A GRANDE BELEZA OU A BELEZA
SEM RAÍZES, OU BLÁ-BLÁ-BLÁ
Paulo Roberto
Monteiro de Araújo*
Universidade
Presbiteriana Mackenzie – MACKENZIE
RESUMO: O artigo
trata da questão da relação cultural entre Brasil e Itália a partir da análise
do filme A Grande Beleza. Deste modo, a preocupação é elaborar uma interpretação
crítica da contemporaneidade social e cultural de ambos os países.
PALAVRAS-CHAVES:
Contemporaneidade – Cultura – Monumento – Beleza – Circularidade
THE BIG BEAUTY OR THE
BEAUTY WITHOUT ROOTS, OR BLAH BLAH BLAH
ABSTRACT: The
purpose of article is to analyze the Cultural relations between Brazil and
Italy through the film called La Grande Belezza. Therefore my main
preoccupation is to create a critical interpretation about Social and Cultural
contemporary of both countries.
KEYWORDS:
Contemporary – Culture – Monument – Beauty – Circulation
A questão de fundo do presente texto está vinculada ao diálogo
cultural e político entre América e Europa. É a partir da ideia de diálogo que poderíamos perguntar de forma direta sobre o que
ainda podemos aprender com a Europa, em particular com a Itália. É no âmbito
cultural, mais especificamente cinematográfico que poderíamos pensar o que a
Itália pode nos suscitar a pensar sobre a nossa contemporaneidade.
Tendo impacto internacional, o filme A Grande Beleza (La
Grande Belezza - Direção: Paolo Sorrentino. Itália/França: Mares Filmes, 2013. (2:22
min.) son., color) abre para nós diversas vias para analisar e interpretar a
temporalidade da sociedade brasileira urbana por meio de temas levantados no filme.
Não se trata de nos fixarmos em análises estéticas do filme ou da estrutura
psíquica de seus personagens, mas naquilo que a temporalidade Italiana tem, e
que, de forma sincrônica e dialógica, abre e oferece a nós brasileiros, no
sentido de refletir sobre nós mesmos.
O primeiro ponto que o filme de Paolo Sorrentino oferece
é o da relação com o outro, mais especificamente de outras culturas, seja o
outro imigrante, turista, investidor e etc. Não é por acaso que ao longo do
filme aparecem diversas situações vinculadas ao outro, ao estrangeiro. Logo no início
do filme surge de forma caricata um grupo de mariachis mexicanos tocando numa
festa, em que uma música pop italiana chamada A Far L’amore Comincia Tu contrasta
com a música dos mexicanos, que são apresentados de forma caricata e dissonante
ao ambiente. Apesar da referida festa também ser uma caricatura da burguesia romana,
o outro aparece como elemento que introduz o estranhamento na dinâmica interna
social local.
Jep
Gambardella, personagem principal,
tem uma serviçal
proveniente da América
Latina que chama carinhosamente de farabutta. Apesar da relação amigável entre eles, a empregada
imigrante ao dar-lhe uma espécie de amuleto da sorte originário de seu país, de
presente de aniversário, este é
recebido com descrédito pelo patrão, mesmo
que tal descrédito se dê de modo singelo. O amuleto aparece como elemento
exótico, sem reconhecimento de identidade por parte do outro, no caso o patrão Jep.
A empregada não tem a sua identidade cultural reconhecida, sendo aceita somente
como alguém aparentemente amigável, mas desconsiderada no que se refere à sua origem
histórico-social.
O não reconhecimento do outro está não somente nos
imigrantes trabalhadores, mas também naqueles que trazem os seus modos culturais
distintos. É o caso de uma cena em que aparece um muçulmano comendo à mesa em
um restaurante cujas janelas dão para uma rua chique de Roma (Via Veneto),
enquanto a esposa com o rosto coberto se mantém intacta com o olhar fixo para o
nada. Tal cena pode ser interpretada como uma espécie de denuncia contra a barbárie
do outro. Ou ainda um grupo de orientais barulhentos que saem de outro
restaurante, perturbando uma suposta tranquilidade romana. Ou mesmo ainda,
quando Ramona, uma strip-tease cujo pai é dono da boite onde trabalha, pensando
que Gambardella pretende fazer sexo com ela, esta lhe diz que procure alguma
polaca da casa noturna. Eis o diálogo entre Jep e Ramona abaixo:
RAMONA: È da quando avevo quattordici
anni che mi sono accorta che tutti volevano farmi. Peccato che mio padre si è dimenticato
di dirmi che non ne valeva la pena farsi fare da tutti. Quando ho capito ‘sta
cosa, ho smesso di darmi in giro. Se cerca una ragazza, ce stanno le polache.
Jep è imbarazzato.
Jep: Non cerco nessuna ragazza.
Sono davvero um vecchio amico di suo padre.
RAMONA: Mio padre non há amici.1
Entre essas sequencias de cenas em que outro aparece como
elemento perturbador e não reconhecido, somente a francesa, Madame Ardan, exerce
fascínio sobre Gambardelle. Somente a cultura da elegância francesa consegue mesmo
que de um modo fortuito (Jep reconhece Madame Ardan à noite na rua e a cumprimenta
rapidamente) encantar o italiano Jep (claro que podemos interpretar tal cena como
um agrado aos produtores franceses do filme).
É no viés do encantamento que podemos
verificar que Paolo Sorrentino desenvolve a questão da cegueira em relação ao belo,
ou aquilo que tem significado cultural e
existencial, em seu aspecto de narração de possibilidade de ser
humano no horizonte da história.
Apesar
da ode que o diretor faz a Roma, com a epígrafe Roma ou Morte (Roma o
Morte), gravada em um monumento (Emilio Gallori, Momunento a Garibaldi – 1895)
e apresentada logo no início do filme, Sorrentino mostra
o trágico do cotidiano romano. Um homem que se limita à lavagem do seu corpo em
uma fonte em Gianicolo (Fontana dell’Acqua Paola), o turista japonês que não
quer ter informação da guia sobre a mesma fonte, limitando-se a fotografar
prédios distantes, o motorista do ônibus de turismo dos japoneses que se
concentra em seus trambiques, reclamando ao celular com alguém que lhe prejudicou.
A cegueira para aquilo que está mais próximo, no caso os
monumentos como a fonte de Acqua Paola, faz com que haja uma espécie de velamento
do sentido da historicidade da cidade. Os monumentos viram simples coisas. Eis o
motivo de Jep ter em sua varanda a vista do Coliseu. Este é simples coisa que decora
a varanda do apartamento de Jep. O Coliseu vira simples cenário como todos os
outros monumentos; velando assim a
própria narrativa histórica
cultural da cidade. Ou ainda, a
narrativa histórica dos
monumentos virá pano de fundo para outro tipo de narrativa: a da frivolidade.
É esse velamento que revela as práticas dos moradores de
Roma, que no filme são representados por frívolos burgueses falsamente
intelectualizados e politizados. São esses mesmos moradores monumentos, no sentido
de serem monumentos hedonistas. Chama atenção, principalmente para o público brasileiro
(fortemente preconceituoso com a questão da idade), a média de idade dos personagens
que figuram ao longo do filme, principalmente nas cenas das festas. Tendo uma
média de idade acima dos cinquenta anos, os personagens são caricaturas de si
mesmos como pessoas que aproveitam a vida buscando um incessante prazer. Sorrentino
reforça com a média de idade dos personagens a nossa ideia de monumento hedonista
(no sentido de que um monumento histórico carregar consigo um processo temporal
cronológico). Por outro lado, cabe salientar que não se trata de nenhum juízo
valorativo contra o prazer quando nos referimos ao hedonismo.
A questão que nos interessa é o paralelo
entre os monumentos de uma cidade que viram simples coisas e as pessoas que se
tornam também coisas dentro do universo do prazer. Daí não se tratar
do problema do prazer, mas do seu significado para a
narrativa da existência
das pessoas, de
suas identidades, subjetiva
e cultural. O hedonismo
no filme ganha formas diversas. Entre elas está a de uma suposta consciência
política. Stefania, amiga de Jep discorre em uma reunião sobre o coletivismo marxista
puro de Roma de modo que o quê menos importa é o próprio significado de
coletivismo. Stefania em seu discurso se limita a banalidades frívolas.
STEFANIA: Roma, comunque, è
l’única città al mondo dove si è pienamente compiuto il marxismo. A Roma non è
consentito a nessuno di spiccare sugli altri per più di una settimana. Poi, lo si
riporta nell’aurea mediocritas. Roma è collettivismo puro.2
O hedonismo de Stefania é aparentar ser uma mulher politizada,
mas resguardada pelo universo burguês que ela pertence. O seu discurso
aparenta ser algo de fundamental para a condição humana, mas
que na verdade não passa de prazer burguês.
Um terceiro ponto que podemos apreender no filme de
Sorrentino é a questão do processo de deterioração do convívio básico social.
Em uma das primeiras cenas vemos uma mulher gritar dizendo que roubaram o seu
celular na festa de aniversário de Jep Gambardella. Tal cena lembra um caso
recente em um casamento da alta sociedade do sul brasileiro, em que, só a
título de curiosidade, tinha entre os seus convidados o ex- presidente Lula. No
casamento, composto por um grupo seleto do PIB brasileiro, uma das convidadas teve
um celular roubado ao deixa-lo sobre a mesa para ir dançar. A questão do roubo do
celular da personagem nos remete a não tranquilidade de se estar em qualquer ambiente,
mesmo aquele entre pessoas do mesmo nível sócio cultural econômico. A
banalização do convívio básico nos remete no filme a outra cena, em que numa outra
festa algum convidado deixa o prato quase não mexido na fonte da casa como
forma de protesto em relação à comida servida não ter tido uma qualidade boa.
É na linha da autodesvalorização de si mesmo que
encontramos outro paralelo entre Itália e Brasil. Deste modo, se somos ainda o
país do Carnaval e do Futebol, a Itália é o país dos pizzaiolos e tecelões. Ao
se referir ao seu país como de pizza e moda, o personagem Lello, comerciante de
brinquedos, constrói uma imagem limitada de seu país. Em uma conversa no
terraço do apartamento de Jep durante a reunião Lello diz:
Voi dite Roma.
Io dico l’Italia. Scusa-te, ma per cosa siamo famosi all’estero? Le pezze e Le pizze.
Nient’altro. Siamo um paese di magliari
e pizzicagnoli. E sempre questo saremo.3
Essa imagem limitada pode ser compreendida a partir da ideia
de velamento que salientamos mais acima no presente texto. Assim como nós
brasileiros continuamos a ter uma consciência de automenosprezo, Sorrentino mostra
uma burguesia que se aproveita do país, mas que não consegue vê-lo em sua
origem narrativa histórica social, limitando-se a clichês de si mesmos.
A crítica que Sorrentino faz à burguesia falsamente intelectualizada,
culta e politizada nos remete ao conceito de naufrágio político. Sem elaboração
de novas concepções políticas, nos vemos sem direção para as questões de ordem
social. No Brasil, assistimos práticas de combate ao status quo do Estado por
meio de grupos como os Black Blocks, mas que até o presente tais grupos se limitaram
a criar formas de badernas nas ruas, sem qualquer concepção consistente política.
Quanto aos pequenos partidos de esquerda no Brasil, estes ainda acreditam na
desordem para desestabilizar o sistema rumo a uma nova ordem política.
Além disto, ouve-se a classe média alta urbana do Rio e
de São Paulo a falar de seus descontentamentos a partir dos governos do PT. Tudo
vira culpa do PT. Gostaria de salientar que, por favor, não se trata de defender
o PT. O que pretendo dizer é da necessidade de apreendermos aquilo que é o
político, como grande beleza, para fazermos uma comparação com o título do filme
de Sorrentino. Daí os nossos blá-blá-blás, para usar uma expressão de Jep Gambardella,
se limitarem às reclamações ou discursos vazios que não nos ajuda a pensar a dinâmica
de novas concepções do viver social e político.
Um quinto ponto, que podemos ressaltar
no filme, é como adentrar na dimensão daquilo que é belo, mas que se encontra
escondido, trancado. No filme Stefano é
quem guarda as chaves dos palácios romanos, das últimas princesas, as quais se limitam
a jogar baralho entre elas. Stefano é aquele em que se tem confiança. Não por acaso
Ramona pergunta ingenuamente a Jep se Stefano é um porteiro. De forma singela,
Jep lhe fala: - Não diga isto. A ideia de confiança está no saber guardar de
Stefano, aquele que aparece como sábio, como protetor do belo, mesmo não havendo
mais ninguém para apreciá-lo. Ao proteger, Stefano resguarda o significado
daquilo que aparentemente se perdeu: a obra de arte como narração significativa da vida como beleza em sua originalidade.
É essa vida como beleza que Jep procura encontrar, mas que
só tem na sua imaginação ao olhar para o teto do seu quarto. O permanecer somente
na imaginação quanto à vida, faz Jep o personagem típico da nossa contemporaneidade:
ter o saber daquilo que se é impossível ser numa prática cotidiana. Deste modo,
Sorrentino traz à tona o tempo existencial da nossa contemporaneidade tanto
europeia, como brasileira no sentido da nossa fraqueza em relação à vida em
suas dimensões sociais, políticas, culturais e pessoais.
Por outro lado, Sorrentino ao apresentar ao longo do
filme como pano de fundo a religião faz como que haja para o espectador brasileiro
um estranhamento, pois para nós o vaticano não está perto. Não há um peso religioso
que nos prenda a ele como instituição. Neste aspecto Brasil e Itália estão em
tempos distintos. Parece que Sorrentino considera muito os arquétipos
religiosos. No entanto, a figura da irmã Maria que aparece no filme, levanta
uma problemática importante: as raízes.
É neste ponto, que podemos voltar à ideia de monumento
não como coisa, mas como processo significativo histórico cultural. Deste modo,
quando Irmã Maria diz que comer raízes é
importante, ela nos desperta para o problema de se ir às origens, às raízes culturais
que nos dão sustentação de identidade humana. Embora Irmã Maria seja
apresentada como figura arquetípica da religiosidade cristã, a questão que ela
traz não se vincula somente ao místico, mas ao nosso cotidiano, ao fundamento
do nosso cotidiano.
No filme é a frivolidade que ao mesmo tempo funda o
cotidiano burguês romano ao mesmo tempo impede que haja uma percepção do
significado de humano que se reflete na
arquitetura, nos monumentos, nas fontes, nas obras de arte da cidade de Roma.
Estando na vivência da frivolidade, Jep não percebe, por exemplo, que seu
vizinho é um estelionatário procurado pela polícia.
A sua relação com ele se dá no plano dos cortes dos ternos.
O único interesse de Jep no vizinho é a sua curiosidade para saber qual o
alfaiate que cortou seu terno. O vizinho em um tom superior responde a curiosidade
de Jep dizendo que o alfaiate que Jep gosta é inferior ao dele. E antes de ir
embora preso discursa (de sua janela que fica acima do terraço de Jap) que o
país não reconhece o seu trabalho, dando valor ao grupo que Jep pertence
intelectuais burgueses que não servem para nada.
Embora o vizinho não tenha estofo moral para criticar
o grupo social que Jep pertence, ele toca na raiz do problema
da sociedade italiana (que nós brasileiros deveríamos
prestar atenção). De um lado a questão da economia italiana, por outro lado, o término de concepção de
intelectualidade artística representada pelo grupo de Jep. É o amigo de Jep que
representa o fim dessa concepção de ser artista e intelectual. Ao recitar o seu
texto para a plateia em um teatro alugado por Jep, ele se dá conta que não tem mais
sentido querer ser autor. Não há como a arte fincar raízes em um ambiente
social e cultural por si só desenraizado.
Voltar às raízes é a solução para sair do processo de
esvaziamento cultural, mas que é impossível ir ao encontro delas. Daí no
discurso final de Jep dizer a razão porque só escreveu um livro, pois embora
ele compreenda as raízes da existência, daquilo que é originalmente belo, ele é
tomado pela frivolidade do mundo burguês romano. Consciente do seu próprio vazio
e do vazio que o cerca, Jep vive de truques, da ilusão (como a cena da girafa
que é somente virtual);
V.F.C. JEP: Finisce sempre
cosi. Com la morte. Prima, però, c’è stata la vita. Nascosta sotto il bla bla
bla.È tutto sedimentato sotto il chiacchiericcio e il rumore. Il silenzio e il
sentimento. L’emozione e la paura. Gli sparuti, incostanti sprazzi di bellezza.
E poi ló squallore
disgraziato e l’uomo miserabile. Tutto sepolto dalla coperta dell’imbarazzo
dello stare al mondo. Bla. Bla.Bla.
Altrove, c’è l’altrove. Io
non mi occupo dell’altrove. Dunque, che questo romanzo abbia inizio.
Il fondo, è solo un trucco.
Si, è solo un trucco.4
Sorrentino ao filmar A Grande Belezza volta às raízes do
cinema Italiano seja fazendo crítica social (Fellini) seja abordando a questão do
tédio (Antonioni). Cabe a nós termos a coragem de elaborar o caminho do que é ser
intelectual neste mundo de circularidades diversas.
ARTIGO
RECEBIDO EM 10/10/2014. PARECER DADO EM 15/11/2014
*
Professor do Programa de Pós-Graduação Stricto Senso em Educação, Arte e História
da Cultura na Universidade Presbiteriana Mackenzie.
NOTAS:
1 SORRENTINO, Paolo;
CONTARELLO, Umberto. La grande bellezza. Roma: Skira, 2013, p. 90.
2 SORRENTINO, Paolo;
CONTARELLO, Umberto. La grande bellezza. Roma: Skira, 2013, p. 52.
3 SORRENTINO, Paolo;
CONTARELLO, Umberto. La grande bellezza. Roma: Skira, 2013, p. 50-51.
4 SORRENTINO, Paolo;
CONTARELLO, Umberto. La grande bellezza. Roma: Skira, 2013, p. 217.
REFERÊNCIA:
ARAÚJO,
Paulo Roberto Monteiro de. A GRANDE
BELEZA OU A BELEZA SEM RAÍZES, OU BLÁ-BLÁ-BLÁ. In Fênix – Revista de História e Estudos Culturais Julho - Dezembro
de 2014. v. 11. ano XI. n. 2. ISSN: 1807-6971. Disponível em: <http://www.revistafenix.pro.br/PDF34/Dossie_Artigo_Paulo%20Roberto%20Monteiro%20de%20Araujo.pdf>.
Acesso em: 28 jun. 2017.