sexta-feira, 15 de janeiro de 2016

DOZE FACES DO GRAAL




Por Philippe Deschamps

O tema do Graal, ou o objeto que ele designa, tem sua ori­gem nas obras de Chrétien de Troyes e assume plenamente seu espaço na lenda do rei Artur e de seus cavaleiros. Esta saga foi escrita no século XII no Ocidente: isto para a história e para o conhecimento acadêmico. Porém, o apaixonado pelo assunto descobre cedo ou tarde sua natureza universal e intemporal. Noutras palavras, há múltiplos protótipos do Graal que induzem a pensar que se trata de um símbolo ligado àquilo que foi cha­mado de “a Tradição Primordial”. Aqui, reteremos voluntariamente doze deles.

Comecemos por aquilo a que devemos chamar de “Graal luciferino”. Alguns mitos gnósticos consideram o Graal das origens como uma taça talhada numa pedra de esmeralda caída da fronte ou da coroa de Lúcifer. De maneira simbólica, é possível visualizar essa pedra como uma espécie de terceiro olho, instrumento pelo qual o anjo destronado pretensamente se comunicaria com a Inteligência Cósmica. Segundo o fi­lósofo Jacob Boehme, esse Portador de Luz, que se torna o Satã da Bíblia, representava uma primeira imagem do Deus criador. Banido de sua posição preeminente, foi substituído pelo Adão que devia ocupar seu trono e, para aquilo que nos interessa, recuperar a famosa pedra de esmeralda. Tendo Adão fracassado na manutenção de seu papel e de seu lugar, este foi transmitido a personagens como Seth, Enoque ou Noé.

Segundo o Zend Avesta, o escrito sagrado dos zoroastristas, Yima foi o primeiro ho­mem a poder se comunicar com a Divindade. De acordo com a alegoria, ele pode ser comparado a uma espécie de Noé pois, ao passo que lhe anuncia uma catástrofe iminente, Ahura Mazda, o deus dos zoroastristas, lhe aconselha reunir os melhores dos homens e mulheres, um casal de cada animal e um espécime de cada planta. Ordena-lhe que os reúna num recinto a fim de lhes colocar a sal­vo da provação catastrófica que os aguarda. Yima possuía também um anel de ouro capaz de fazer a Terra crescer em caso de superpo­pulação – poder o qual ele usou três vezes, haja vista que nessa idade de ouro ninguém morria. A preocupação com a superpopulação não é, portanto, de hoje. Entretanto, não há mais anel mágico para resolvê-la.

Muito mais tarde, no começo do século XI, o poeta iraniano Firdoussi escreveu o Livro dos Reis. Ele relata a existência de um denominado Jamshid, geralmente identifi­cado com Yima. Ele explica que Jamshid, o maior rei da Terra, estava rodeado de uma luz e que possuía uma taça com sete anéis mágicos. A esse respeito, podemos ver uma relação com o ás de copas do tarô que, através de sete torreões, faz alusão a esses sete anéis. Esse recipiente, nosso segundo Graal, lhe permitia observar o universo. Esse “es­pelho do universo” era preenchido com um líquido que tornava imortal e, de fato, é dito que Jamshid teria vivido mil anos. Ele também dotava o seu possuidor de um poder de divinação. Durante os trezentos primeiros anos de seu reino, Jamshid reinou em paz e trouxe saúde e longevidade para o seio dos homens. Um dia, porém, seguindo os con­selhos de um servidor do mal, encheu-se de orgulho e esqueceu a fonte de todas as suas benesses: a própria divindade. Perdeu então o Farr, a luz da glória. O povo se revoltou con­tra ele, que foi morto num combate contra um sectário de Ahriman, o satã iraniano. Co­meçava então a era sombria da humanidade.

A Sirah, ou Tradição Islâmica, relata um diálogo entre o profeta Maomé e alguns judeus. Estes queriam colocar o profeta à prova e lhe perguntaram: “Quem foi o primeiro homem a introduzir o culto aos ídolos?” E Maomé respondeu claramente: “Foi Jamshid, pois apoderou-se da soberania sobre todo o universo [ou seja, a famosa taça]” Ele era de uma beleza extraordinária. Então Iblis, o satã dos muçulmanos, veio tentá-lo fazendo­-se passar por Deus. Jamshid, que queria ascender ao céu, fabricou, a conselho deste, cinco ídolos e lhes atribuiu o nome de seus lugares-tenentes. Segundo o Alcorão (surata Noé 22-24), esse culto aos ídolos conduziu ao Dilúvio. Com esse Jamshid/Yima, vemos que a posse da taça permite um exercício pacífi­co do poder. Inversamente, quando o poder ultrapassa seus limites, conduz a uma ruptura do equilíbrio cósmico e à perda do objeto sagrado. Dois temas universais são então tratados conjuntamente: a taça e o Dilúvio.

O Livro dos Reis, o Shah Nameh de Fir­doussi, reporta que após a desventura de Jamshid a taça não foi entretanto perdida. Ela passou pelas mãos de Kay Kosrou, oi­tavo e último rei da dinastia kayanida, à qual o místico persa Soravardhi faz alusão com os seguintes termos: “A taça, o espelho do universo, pertencia a Kay Kosrou. Nela, ele podia ler tudo o que desejasse, contem­plar as coisas ocultas e conhecer as coisas manifestas. É dito que a taça se encontrava num estojo atado por dez laços. Quando Kay Kosrou quis ver certo dia as coisas ocultas, ele desfez os laços. Quando todos estavam desfeitos, a taça se tornou invisível. Quando o estojo, lugar de sua Junção, foi reatado, a taça se tornou visível novamente”. Na reali­dade, o estojo representa o próprio homem.

O advento e a vida desse Kay Kosrou parecem muito com as peripécias vividas pela assembleia da Távola Redonda e, mais particularmente, com as de Percival o Galês. Assim como Percival, ao nascer, seu pai foi assassinado. Cresceu junto com uma viúva numa floresta. Ainda jovem, sentiu-se fasci­nado pela cavalaria. Muitas vezes fala como um sonso e não evoca suas origens. Porém, se engajará num combate contra o mal. Nada impede de se pensar que a aventura de Kay Kosrou tenha servido de protótipo iraniano para a de Percival. A versão do romance escrito por Wolfram von Eschenbach tem sua origem, segundo o autor, num manus­crito árabe descoberto em Toledo. A versão de Chrétien de Troyes interpretaria um texto descoberto na Terra Santa por Filipe da Alsácia, conde de Flandres. Para além da realidade histórica dessas afirmações, existe sim, portanto, um perfume de Oriente islâmico, até mesmo zoroastriano, que emanaria dos romances arturianos. Uma pequena informação complementar: o jogo de xadrez vem do Irã e foi introduzido na Europa no século XII. Nos romances artu­rianos, são numerosas as cenas em que se joga xadrez – jogo iniciático por excelência.

O quarto protótipo do Graal no qual nos deteremos é o Nartamonga, do povo Nartz. Os Nàrtz são os descendentes dos Sármatas, tribo ariana do começo da nossa era cuja origem geográfica se situa próximo ao Mar Cáspio. Os Ossetas modernos se reivindicam como sucessores longínquos desses povos. Os Nartz possuíam, portanto, essa taça peculiar chamada “Nartamonga” disputada pelos che­fes da tribo. E por uma razão evidente! Esse recipiente também possuía virtudes mágicas. Ele devia servir unicamente para a produção de alimento destinado aos heróis e lhes trazia inspiração. Finalmente, é o maior dos heróis e guerreiros Nartz, Batradz, que ob­tém o privilégio da guarda do Nartamonga. Através dessa lenda dos Nartz, a existência do símbolo fortíssimo da taça é colocada como sendo comum a toda a esfera indo-iraniana e aos povos que se lhe aparentam.

É dito que os Celtas teriam descendido também desses povos antigos. Diz-se dos deuses de seu ramo irlandês, os Tuatha dé Danann, que teriam vindo do Oriente, ou do Norte do mundo, ou ainda da Grécia. Três deles tinham por atributos os instrumentos apresentados a Percival no castelo do Graal: a espada, para o deus guerreiro ou rei Nuada; a lança, para o deus luminoso Lug (a cidade de Lyon, Lugdunum, é dedicada a Lug); e por fim o caldeirão, equivalente do Graal, para Dagda, o Deus druida. Esse caldeirão celta é o mesmo que é imortalizado por Panoramix numa célebre história em quadrinhos. Nós o retemos, portanto, como um quinto Graal, com mais facilidade ainda pelo fato de os historiadores considerarem hoje em dia que a origem dos romances arturianos se encontra nas lendas célticas. O Dagda era por vezes representado como um gigante dissoluto. Ele é frequentemente comparado com o deus gaulês Gargan, a partir do qual Rabelais concebeu seu pândego e enorme Gargântua. O caldeirão do Dagda tornava imortais os guerreiros mortos em combate quando estes eram imersos nele. Representava também a soberania e o arquétipo dos famosos caldei­rões de abundância das tradições populares. O caldeirão de Gundestrup, descoberto na Dinamarca pelos arqueólogos, é uma boa representação desse maravilhoso recipien­te. Além disso, alguns cientistas estudam seriamente hoje em dia os pontos comuns, ou até mesmo a origem comum, entre a cultura religiosa dos Celtas e a da antiga Índia. Deixemos agora a esfera ariano-céltica.

Mais próxima de uma influência judaico­-cristã, trataremos agora da personagem enigmática de Melquisedeque. Esse “rei de justiça”; conforme a tradução de melchi - sé­ - dech, aparece discretamente no Antigo Tes­tamento, mas sua importância real ou simbólica se revela inversamente proporcional à quantidade de suas aparições. Ele também é qualificado de “Rei de Salem”, ou seja, da Je­rusalém antiga – o termo salem significando “paz” (salam, entre os muçulmanos). Mais do que a cidade designada por esse termo, é o estado espiritual mais elevado que é indica­do por esse nome. Melquisedeque teria sido uma personagem de carne e osso ou o símbolo de um determinado nível da hierarquia universal? Sobre ele, Saulo de Tarso afirma, em sua Epístola aos Hebreus, que não tem pai, nem mãe, nem genealogia e que sua vida não tem começo e nem fim. No que toca o nosso assunto, retemos que esse rei partilhou o pão e o vinho com Abraão, que naquela ocasião recebe uma espécie de iniciação cujo traço é revelado por sua súbita mudança de nome. De Abraão ele se torna Abrahão. A adjunção da letra hebraica He se revela aqui de uma importância capital, uma vez que designa um novo estado de tomada de consciência. E naturalmente, ainda que o texto não o diga, o vinho foi consumido numa taça que representará o nosso sexto Graal. O que en­sina essa cena, tão breve na Bíblia, mas que, paradoxalmente, dá tanto pano para manga?

A prática da Eucaristia da igreja cristã possuía provavelmente uma origem bem anterior ao Cristianismo e ao Judaísmo, e Paulo certamente sabia disso, pois faz de Jesus um sacerdote-rei da Ordem de Melquisedeque. A propósito do próprio Davi, declara-se o seguinte no salmo 110-4: “O Eterno o jurou, e disso não se arrependerá: és para sempre sa­crificador à maneira de Melquisedeque”. Essa fórmula é por vezes traduzida como: “És para sempre sacerdote segundo a Ordem de Melqui­sedeque”. Existiria, portanto, uma Ordem invi­sível dita “de Melquisedeque”, a qual possuiria por instrumento fundamental uma taça de soberania cujas origens seriam anteriores ao Cristianismo e ao Judaísmo. Salientemos que Melquisedeque era o grande sacerdote do “altíssimo” El Elyon, e que esse El Elyon era de fato um deus fenício. Esse “detalhe” sugere a ideia de uma religião universal que recobre todas as religiões locais e temporais.

Prossigamos, porém, com a pesquisa, pois outra personagem importante da Bíblia, que parece ter passado completamente des­percebida sob este ângulo, também possuía uma taça de virtudes prodigiosas: José é um dos doze filhos de Jacó, ele próprio filho de Isaque, o segundo rebento de Abrahão. Ele nasceu de Raquel, a amada esposa de Jacó, embora esta fosse estéril. Seu nascimento deveu-se, portanto, a uma intervenção divina. José é vendido e deixado para morrer por seus irmãos ciumentos, que queriam se livrar dele. De certa forma, ele se torna um apátrida rejeitado por seu povo e levado ao Egito. Lá, José se vê aprisionado. Contudo, ele possui um dom excepcional – o do “verdadeiro sonho”: Ele interpreta os sonhos do faraó, sobretudo o famoso episódio das “vacas gordas” e das “vacas magras”. Isso lhe valerá o cargo de ministro do faraó. Anos mais tarde, sucede uma fome que aflige os Hebreus. Os irmãos de José vêm ao Egito em busca de alimento. Eles reencontram o irmão, mas não o reconhecem. Ele conhece suas identidades e deseja zombar deles. Faz com que seus sacos de grãos sejam enchidos e coloca uma taça de prata no conteúdo do saco do irmão mais novo. Então, acusa-os de roubo. Eles, naturalmente, clamam sua inocência. José, “em quem estava o espírito de Deus”, tendo se tornado primeiro-ministro do faraó, pede que sejam abertos os sacos e, fingindo surpresa, lhes diz: “Por que roubaram a taça que uso para adivinhar?” (Gen 44,4 a 17). A taça de José será o sétimo Graal que reteremos.

Associamos a faculdade particular de José de utilizar o sonho com a existência dessa taça de divinação. Torna-se então possível deduzir disso que esta taça simboliza a Alma Universal e os poderes proporcionados pela faculdade particular desenvolvida pelos místicos de estabelecer um contato com ela. Possuir a taça pressupõe, portanto, adotar uma atitude de disponibilidade e de abertura particular diante das forças invisíveis na fonte da Criação. E o que aparece aqui cada vez mais claro é a existência, relatada por meio da alegoria, de um místico rei do mundo cuja identidade aparente foi conhecida pelos no­mes de Yima, Jamshid, Kay Kosrou, Melqui­sedeque, Abrahão, José, Davi, Jesus, José de Arimateia e, por fim, Artur. A essa lista po­deríamos acrescentar nomes aceitos pela Tradição Esotérica, tais como Hermes, Pitágoras e Salomão. O rei deve possuir em seu arsenal a faculdade de se comunicar com a Sabedo­ria Divina, simbolizada pela taça sagrada.

Essa taça, associada à tradicional partilha do pão e do vinho, pertence provavelmente ao patrimônio da Tradição Primordial, em sua versão inicialmente médio-oriental e posteriormente ocidental. O pão, de fato, na sua forma chata, é um dos mais antigos alimentos produzidos pela humanidade. O vinho, por sua vez, também é uma das bebi­das mais antigas já elaboradas. Ele se torna até mesmo o símbolo daquilo que existe de melhor – o nec plus ultra, a quintessência filtrada e várias vezes destilada. Partilhar o pão e o vinho se tornava então o símbolo de uma atitude tendendo a reforçar os elos da coletividade e da civilização humana, e até mesmo de uma capacidade de entrar em contato com o seu inconsciente coletivo. Esse rito, cujo valor se perde na mediocri­dade em nossa sociedade de superconsumo e de abundância, servia de argamassa social e para consolidar a paz entre os homens.

Se por um lado Chrétien de Troyes não revela verdadeiramente a natureza do Graal, a versão cisterciense por sua vez a associa claramente, através da lenda de José de Arimateia cuja fonte pode se encontrar no Evangelho de Nicodemos ou nos Atos de Pilatos, à taça da ceia, cerimônia no decur­so da qual o Mestre Jesus partilhou o vinho com seus discípulos. A esse respeito, eis o que declara o psicanalista C. G. Jung em sua obra As Raízes da Consciência, “O vinho fortifica, mas noutro sentido que não o de um alimento. Ele estimula e rejubila o coração do homem graças a uma determinada substância volátil que se costuma chamar de ‘espírito’. Diferentemente da água inofensiva, ele constitui uma essência que inspira, pois é habitado por um espírito ou um deus que engendra o êxtase da ebriedade... o pão re­presenta o meio de existência física; o vinho o meio de existência espiritual.” Especificamos aqui que o pão integral fermentado teria uma natureza próxima à do corpo humano.

De fato, esse vinho, assim como o das bodas de Cana do Evangelho de São João, conduz diretamente aos mistérios dionisíacos e às beberagens prodigiosas evocadas tanto por Rabelais quanto pelos Hindus através do Soma, ou ainda pelos Gregos e o “néctar dos deuses” Rabelais, no quinto livro do seu Pan­tagruel, realiza, através de um conto tão ex­travagante quanto iniciático, a síntese dessas noções. Ele conduz os heróis de seus romances, no desfecho de suas aventuras, ao templo da “diva garrafa”. No centro do santuário iluminado por uma lâmpada perpétua se en­contra justamente um afresco que representa o combate de Dionísio contra os indianos. Ele está acompanhado pelo deus Pã e seus Bacantes. Na ocasião dessa visita ao templo, no qual eles descem os degraus “tetrádicos”, os heróis de Rabelais recebem uma iniciação que se encerra com o consumo do conteúdo da “diva”, ou divina, “garrafa”, o que é forço­samente uma alusão ao nosso nono Graal. E o doutor Rabelais, sob o pseudônimo Alco­fribas Nasier, distila conselhos sutis: “Não se deve beber o vinho do vulgar, pois do vinho divino se torna.1” ; ou ainda: “No vinho está a verdade. Beba, imagine e diga que para Deus nada é impossível.”; e por fim, de uma maneira toda poética, na forma de uma canção: “No vinho se encontra a última libertação.”

A guerra de Dionísió na Índia nos leva a evocar o contato entre a Grécia e aquelas pa­ragens distantes. Esse encontro simboliza efe­tivamente a substituição do vinho, enquanto bebida sagrada, pelo Soma dos indianos. Este Soma era consumido pelos brâmanes e oferecido em sacrifício ·aos deuses. Assim como no Cristianismo o vinho e o pão são identificados como sendo o sangue e o corpo do Cristo, Soma, mais do que um líquido, era na realidade um deus da chuva e da Lua. Quando a Lua cresce, diz-se que Soma, ou a ener­gia vital, flui para a Terra como numa taça. Soma e o seu conteúdo, nosso décimo Graal, cujo equivalente iraniano é haoma, permite ressaltar a identidade estreita que existe entre a Divindade e o estado de consciência induzido pelo consumo de Amrita, outro qualificativo da beberagem da imortalidade.

O décimo primeiro Graal, do qual tratare­mos, é certamente o mais universal de todos. O bávaro Wolfram von Eschenbach escreve no século XIII uma adaptação do romance de Chrétien de Troyes. Este, por sua vez, não disse grande coisa a respeito da natureza do Graal. Wolfram tentará fazê-lo em seu lugar. Declara ter recebido suas informações de um misterioso provençal, Mestre Kyot, que des­cobre um manuscrito sobre o assunto escrito em árabe. O autor do texto é um judeu de nome Flegetanis, cujo pai era adorador de um bezerro: seria esta uma referência à Era de Touro? Esse Flegetanis, sendo astrólogo, vive nas constelações, e o nome do Graal está inscrito claramente entre as estrelas. Segun­do ele, um séquito de anjos o havia posto na Terra antes de retornar para as estrelas. E são cristãos desconhecidos, e depois os Templários, os seus depositários. Kyot, personagem provavelmente inventada, se pôs a procurar esses seres desconhecidos que possuíam as mais altas virtudes humanas.

E ele explica: trata-se da dinastia mítica angevina à qual pertenciam Gahmuret e seu filho Parzival. Ora, do ponto de vista político, foram os condes de Anjou – os verdadeiros – e seus descendentes que financiaram a maior parte dos romances arturianos. Os condes angevinos tinham relação com a Or­dem do Templo: Ricardo Coração de Leão e René d’Anjou teriam pertencido à Milícia do Cristo; mas que buscavam eles transmitir através da lenda do Graal? Eis o que escreve Wolfram a respeito do objeto sagrado: “Ele é chamado ‘lapis exillis’ [a pedra do exílio]. Por sua virtude, a fênix se consome, se torna cinza e renasce de suas cinzas. Torna-se mais bela do que antes. O Graal protege homens e mulheres do envelhecimento. Na sexta-feira santa uma pomba desce sobre essa pedra e deposita nela uma hóstia. Essa presença lhe confere seus poderes e uma mensagem. Ela pode então prodigalizar toda espécie de ali­mento aos Templários ligados à sua guarda.

Para Wolfram, o Graal é, portanto, uma pe­dra descida sobre a Terra. Aqueles que, antes dos homens, foram os primeiros associados à sua guarda foram os anjos que permane­ceram neutros no combate que opôs Deus e Lúcifer. Eles não tomaram partido, não fi­cando nem do lado do bem e nem do lado do mal, e Wolfram chega a se perguntar se Deus não os teria perdoado. Desde então, a pedra chama aqueles que estão destinados ao seu serviço. O Graal de Wolfram aparece então como algo bastante curioso. Ele parece trans­cender as noções religiosas clássicas e moralizadoras veiculando uma determinada ideia de pureza. Tudo se passa como se Wolfram houvesse querido indicar uma via capaz de transcender o discurso das religiões oficiais, tomando cuidado para não ser taxado de he­rege. Flegetanis é um judeu que se interessa pela tradição astrológica dos magos. Gahmuret, o pai de Parzival, já teve um filho, Firefiz, com uma moura da Espanha. O meio-irmão de Parzival é, portanto, um árabe. A via indicada parece estar, portanto, diretamente ligada à Tradição Primordial, entendida como a garantia que Deus deixou ao coração de todo homem de boa vontade, para além de sua filiação religiosa ou mesmo étnica.

O último tipo de Graal que iremos exa­minar pertence ao fim dos tempos. O Apo­calipse de São João evoca de fato sete anjos detentores de sete taças. O texto sugere que essas taças dão testemunho da onipresença e da onipotência da Divindade, não mais conforme o modelo do Criador e do Recon­ciliador, mas segundo o destruidor. Essas taças contêm de fato sete pragas e o vinho da cólera de Deus. É com esse Graal escatoló­gico final, o qual podemos ligar ao do prin­cípio, a mítica pedra de esmeralda caída da fronte de Lúcifer, que se encerra este périplo através dessas doze faces do Graal, ou “outros Graals”. O objetivo desse estudo consistia em mostrar a universalidade do tema. Sem dúvida, outras pesquisas poderiam ser feitas na África, na América ou noutras partes ... Em todos os casos abordados, esse símbolo permanece sendo portador de diversas ver­dades esotéricas profundas sobre as quais cada um deve meditar inabalavelmente.

Nota: 1. Aqui temos um jogo de palavras sofrivelmente traduzível em português, cuja sonoridade em francês não é equiparável: “Il ne faut pas beire le vin du vulgaire, car de vin, divin on devient”. (N. do T.)

FONTE: DESCHAMPS, Philippe. Doze faces do Graal. In O Rosacruz. Curitiba: AMORC-GLP, 2015. p. 24-32.

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