolheu Abu Bakr e os sucessivos califas corretamente guiados refletia a verdade da mensagem islâmica.6

 

Parece-nos de grande importância destacar que o posicionamento do chamado “povo da tradição”, ou sunitas, se coadunava perfeitamente com as práticas das tribos da região, que davam ênfase à chefia política da comunidade e por isto mesmo tal posicionamento contava com o apoio da maioria das lideranças políticas. No entanto, após a morte de Ali, genro e primo do Profeta, ocorrida no início de 661, a disputa sucessória tornou-se mais acirrada. Os seus partidários, que ficaram conhecidos como xiit’Ali, partidários de Ali, ou xiitas, e que defendiam o direito à sucessão só para os descendentes de Maomé, apontaram primeiramente Hasan filho mais velho de Ali, para assumir o califado. Este, no entanto, cedeu às pressões em favor de Muawiya ibn Abi Sufyan, da família Omíada, que se tornou califa dentro das regras sunitas, sendo depois sucedido por seu filho Yazid. Inconformados, os xiitas bem organizados insistiram no apoio a outro filho de Ali, Husayn, como o quinto califa7. Tal não era, porém, a opinião do grupo dominante, o dos sunitas, e após inúmeras desavenças e confrontos, na batalha de Karbala, no dia 10 do primeiro mês do calendário muçulmano, no ano de 680, Husayn foi morto junto com 72 companheiros e membros da família. Tal evento marcou a ruptura completa entre as duas principais facções do Islã, sunitas e xiitas.

A morte de Husayn fez dele um mártir lutando por uma causa que era considerada justa por seus seguidores: a preservação da linhagem do Profeta no comando dos fiéis. O martírio, então, passou a ser emblemático para o xiismo. No conhecido Festival de Ashura, realizado anualmente em todas as comunidades xiitas na mesma data em que Husayn foi morto, o seu sofrimento é evocado com grandes manifestações, muitas vezes com a prática da autoflagelação pelos participantes, exacerbando uma piedade na qual a rememoração da tragédia ocupa um papel central.

Sérias perseguições aos xiitas, com diversos assassinatos, foram frequentes durante todo o processo de consolidação do califado. Como bem analisa Vali Nasr:

 

Os sofrimentos dos imãs está no coração da doutrina xiita do martírio (“shahadat”). Assim como os primeiros santos cristãos aceitaram “a coroa do martírio”, firmes em sua e acreditando que seu sangue seria a semente da igreja, também os xiitas reverenciam o martírio. Os imãs morreram como testemunhas da fé, como muitos de seus seguidores. Husayn é popularmente conhecido como o Senhor dos Mártires (“Sayyid al-Shuhada”). Os xiitas acreditam que o martírio é a mais alta prova de fé.8

 

Se, por um lado, a luta pelo poder estava na origem desta grande fratura interna do Islã, por outro lado as divergências de doutrina também se tornaram importantes, acentuando-se com o passar do tempo. A partir da divisão entre sunitas e xiitas, algumas diferenças no papel das lideranças também foram se consolidando. O expansionismo dos califas, primeiro Omíadas (644-750), depois Abássidas (750-1258), os colocava como governantes detentores de um poder político-militar muito semelhante ao de outros impérios o que se evidenciou na conquista da Pérsia e de grande parte das áreas que pertenciam a Bizâncio. É possível afirmar, portanto, que a centralização do poder na corte califal foi de grande importância para que o Islã alcançasse uma área bem mais ampla do que a Península Arábica.

O sunismo se estabeleceu, desde os seus primórdios, associado a um estado centralizado e burocraticamente organizado em torno de uma corte absolutista com uma clara autoridade político-militar que era exercida pelos califas. Com relação ao papel da religião na estrutura do califado, o libanês Fuad I. Khuri, especialista nas divisões do Islã e em mudanças culturais, escreve que: “[...] a soberania do estado é uma condição necessária para garantir a supremacia da lei divina e, para tanto, confirmando a religião (Islã) como uma formulação de política pública”9. Ao governante, então, não caberia a atividade de criar leis mas sim a de cuidar para que elas fossem aplicadas e, no caso do Islã, sempre de acordo com a lei divina, a shari’a.

Com o califado nas mãos dos sunitas, os xiitas viram-se cada vez mais alijados do poder centralizado da corte, reforçando seu relacionamento com o Imã, que era por eles considerado o líder religioso supremo da comunidade. Este corte que ênfase aos imãs como líderes religiosos altamente respeitados e responsáveis pela transmissão de ensinamentos é uma característica do xiismo, que para o sunismo é possível manter uma relação com Deus através da leitura do Corão, e os clérigos apenas orientam as preces. Evidenciam-se, assim, divergências significativas que com o tempo vão se aprofundando, entre os dois grupos de muçulmanos.

A escolha de imãs com a responsabilidade de se constituírem em intérpretes da palavra divina será marcante na história do xiismo e no desenvolvimento, dentro dele, de muitas ramificações. John Esposito, especialista em estudos islâmicos, resume bem a diferença básica entre ambas as correntes:

 

A diferença fundamental entre muçulmanos sunitas e xiitas é a doutrina xiita do imanato como distinta do califado sunita. (...) o califa era o sucessor, escolhido ou eleito, do Profeta. Ele o sucedia como liderança política e militar mas não na autoridade religiosa de Maomé. Ao contrário, para os xiitas, a liderança da comunidade muçulmana é investida no Imã (líder) o qual, ainda que não seja um profeta, é o divinamente inspirado, livre de pecado, infalível e líder político-religioso da comunidade.10

 

Em nosso entender, porém, é fundamental para a análise histórica apontar que esta diferença não se constituiu em opção inicial de doutrina, mas foi construída no tempo, à medida que um grupo sem vinculação com a descendência do Profeta chegou ao poder e instituiu um califado centralizado que não abria opções para interpretações distintas do processo sucessório que pudessem ameaçar a posição dos califas. Com o poder na mão dos Omíadas, que reinaram em Damasco e depois dos Abássidas, estabelecendo a nova capital em Bagdá, e com o projeto expansionista de conquista de impérios cobiçados por suas riquezas, como era o caso da Pérsia e de Bizâncio, os califas mantiveram um controle político no qual não havia espaço para contestação.

Dentro do próprio sunismo, portanto, fica bem claro que as maiores divergências ocorreram em função de disputas dinásticas. Até mesmo no caso do califado de Córdoba, que se estabeleceu enquanto após a conquista muçulmana da Península Ibérica, tais disputas estão na raiz de sua fundação, que sua origem é consequência da perda de poder dos Omíadas no Oriente Médio. Abû’l-Mutar-rif’ Abd-al-Rahmân bin Mu’âwiya, único Omíada que havia escapado com vida do massacre de sua família em Damasco, fugiu para o Marrocos, onde viveu durante quatro anos, seguindo depois para a Al-Andalus. Estabelecido em Córdoba retomou suas ambições políticas e, em 756, foi proclamado emir, preparando o caminho para que seus descendentes fundassem o califado em terras ibéricas. Criava-se assim uma situação peculiar de um califado Abássida que se instalou em Bagdá, após o massacre de seus oponentes em Damasco, e de um remanescente Omíada em Córdoba, no Al-Andalus, ambos muçulmanos sunitas11. Este quadro demonstra, sem dúvida, que os reinos sunitas, mesmo com a forte presença da religião, agiam muito mais em função de seus interesses políticos do que levando em conta diferenças de doutrina, o que viria a ser motivo de críticas, como veremos mais adiante, por parte dos sufistas.

No que diz respeito aos xiitas, é possível afirmar que, por não se constituírem no grupo hegemônico que havia organizado o estado muçulmano e tomado a liderança do expansionismo, reforçaram uma religiosidade enraizada no martírio de Husayn e nos laços de sangue dos Imãs Supremos com o Profeta. Não estavam excluídas, evidentemente, as distinções de doutrina e, por consequência, também de práticas religiosas, mas estas foram se articulando historicamente no decorrer do tempo e levando a novas rupturas dentro do próprio xiismo.

 

Xiismo, um Islã de muitas correntes

 

Uma das mais importantes distinções da vertente xiita do Islã é a que se refere ao fato de que o xiismo aceita a existência de clérigos e, entre eles, a de um Imã Supremo, descendente da família do Profeta e imbuído de qualidades tidas como excepcionais, constituindo-se na liderança dominante para todos os fiéis. Esta corrente do Islã, no entanto, também se dividiu a partir do momento em que começaram as discordâncias justamente sobre a escolha de novos imãs. Nos séculos VIII e IX ocorreram as principais divergências e os três ramos mais importantes, que se originaram de novas rupturas, passaram a se definir como duodécimos, ismaelitas e zayditas.

Os duodécimos são assim denominados porque reconhecem uma linhagem ininterrupta de imãs a partir da escolha de Ali, em 656, até o décimo-segundo deles, Muhammad, que desapareceu em 874. Naquela oportunidade, o imã Muhammad foi dado como “oculto” e não como morto, e passou a ser chamado de Muhammad al-Mahdi, o Messias, que deveria retornar no final dos tempos. Para os duodécimos, que se constituem na maioria dos xiitas, enquanto o Mahdi estiver oculto a comunidade será guiada por especialistas religiosos, também considerados excepcionais e autorizados a interpretar a lei divina, a shari’a, de acordo com o Corão e com os Hadith12.

Os zayditas, são os seguidores de Zayd ibn-Ali e separaram-se do corpo do xiismo por ocasião da escolha do quinto Imã, não tendo conseguido a indicação de seu líder Zayd para a posição de Imã Supremo. Foram sempre uma minoria, dentro do xiismo mas, em 893, estabeleceram-se como um estado independente do Yemen, mantendo-se no poder até 1963. Ainda hoje os zayditas se constituem em aproximadamente 45% da população iemenita13.

Outra dissidência importante dentro do xiismo é a dos ismaelitas, ocorrida no século VIII e também originária de disputas em torno da sucessão da liderança para o imanato. Os ismaelitas seguem uma linha acentuadamente esotérica do Islã, com diversas práticas espirituais místicas. No ano de 909 chegaram ao poder no norte da África, sob a denominação de Fatímidas, descendentes de Fátima, filha de Maomé e mulher de Ali. Reinaram na Tunísia e no sul do Marrocos estabelecendo- se inicialmente no Sahel tunisino e, entre 969 e 1171, proclamaram o califado do Egito, em clara oposição aos califas abássidas de Bagdá. Em 1171 o último califa fatímida foi derrubado por Saladino14.

Os ismaelitas passaram por fases muito distintas em sua história, algumas de grande violência, como foi o caso do surgimento, dentro do grupo, da seita dos Assassinos, que atacava principalmente seus opositores sunitas15. No entanto, a partir do século XIII, abandonaram a violência em todas as suas formas e desenvolveram importantes comunidades em diversos países, com destaque para a Índia. Atualmente os ismaelitas têm como seu Imã Supremo o príncipe Karim Aga Khan, um reconhecido mecenas que aplica parte de sua renda na construção e manutenção de escolas, universidades e hospitais dedicados à comunidade de seus seguidores.

Além destes três ramos mais importantes do xiismo os duodécimos, os zayditas e os ismaelitas outras ramificações foram se desenvolvendo, entre elas a dos alauítas e a dos drusos, tão diferenciadas do corpo principal do Islã a ponto dos alauítas chegarem a participar de “[...] muitos dias festivos dos cristãos e persas, incluindo Natal, Epifania (6 de janeiro), Páscoa [...] bem como o Ano Novo persa, Nayruz”16. Quanto aos drusos, originaram-se de um grupo ismaelita do califado fatímida, no século XI, e elaboraram importantes reformas em sua comunidade, abolindo a poligamia, a escravidão e postulando que o governo do estado não deveria se confundir com a religião. Para alguns analistas, suas divergências do Islã são muito grandes, o que os aproximaria de visões de mundo dos gnósticos e dos cristãos17. O grupo druso atualmente mais conhecido é o que se concentra nas montanhas do Líbano, mas muitos vivem também em Israel, na Síria, na Turquia e na Jordânia.

Neste contexto múltiplo no qual havia a possibilidade de dissidências, ainda que sob o risco de perseguições pelos poderes centralizados, o Islã foi se desenvolvendo em muitas linhas. Entre as reflexões filosóficas mais importantes do Islã medieval estão as de Ibn Sina, também conhecido como Avicena. Ibn Sina viveu entre 980 e 1037 e era filho de um letrado xiita da corrente ismaelita. Deixou diversos textos místicos, entre eles um que discorre sobre da viagem da alma de volta a seu lugar de origem. Neste texto, o filósofo desenvolveu com riqueza de detalhes uma ideia que trata da liberação da alma através da figura de um anjo-sábio, o qual é também um guia na viagem de retorno à origem18.

Ibn Sina fez ainda diversas reflexões sobre política e nelas deixou claro que, em sua opinião, os profetas e imãs eram os governantes ideais, os líderes ou reis sábios, o que remetia à influência de Platão. Em suas análises, destacou também que as palavras daqueles que tivessem recebido a iluminação seriam sempre as de maior autoridade. Ibn Sina valorizava a revelação divina igualmente enquanto fonte da ética para governar os fiéis. Só um “iluminado” teria condições de guiá-los. De certa forma, fez então com que as revelações e as profecias autenticassem a sharia que, no âmbito do Islã, sempre foi considerada necessária para a sobrevivência da sociedade19.

Em sua obra, é central também o papel do imaginário em seu sentido mais amplo, pois é através dele que as mensagens divinas podem ser entendidas pelos homens. Para Ibn Sina, o profeta, enquanto transmissor das palavras de Deus para a humanidade, lançava mão necessariamente de imagens das quais ele era o detentor dos sentidos e que propiciavam a inteligibilidade das visões20. O especialista em monoteísmos F. E. Peters não tem dúvidas ao qualificar a filosofia de Ibn Sina de esotérica e acredita que é provável que sua filiação se aproximasse do misticismo sufi ou da corrente xiita ismaelita, porém nem todos os estudiosos da obra do filósofo concordam e alguns o apresentam como um xiita duodécimo. A questão, porém, está em aberto, que ele próprio não declarou com clareza sua opção21.

Ibn Sina seguiu parcialmente a ortodoxia do Islã, para a qual Maomé era “o selo dos profetas” o que, em princípio, não abriria espaço para nenhuma profecia posterior. No entanto admitia a existência de “iluminados” que faziam uma ponte entre a mensagem divina e os homens simples. E se, para o Islã, o primeiro profeta foi Adão e o ultimo Maomé, para o xiismo vários imãs, divinamente guiados, seriam os herdeiros das qualidades excepcionais que eram transmitidas desde Ali. Tal raciocínio abria espaço, sem dúvida, para a ocorrência, então, de um novo ciclo de profecias, o que não era aceito pelos sunitas mas encontrava espaço entre os pensadores xiitas22.

Na atualidade, porém, uma das discussões mais presentes no xiismo é de caráter político e não filosófico. No centro dos debates está o Irã que, afirmando-se como um governo republicano, ainda assim não abre mão do seu caráter teocrático, o que tem levado a acirradas divergências dentro do próprio país. É interessante lembrar, ainda, que o xiismo foi adotado como religião oficial iraniana a partir da dinastia safávida e sua imposição se iniciou em 1501, quando Isma’il (que reinou de 1501 até 1524) conquistou o poder e reunificou a região da Grande Pérsia como um estado independente. O sucesso da nova dinastia, que governou até o século XVIII, favoreceu largamente o desenvolvimento do xiismo, impulsionando também a arquitetura e as artes a ele relacionadas23. Anteriormente sunita, a população do Irã foi obrigada a se converter em massa ao xiismo mas os safávidas souberam associar esta corrente do Islã também a um sentido de diferença, de identidade iraniana, alcançando grande sucesso e mantendo os turcos como seus inimigos, sem ser, portanto, incorporados ao império otomano24. A história do Irã foi conturbada, mas o xiismo permaneceu como religiosidade identitária, diferenciando-o da maioria dos muçulmanos à sua volta.

Quando, muitos séculos depois, Ruollah Khomeini, respeitado clérigo xiita da corrente duodécima começou a organizar associado a outros setores da sociedade iraniana o que viria a ser a revolução islâmica para derrubar o Reza Pahlevi, ele passou também a divulgar sua própria interpretação acerca da organização de um estado islâmico. As raízes do excepcionalismo iraniano, em virtude de sua opção xiita, estava impregnada na história do país, e levantar a bandeira religiosa contra uma monarquia que se aproximava muito do Ocidente foi o caminho que Khomeini encontrou para motivar a população a favor da República Islâmica. Sob a sua liderança, que evocava o imaginário coletivo iraniano, antiocidental,  um novo Estado foi instalado a partir de 1979. A visão de Khomeini, no entanto, sobre política e religião, não alcançava o consenso mesmo entre os xiitas. Uma das mais importantes características do xiismo era, até então, a de conviver com poderes políticos estabelecidos, algumas vezes influenciando-os ou simplesmente evitando envolvimentos muito diretos nas questões específicas de Estado. Tratava-se de uma religião nacional, mas não necessariamente de uma religião que tivesse interesse direto em participar do poder político25.

A ascensão de Khomeini como líder não apenas religioso mas também político representou uma transformação na maneira como os xiitas viviam o seu papel na sociedade e, ainda que conseguindo inúmeros adeptos tendo como principal objetivo a derrubada do Xá, sua leitura do Islã estava longe de ser a que havia prevalecido entre os letrados no decorrer de muitos séculos. Procurando a legitimação como o Líder Supremo dos revolucionários, que viria ocupar todos os espaços do comando político, militar e religioso, Khomeini incluiu na Constituição da República do Irã de 1979, a ideia central de um livro que havia publicado em 1970, acerca do governo islâmico26. De acordo com a sua concepção, um destacado jurista seria indicado como Líder Supremo do país e governaria com plenos poderes para proteger acima de tudo o Islã, e para tal faria uso da lei de origem divina, sem necessitar de nenhuma outra além da shari’a. Um dos artigos da referida constituição estabelece explicitamente que após a morte do “grande líder da revolução islâmica universal e fundador da República Islâmica do Irã” (ele próprio)27, a escolha do novo Líder Supremo passará a ser atribuição de um grupo de experts que obrigatoriamente apontarão uma pessoa com domínio da jurisprudência (fiqh).

Muitos clérigos e outros letrados iranianos discordaram de Khomeini sobre o poder constitucional que estava sendo dado ao Líder Supremo, entre eles os respeitados aiatolás Abdul-Qassim Khoei e Mohammad Hussein Fadlallah. Este último, embora tenha sido um entusiasta da revolução iraniana em muitos de seus aspectos, fez duras críticas ao fato do país correr o risco de ser dirigido por clérigos com poderes absolutos o que, em sua opinião, não se coadunaria com a doutrina xiita28.

É importante destacar que, dado o peso da revolução iraniana de 1979 e o papel nela desempenhado por Khomeini, a palavra “xiita”, que deveria apenas nomear uma ramificação do Islã oriunda do grupo dissidente que, no século VIII, se tornou seguidor de Ali e dos imãs descendentes da família de Maomé, passa, então, a ser ressignificada e associada à ideia de comportamentos violentos e totalitários. No entanto, foi justamente dentro do xiismo que se verificaram aberturas de grande importância para distintas interpretações do Corão e de outros textos, como os Hadith, interpretações estas de caráter muitas vezes afastadas da ortodoxia sunita. Em nossa análise, afirmamos que Khomeini criou um divisor de águas na imagem do xiismo e o seu peso político e suas ações podem ser considerados como fatores fundamentais na maneira como atualmente os xiitas são vistos, tanto dentro do Islã quanto na comunidade não islâmica.

Numericamente, os xiitas são apenas 10 a 13% do total de 1 bilhão e quinhentos mil dos muçulmanos. No entanto, em alguns países, são maioria, como é o caso justamente do Irã mas também do Iraque, do Azerbaijão, de Bahrein e provavelmente do Líbano29. As estatísticas apresentam divergências e algumas publicações referem-se a 15% de xiitas já que, na verdade, poucos países do Oriente Médio têm mantido seus censos de população atualizados. O que importa, porém, para a análise histórica é entender que não se trata, de modo algum, de uma pequena dissidência no corpo maior do Islã e sim de uma ruptura que depois se ramificou em diversas correntes que romperam, de modo muito claro, com a homogeneidade inicial pretendida por Maomé e seus primeiros seguidores.

A história da religiosidade muçulmana é bastante densa e complexa e, no decorrer de muitos séculos, surgiram pensadores que elaboraram reflexões de cunho teológico-filosófico de grande riqueza, vindo a se constituir numa linha do Islã que transcendeu a divisão entre sunitas e xiitas e ficou conhecida como sufismo.

 

O aporte místico do sufismo

 

A partir das últimas décadas do século VII e início do século VIII, o califado se afirmava, cercado pelo luxo de uma corte cada vez mais poderosa e distanciada das necessidades de seus súditos. A dinastia Omíada enfrentava, então, inúmeras críticas, que não partiam apenas dos xiitas, perseguidos pelo poder que estava nas mãos dos sunitas. Entre pensadores de ambas as correntes havia um grande descontentamento pelo fato de sucessivos califas não agirem como muçulmanos piedosos e verdadeiros seguidores dos preceitos de Maomé.

Os primeiros sufistas eram, portanto, muçulmanos que criticavam o apego aos bens terrenos e que valorizavam a prática do ascetismo. É bem aceito pelos especialistas que a denominação “sufi” tem origem na palavra lã, em árabe suf, material do qual eram feitas, na fase inicial do movimento, as vestimentas dos sufistas, em clara oposição às sedas e outros tecidos de luxo usados nas cortes. Buscando uma definição ampla para o sufismo podemos dizer que não se trata de uma seita e nem de uma ruptura no Islã, mas de um caminho que conduz a um encontro místico e intenso com Deus, através do despojamento de todos os luxos e de determinadas práticas e maneiras muito particulares de vivenciar a religiosidade. Esta busca por um Islã que é considerado místico e repleto de sentidos não evidentes para todos, e que almejava o contato pessoal e direto com o divino, teve entre seus adeptos tanto sunitas quanto xiitas e atingiu todas as camadas da população de diversos países muçulmanos. Conforme bem destaca John Esposito:

 

A junção de devocionalismo com ascetismo transformou o sufismo de sua relativamente limitada base de elite em um movimento que atraiu e abraçou todos os estratos da sociedade [...]. Ainda que suas origens e fontes (interpretações sufistas do Corão e da vida do Profeta) fossem claramente islâmicas, influências externas foram absorvidas, de eremitas cristãos do Egito e do Líbano, do monaquismo budista do Afeganistão, do devocionalismo hinduísta e do neo-platonismo.30

 

Certamente o fecundo encontro de culturas que ocorreu através dos caminhos da Rota da Seda e o fato de que muitos letrados no Oriente Medieval eram também viajantes contribuiu para que houvesse um rico intercâmbio não apenas de mercadorias mas também de ideias31, e os sufistas foram especialmente receptivos à incorporação de práticas diversas em suas buscas da experiência direta da divindade. Sua organização se deu, desde o início, em ordens ou confrarias em torno de um mestre inspirador e orientador das diversas práticas do grupo. Dependendo do mestre, da origem e da cultura à qual pertence o grupo, as práticas são variadas, embora as mais frequentes envolvam recitação de trechos do Corão, dos Hadith ou dos muitos nomes de Deus, de forma ritmada, como se fossem mantras, além de danças e cantos.

Tanto por suas críticas ao poder político quanto por não seguir a religião de maneira ortodoxa, os sufistas foram muitas vezes perseguidos. A partir dos séculos XI e XII, porém, o chamado “califado universal” se desintegrou, cresceu a rivalidade entre os estados muçulmanos e, neste contexto histórico de grandes transformações no Oriente Médio e no norte da África, as ordens ou confrarias sufistas se fortaleceram.

Um dos mais conhecidos mestres sufistas é Jalal al-Din Muhammad Rumi (1207-1273), respeitado jurista, poeta e místico muçulmano de família persa cujas obras alcançaram enorme sucesso no mundo todo. O professor Franklin Lewis, da Universidade de Chicago, especialista e biógrafo de Rumi, destaca que o sufista é conhecido entre os muçulmanos pelo nome de Mawlavi, em persa, ou de Mevlevi, em turco, que significa “nosso mestre/ líder”, palavra que deu o nome à ordem fundada por seu filho, após a sua morte32. A ordem Mevlevi é também conhecida como a dos “dervixes rodopiantes”33 que alcançaram fama por sua impressionante dança em círculos. Para Rumi a música e a dança eram meios para entrar em contato com o divino, para atingir o êxtase dos místicos.

Em Konya, na Anatólia, onde Rumi viveu parte de sua vida e veio a falecer, o seu túmulo passou a ser – e se mantém até hoje – um local de importante peregrinação para os muçulmanos, tanto xiitas quanto sunitas, que são adeptos do sufismo. Esta é, também, uma das importantes características dos sufistas, a de exaltar seus mestres, sendo que alguns deles alcançaram características de “santos”, aproximando-se muito da piedade cristã, mas também incorporando crenças e práticas do paganismo. No Marrocos e no norte da África tais características são muito evidentes. O antropólogo Clifford Geertz que estudou o Islã em diversos contextos históricos, entre eles a Indonésia e o Marrocos, observou a influência de religiosidades locais que foram incorporadas ao sufismo. Segundo ele:

 

A despeito das ideias sobre o além e das atividades tantas vezes associadas a ele, o sufismo como realidade histórica consiste em uma série de experimentos diferentes e até mesmo contraditórios, a maioria ocorrendo entre os séculos IX e XIX, no afã de trazer o islã (ele próprio longe de ser uma sólida unidade) para uma relação efetiva com o mundo, tornando-o acessível a seus seguidores, e estes acessíveis a ele. No Oriente Médio isto parece ter significado sobretudo reconciliar o panteísmo árabe com o legalismo do Alcorão; na Indonésia, recolocar o iluminacionismo hinduísta em expressões árabes; na África Ocidental, definir sacrifício, possessão, exorcismo e cura, como rituais muçulmanos. No Marrocos, significou fundir as concepções genealógica e miraculosa da santidade – canonizando os “hommes fétiches”34.

 

Tais considerações, apesar de bastante coerentes com o que todas as pesquisas evidenciam, muitas vezes não são aceitas por alguns autores muçulmanos que insistem em ver o Islã como puramente ligado às revelações divinas recebidas por Maomé, e aos Hadith do Profeta, fazendo destes textos uma leitura que abre pouco espaço a interpretações fora da ortodoxia35. Abdelwahab Meddeb, no entanto, é um escritor e acadêmico árabe que enfatiza também as influências externas do sufismo e o considera uma espiritualidade poderosa pelo fato de trazer em si tradições espirituais anteriores. Ao afirmar com muita clareza que o Islã “soldou” tradições díspares, considera que:

 

Em razão de uma tal situação [da fusão de outras tradições espirituais], o “maior mestre do sufismo”, Ibn ‘Arabi (Murcia, 1165-Damasco, 1240), teve direito a associações múltiplas. A obra é tão poliforme e aberta que seu autor foi percebido tanto como um “cristão inconsciente” (pelo jesuíta espanhol Miguel Asín Palacios) quanto como um neoplatônico (pelo egípcio A. E. Affifi, discípulo de Reynold A. Nicholson).

 

Fica muito evidente que os cruzamentos culturais são uma realidade – aliás para todas as religiões e não apenas para o Islã e dos múltiplos encontros surgem sempre as transformações, com aportes variados. A interferência dos poderes políticos também altera, muitas vezes, a liberdade de práticas religiosas e, no caso dos sufistas, foi o estado laico da Turquia que colocou os maiores empecilhos ao seu desenvolvimento no mundo contemporâneo. A ordem Mevlev, dos “dervixes rodopiantes”, não escapou às regras do laicismo estabelecidas por Atatürk. Ela foi fechada, junto com outras ordens sufistas, todas elas proibidas de ter sede própria e de realizar reuniões ou quaisquer cerimônias públicas, inclusive a tão apreciada dança circular dos dervixes. Em 1225 o mausoléu de Rumi, que atraía um grande número de peregrinos, foi também fechado à visitação mas acabou sendo reaberto dois anos depois como museu, dado o seu prestígio no mundo todo.

As restrições aos sufistas foram, aos poucos, sendo abrandadas na Turquia, já que havia interesse também em manter algumas manifestações que tinham repercussão internacional. A partir de 1950, vendo que os “dervixes rodopiantes”36 eram considerados também uma atração turística, o governo turco decidiu autorizar suas apresentações em datas específicas e em certas festividades. Finalmente, em 2005, a UNESCO proclamou sua cerimônia de dança como sendo “Obra Prima do Patrimônio Oral e Intangível da Humanidade”.

No Ocidente o sufismo se disseminou com rapidez e despertou grande interesse principalmente por parte de diversos grupos esotéricos que pouco se referem às fontes originais e muitas vezes fazem de Rumi uma leitura superficial, deturpando seu conteúdo. Muitos destes grupos sequer sabem que se trata de um autor que era muçulmano devoto e que remetia efetivamente ao Corão em quase toda a sua obra. Este é, no entanto, um dos lados inevitáveis de seu sucesso e do alcance de seus escritos, que tocam a muitos e são alvo de interpretações distintas.

No Irã, a memória de Rumi continua sendo prestigiada e ele é visto sobretudo como uma grande figura da literatura persa. Em alguns momentos, porém, têm havido choques entre o poder central e os dervixes iranianos, principalmente porque o sufismo critica os governos teocráticos e recusa que a política possa influenciar a religião. O sufismo, no entanto, é largamente praticado no país e, para os xiitas em geral, a ideia de uma leitura esotérica da palavra divina e de manifestações místicas não lhes é estranha.

  

Conclusão

 

Nos seus muitos séculos de existência o Islã passou por diversas rupturas e transformações, especialmente importantes no período compreendido entre os séculos VII e XIII. Uma grande variedade de práticas testemunho também da multiplicidade de formas de piedade individual, nem sempre bem aceitas pela ortodoxia mas nem por isto pouco relevantes. Ascetismo, autoflagelação, culto aos santos e, inclusive, estrutura clerical, no caso do xiismo, costumam sofrer críticas do sunismo estrito mas, sem a menor dúvida, se constituem em presenças fortes em diversas correntes que são parte integrante do Islã.

Acreditamos que o sufismo pode ser considerado emblemático da diversidade já que entre seus seguidores há representantes do sunismo e do xiismo, bem como praticantes imbuídos de maior sincretismo, como os do norte da África. Pelo fato do Islã ser ainda hoje a religião oficial de diversos estados, é visível uma tendência, em grande parte de seus textos, de homogeneidade na descrição de seus princípios, dificultando para a pesquisa a diferenciação entre o que é aceito por suas autoridades e o que é efetivamente praticado. A ortodoxia, porém, não consegue encobrir a riqueza do intercâmbio de ideias desde que se lance, sobre o Islã, um olhar atento.

O estudo da religiosidade muçulmana de suas múltiplas faces, porém, não deve, em nosso entender, incluir grupos como Al Qaeda e outros que estão relacionados ao que se denomina “Islã político” e que instrumentalizam a religião para suas finalidades específicas. Trata-se, nestes casos caso, de um outro tipo de fenômeno, dentro do contexto das disputas políticas, das questões de formação de nacionalidade e das lutas pelo poder. O enfoque, então, no caso da pesquisa sobre tais grupos que não deixa de ser importante deve ser voltado para a análise das diversas facções engajadas em lutas e bandeiras que se apropriam da religiosidade, seja ela em sua vertente sunita ou xiita, para justificar suas agendas.

Nosso trabalho, apresentado neste artigo, procurou dar uma visão geral de uma religiosidade que tem muitas faces e que permite, por isto mesmo, uma grande riqueza de interpretações. Pesquisas específicas sobre vários temas aqui apontados poderão desvendar um leque ainda maior de facetas e de interações com outras formas de espiritualidade. O campo de investigação é amplo e relativamente pouco explorado sob a ótica do historiador.

 

 

RESUMO

 
O objetivo do presente artigo é o de elaborar uma síntese  histórica  do desenvolvimento do Islã, dando ênfase à diversidade de suas diversas correntes. Analisamos a primeira grande ruptura, que ocorreu no século VII, com a divisão entre sunitas e xiitas, e também o desmembramento do próprio xiismo em grupos distintos, ainda hoje bem demarcados uns dos outros. Em seguida, nossa análise recaiu sobre o sufismo, que permeia todo o conjunto do Islã, com adeptos entre os sunitas e xiitas e é emblemático da imensa multiplicidade de uma religião que é muito rica e passível de variadas interpretações. Como se trata de um trabalho de síntese histórica, utilizamos como fontes autores que escreveram sobre as diversas correntes do Islã, entre eles árabes e iranianos cujas análises podem ser consideradas “internas”, e também especialistas ocidentais que têm se debruçado longamente sobre o tema. Nossa conclusão é a de que muitas vezes se difunde a ideia de uma religiosidade homogênea, centrada na leitura do Corão e nos Hadith, em geral a partir de uma visão do grupo majoritário, que é sunita e no entanto é a diversidade e até mesmo o sincretismo, como no caso de algumas linhas sufistas, que se evidencia em uma leitura atenta das fontes.
 
Palavras-Chaves: Islã; Sunismo; Xiismo; Sufismo.
  
 

ABSTRACT

 

The purpose of this article is to present a historical overview of the development of Islam, emphasizing the diversity of its various currents. Initially we analyse the first great break, which occurred in the seventh century, the division between Sunni and Shia, and also the dismemberment of Shi’a itself into distinct groups, still well visible between them. Then, our analysis was on Sufism, which permeates the whole Islam, with adherents among Sunnis and Shiites and is emblematic of the vast multiplicity of a religion that is very rich and subject to a variety of interpretations. As a work of historical synthesis, we draw our sources from authors who have written about the various currents of Islam, including Arabs and Iranians, whose analysis can be considered “internal”, and Western experts that have been addressing at length on the subject. Our conclusion goes against the commonly idea of a homogenous religion, centred on the reading of Koran and the Hadith, generally from a point of view of the majority group, that is Sunni; however, it is the diversity and even the syncretism, as in the case of some Sufi groups, which is evident from a careful reading of the sources.
 

Keywords: Islam; Sunnism; Shi’a; Sufism.

 
Artigo recebido em 08 abr. 2014.
Aprovado em 12 mai. 2014.
  
NOTAS:
 

1 – Doutora em História pela Universidade de Brasília. Professora da Pós-Graduação Lato Sensu do UniCeub. Pesquisadora do Grupo de Pesquisa Officium (UFPB) e do Grupo de Estudos Persas/ Middle Persian Studies (UnB). E-Mail: <carmenlicia@gmail.com>. 

2 – Utilizaremos a datação do calendário ocidental para facilitar as relações com o contexto histórico geral. Os autores árabes e iranianos que citamos neste artigo e que escreveram suas obras em idiomas ocidentais e não em árabe ou em persa também fizeram uso das datas ocidentais. 

3Al-TABARI, Muhammad bin Jarir. The victory of Islam: Muhammad at Medina. Tradução de Michael Fishbein. Albany: State University of New York; Suny Press, 1997.    . The last years of the Prophet: the formation of the State. Tradução de Ismail K. Poonawala. Nova York: State University of New York, Suny Press, 1990. 

4VERNET, Juan. As origens do Islã. Tradução de Maria Cristina Cupertino. Rio de Janeiro: Editora Globo, 2004, p. 55. 

5ESPOSITO, John L. Islam: the straight path. Nova York; Oxford: New York University Press, p. 08-09.

 6 – NASR, Vali. The Shia revival. Nova York: W. W. Norton & Company, 2006, p. 38. Texto original: “Sunnis, whose familiar name is short for ahl al-sunnah wa’l-jama ah (people of tradition and consensus), believe that the Prophet’s sucessor was succeeding only to his role as leader of the Islamic community and not to his special relationship with God or prophetic calling, and that the consensus of the Muslim community that selected Abu Bakr and the succeeding Rightly Guided Caliphs reflected the truth of the of the Islamic message”.

 7É sempre importante ter presente que Ali era primo de Maomé mas também seu genro, que era marido de sua filha, Fátima. Os filhos de Ali e de Fátima se constituíam, portanto, em herdeiros por direito de sangue e, segundo os xiitas, podiam ser indicados como califas. 

8 – NASR, The Shia…, p. 57. Texto original: “The sufferings of the imams lie at the heart of the Shia doctrine of martyrdom (shahadat). Just as early Christian saints accepted ‘the crown of the martyrdom’ steadfast in their faith and believing that their blood would be the seed of the church, so do Shias revere martyrdom. The imams died, as witnesses to the faith as did many of their followers. Husayn is popularly known as the Lord of the Martyrs (Sayyd al-Shuhada). Shias believe that martyrdom is the highest testament of faith”. 

9KHURI, Fuad I. Imams and emirs: State, religion and Sects in Islam. Londres: Saqi Books, 2006, p. 99. Texto original: “The sovereignty of the state is a necessary condition guaranteeing the supremacy of the divine law, for that matter, upholding religion (Islam) as a formulation of public policy.” 

10ESPOSITO, John L. Islam, the... Nova York /Oxford: Oxford University Press, 1998, p. 43. Texto original: “The fundamental difference between Sunni and Shii Muslims is the Shii doctrine of the imamate as distinct from the Sunni caliphate. […] the caliphe was the selected or elected successor of the Prophet. He succeeded to political and military leadership but not to Muhammad’s religious authority. By contrast, for the Shii, leadership of the Muslim community is vested in the Imam (leader), who, though not a prophet, is the divinely inspired, sinless, infallible, religiopolitical leader of the community”. 

11 – Sobre a conquista e os reinos muçulmanos na Península Ibérica, ver: PALAZZO, Carmen Lícia. “Muçulmanos e cristãos em Al Andalus: uma identidade que transcende o corte entre Oriente e Ocidente”. Universitas Humanas, vol. 8, n. 2, jul./ dez. 2011, p. 01-17. Normalmente se aceita a data de 711 como o início da conquista muçulmana da Península Ibérica, mas o emirado de Córdoba data de 756 e passa a ser califado a partir de 929. Abd-al-Rahmân I manteve-se como emir e nunca buscou o título de califa, provavelmente porque os eventos da derrota do Omíadas pelos Abássidas no Oriente Médio ainda eram muito recentes. O primeiro governante de Córdoba a se intitular califa foi Abd-al-Rahmân III (o termo Al-Andalus refere-se a toda a Península Ibérica muçulmana e não apenas à região da Andaluzia). 

12 – A melhor obra para se entender o xiismo duodécimo continua sendo a de Henri Corbin. CORBIN, Henri. En Islam Iranian: aspects spirituels et philosophiques, le Shi’ism duodécimain. Paris: Gallimard, 1991. 

13NASR, Seyyed Hossein. The heart of Islam. Nova York: Harper-Collins, 2004, p. 71. 

14 – Sobre a história dos fatímidas: YAACOV, Lev. State and society in Fatimid Egypt. Leiden: E. J. Brill, 1991. Ver especialmente o capítulo 8, “Ismailism in fatimid Egypt”, p. 133-152. 

15 – NASR, The heart…, p. 74. 

16 – KHURI, Imans…, p. 198. O texto original: “[…] many Christian and Persian holidays, including Christmas, Epiphany (6 January), Easter […] as well as the Persian New Year, Nayruz”. 

17 – “The Druzes: One Thousand Years of Tradition and reform”. International Studies and Overseas program’s Newsletter, vol. 21, n. 1, out. 1998. 

18AVICENA. Avicena: A origem e o retorno. Tradução de Jamil Ibrahim Iskandar. Porto Alegre: Edipucrs, 1999. 

19 – AVICENNE. “Épitre sur les parties des Sciences intelectuelles d’Abu Ali AL-Husayn Ibn Sina”. In: JOLIVET, Jean e RASHED, Roshdi (org.) Études sur Avicenne. Paris: Les Belles Lettres, 1984, p. 145. 

20 – AVICENNE. Psychologie d’Ibn Sina d’après son oeuvre As-Sifa II. Praga: Ed. de l’Académie Tchécoslovaque des Sciences, 1956. 

21Ver: PETERS, F. E. Os monoteístas. São Paulo: Contexto, 2008. Ver também: ATTIE FILHO, Miguel. Os sentidos internos em Ibn Sina. Porto Alegre: Edipucrs, 2000. 

22 – CORBIN, Henry. Histoire de La Philosophie islamique. Paris: Gallimard, 1986, p. 51-54. 

23FAHRAT, May. “Shi’I Piety and Dynastic legitimacy: Mashhad under the Early Safavid   Shahs”. Journal of the International Society for Iranian Studies, vol. 47, n. 2, mar. 2014, p. 201. 

24KEDDIE Nikki R. Iran: religion, politics and society. Londres: Routledge, 1983, p. 91. 

25 – MOMEN, Moojan. An introduction to Shi’i Islam. New Haven: Yale University Press, 1985, p. 193. 

26Para um estudo mais aprofundado sobre este tema é fundamental a leitura dos escritos de Ruhollah Khomeini, o que pode ser feito na tradução de Hamid Algar que foi revista e autorizada pelo próprio Khomeini: Islam and Revolutions: Writings and Declarations of Imam Khomeini. Berkeley: Mizan Press, 1981. 

27 – Constituição da República Islâmica do Irã, artigo 107. Texto original: “[…] great leader of the universal Islamic revolution, and founder of the Islamic Republic of Iran […]”. Disponível  em:<http://www.iranonline.com/>. Tradução em Língua Inglesa autorizada pelo governo iraniano. Acesso em: 30 mar. 2014. 

28 – Sobre este tema, ver a excelente análise de Phillip Smyth: SMYTH, Phillip. “The Battle for the Soul of Shi’ism”. Middle East Review of International Affairs, vol. 16, n. 3, Outono de 2012. Disponível em: <http://www.gloria-center.org/>. Acesso em: 30 mar. 2014. 

29Para mais detalhes sobre as estatísticas, ver: <http://www.pewforum.org/2009/10/07/mapping-the- global-muslim-population/> Acesso em: 30 mar. 2014. 

30ESPOSITO, Islam, the…, p. 102. Texto original: “The joining of devotionalism with ascetism transformed Sufism from its relatively limited elite base into a movement that attracted and embraced all strata of society […] Though its origins and sources (Sufi interpretation of the Quran and life of the Prophet) were clearly Islamic, outside influences were absorbed from the Christian hermits of Egypt and Lebanon, Buddhist monasticism in Afghanistan, Hindu devotionalism, and Neoplatonism”. 

31PALAZZO, Carmen Lícia. “Rota da Seda: caminhos de mercadores e peregrinos”. In: MACEDO, José Rivair (org.). Os viajantes medievais da Rota da Seda. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2011, p. 55-68. 

32A biografia escrita pelo professor Lewis é uma excelente introdução aos estudos sobre Rumi. Ver: LEWIS, Franklin. Rumi Past and Present, East and West: the Life, teachings, and poetry of Jalâl al- Din Rumi. Londres: Oneworld Publications, 2008. 

33 Darvish/ dervish é uma palavra persa para designar um religioso mendicante. Origina-se da palavra dar, que significa porta em farsi e pode ser entendida, para definer os dervixes, como “quem vai de porta em porta”. HUGHES Dictionnary of Islam. Londres: s.r., 1885, p. 69. 

34 GEERTZ, Clifford Observando o Islã: o desenvolvimento religioso no Marrocos e na Indonésia. Rio de Janeiro: Zahar, p. 59-60. Sobre os hommes fetiches, santos guerreiros do Marrocos, ver: BEL, Alfred. La Religion Musulmane en Berbérie. Paris: Librairie Orientaliste P. Geuthner, 1938, p. 389. 

35 Ver, sobre a opinião mais ortodoxa: NASR, The heart…, p. 213. 

36 – Sobre a cerimônia da dança dos dervixes Mevlev ver: SCHIMMEL, Annemarie. Mystical dimensions of Islam. Chapel Hill: University of North Carolina Press, 1975, p. 325.

  

REFERÊNCIA: 

PALAZZO, Carmen Lícia. As múltiplas faces do Islã. In: Sæculum - revista de história.   [30]. João Pessoa. jan./jun. 2014. p. 161-176. Disponível em: <http://periodicos.ufpb.br/index.php/srh/article/view/22242>. Acesso em: 25 out. 2017.