Por Paulo
Mendes Pinto*
Ao definir Fátima como uma
“visão”, subalterniza teologicamente o que possa ter acontecido, tornando-o
“particular”, mas abre ao infinito todas as possibilidades de interpretação,
dando guarida às formas mais pessoais de viver a fé
É
em Maria que a «profecia», no sentido cristão do termo, se define melhor, a
saber, em razão da capacidade interior de escuta de Maria, da sua capacidade de
perceção e da sua sensibilidade espirituais, que Lhe permitem captar o murmúrio
inaudível do Espírito Santo, assimilando-o perfeitamente, fecundando-o,
oferecendo-o ao mundo imediatamente depois de o ter fecundado. Por esta razão,
pode dizer-se que, num certo sentido, mas sem se ser categórico: é o princípio
mariano que incarna o caráter profético da Igreja.
Cardeal Joseph Ratzinger, «O Problema
da Profecia Cristã», em entrevista de Niels Christian Hvidt, 30Giorni, janeiro
de 1999.
Ao longo da história do
Cristianismo, especialmente do católico, tem sido muito complexa a relação
entre as definições teológicas, as hierarquias eclesiásticas e os fenómenos que
se enquadram na definição de «aparição» e que muitas vezes recolhem rápido e
significativo afeto e demonstrações de fé por parte dos crentes.
As aparições de Fátima
enquadram-se no que genericamente se pode definir como uma «revelação privada»,
ajudando-nos a perceber a natureza de “Verdade” implicada para a estrutura de
Igreja Católica. Ora, vejamos o que diz o Catecismo da Igreja Católica (§ 67) sobre o tema:
No decurso dos séculos tem havido
revelações ditas «privadas», algumas das quais foram reconhecidas pela
autoridade da Igreja. Todavia, não pertencem ao depósito da fé. O seu papel não
é «aperfeiçoar» ou «completar» a Revelação definitiva de Cristo, mas ajudar a
vivê-la mais plenamente, numa determinada época da história. Guiado pelo
Magistério da Igreja, o sentir dos fiéis sabe discernir e guardar o que nestas
revelações constitui um apelo autêntico de Cristo ou dos seus santos à Igreja.
Isto é, na linha teológica
sistematizada em muito por aquele que viria a ser Bento XVI, a revelação
privada em nada se pode comparar à fé em Deus e na sua Palavra, pois é
«distinta de qualquer outra fé, crença, opinião humana. A certeza de que é Deus
que fala, cria em mim a segurança de encontrar a própria verdade; uma certeza
assim não se pode verificar em mais nenhuma forma humana de conhecimento. É
sobre tal certeza que edifico a minha vida e me entrego ao morrer», afirma
Ratzinger num comentário teológico, à Mensagem
de Fátima, publicado pelo Vaticano em 2000. Assim, rematando, afirma no
mesmo texto: «A revelação privada é um auxílio para esta fé, e manifesta-se
credível precisamente porque faz apelo à única revelação pública.»
Ratzinger, o mais influente
teólogo católico do último quartel do século xx, relaciona a revelação privada
com a profecia. Neste sentido, o cardeal Ratzinger refere, no mesmo texto, que
«em todo o tempo é dado à Igreja o carisma da profecia, que, embora tenha de
ser examinado, não pode ser desprezado». Na entrevista citada na epígrafe deste
texto o cardeal afirma, definindo de forma lapidar o lugar e a função teológica
da revelação privada:
«O que importa fixar aqui, é pura e
simplesmente que as “revelações” dos místicos cristãos ou dos profetas do tempo
da Igreja jamais terão o mesmo lugar que ocupa a revelação bíblica, e que elas
se subordinam a esta, nos enviam para ela e por ela se explicam. Por
conseguinte, não se pode dizer que tais revelações não têm importância para a
Igreja. Basta citar as aparições de Lourdes ou de Fátima, para provar o
contrário. Estas aparições são, afinal, uma memória da revelação bíblica. E é
justamente porque elas o são que têm uma autêntica importância.»
E, num sentido muito
pertinente para se equacionar as aparições de Fátima, convém notar que a
profecia, no sentido bíblico, não significa simplesmente predizer o futuro, mas
sim «aplicar a vontade de Deus ao tempo presente e consequentemente mostrar o
reto caminho do futuro», como afirma o futuro papa.
Aquele que em breve seria
bispo de Roma aprofunda no mesmo texto a questão da profecia, invocando
inclusivamente Fátima: «A antropologia teológica distingue, neste âmbito, três
formas de perceção ou “visão”: a visão pelos sentidos, ou seja, a perceção
externa corpórea; a perceção interior; e a visão espiritual (visio sensibilis, imaginativa, intellectualis).
É claro que, nas visões de Lourdes, Fátima, etc., não se trata da perceção
externa normal dos sentidos: as imagens e as figuras vistas não se encontram
fora no espaço circundante, como está lá, por exemplo, uma árvore ou uma casa.»
Seguindo o Catecismo da Igreja Católica, assim como
as palavras de Ratzinger, percebemos que um fenómeno como Fátima implica um
escrutínio por parte das autoridades, mas nunca assumirá a natureza de matéria
de fé. A importância deste tipo de revelação não se encontra numa veracidade em
sentido positivo, mas sim numa veracidade que alinha a aparição com a
«revelação bíblica», o referencial máximo de profecia e de revelação pública.
No limite, a própria leitura
que cada um pode fazer desse universo de visões que não são materiais, é também
ela relativa ao íntimo de cada crente a quem a mensagem toque de forma
especial. Desta forma, Ratzingger libertava o fenómeno de Fátima das
contingências personalizadas por João Paulo II ao centrar em si a leitura do
chamado Terceiro Segredo.
Ao definir Fátima como uma
“visão”, subalterniza teologicamente o que possa ter acontecido, tornando-o
“particular”, mas abre ao infinito todas as possibilidades de interpretação,
dando guarida às formas mais pessoais de viver a fé. Isto é, ao libertar Fátima
do peso excessivo de toda e qualquer narrativa, colocando sempre acima a
Revelação bíblica, o futuro Papa dava a Fátima a possibilidade de fugir ao
tempo, ao contexto e de continuadamente se poder recriar na maleabilidade e na
subjectividade de cada crente no seu momento e no seu contexto específico.
Fátima é lançada como possibilidade de fé muito para além do Terceiro Segredo.
*Coordenador
da área de Ciência das Religiões da Universidade Lusófona. Embaixador do
Parlamento Mundial das Religiões e fundador da European Academy of Religions. É
especializado em História das Religiões Antigas (mitologia e literaturas
comparadas), mas dedica parte dos seus trabalhos a questões relacionadas com a
relação entre o Estado e as religiões. Na área da Ciência das Religiões, é o
responsável por diversos projectos de investigação, especialmente na relação
entre as Religiões e a escola, assim como no desenvolvimento de uma cultura
sobre as religiões como componente de cidadania. É ainda investigador da
Cátedra de Estudos Sefarditas «Alberto Benveniste» da Universidade de Lisboa. É
Membro do Conselho Consultivo da Associação de Professores de História. É
director da Revista Lusófona de Ciência das Religiões. Recebeu a Medalha de
Ouro de Mérito Académico da Un. Lusófona em 2013.
REFERÊNCIA:
Pinto, Paulo Mendes. DE “APARIÇÃO” A
“VISÃO”: RATZINGGER E A REDEFINIÇÃO DE FÁTIMA COMO OBJECTO DE TEOLOGIA. 09
maio 2017. Disponível em: <http://visao.sapo.pt/opiniao/bolsa-de-especialistas/2017-05-09-De-aparicao-a-visao-Ratzingger-e-a-redefinicao-de-Fatima-como-objecto-de-teologia>.
Acesso em: 30 jun. 2017.
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