Por Philippe
Deschamps
O tema do Graal, ou o objeto que ele designa, tem sua origem
nas obras de Chrétien de Troyes e assume plenamente seu espaço na lenda do rei
Artur e de seus cavaleiros. Esta saga foi escrita no século XII no Ocidente:
isto para a história e para o conhecimento acadêmico. Porém, o apaixonado pelo
assunto descobre cedo ou tarde sua natureza universal e intemporal. Noutras
palavras, há múltiplos protótipos do Graal que induzem a pensar que se trata de
um símbolo ligado àquilo que foi chamado de “a Tradição Primordial”. Aqui,
reteremos voluntariamente doze deles.
Comecemos por aquilo a que devemos chamar de “Graal luciferino”. Alguns mitos
gnósticos consideram o Graal das origens como uma taça talhada numa pedra de esmeralda
caída da fronte ou da coroa de Lúcifer. De maneira simbólica, é possível
visualizar essa pedra como uma espécie de terceiro olho, instrumento pelo qual
o anjo destronado pretensamente se comunicaria com a Inteligência Cósmica.
Segundo o filósofo Jacob Boehme, esse Portador de Luz, que se torna o Satã da
Bíblia, representava uma primeira imagem do Deus criador. Banido de sua posição
preeminente, foi substituído pelo Adão que devia ocupar seu trono e, para
aquilo que nos interessa, recuperar a famosa pedra de esmeralda. Tendo Adão
fracassado na manutenção de seu papel e de seu lugar, este foi transmitido a
personagens como Seth, Enoque ou Noé.
Segundo o Zend Avesta, o escrito sagrado dos
zoroastristas, Yima foi o primeiro homem a poder se comunicar com a Divindade.
De acordo com a alegoria, ele pode ser comparado a uma espécie de Noé pois, ao
passo que lhe anuncia uma catástrofe iminente, Ahura Mazda, o deus dos
zoroastristas, lhe aconselha reunir os melhores dos homens e mulheres, um casal
de cada animal e um espécime de cada planta. Ordena-lhe que os reúna num
recinto a fim de lhes colocar a salvo da provação catastrófica que os aguarda.
Yima possuía também um anel de ouro capaz de fazer a Terra crescer em caso de
superpopulação – poder o qual ele usou três vezes, haja vista que nessa idade
de ouro ninguém morria. A preocupação com a superpopulação não é, portanto, de
hoje. Entretanto, não há mais anel mágico para resolvê-la.
Muito mais tarde, no começo do século XI, o poeta
iraniano Firdoussi escreveu o Livro dos
Reis. Ele relata a existência de um denominado Jamshid, geralmente identificado
com Yima. Ele explica que Jamshid, o maior rei da Terra, estava rodeado de uma
luz e que possuía uma taça com sete anéis mágicos. A esse respeito, podemos ver
uma relação com o ás de copas do tarô que, através de sete torreões, faz alusão
a esses sete anéis. Esse recipiente, nosso segundo Graal, lhe permitia observar
o universo. Esse “espelho do universo” era preenchido com um líquido que
tornava imortal e, de fato, é dito que Jamshid teria vivido mil anos. Ele
também dotava o seu possuidor de um poder de divinação. Durante os trezentos
primeiros anos de seu reino, Jamshid reinou em paz e trouxe saúde e longevidade
para o seio dos homens. Um dia, porém, seguindo os conselhos de um servidor do
mal, encheu-se de orgulho e esqueceu a fonte de todas as suas benesses: a
própria divindade. Perdeu então o Farr,
a luz da glória. O povo se revoltou contra ele, que foi morto num combate
contra um sectário de Ahriman, o satã iraniano. Começava então a era sombria
da humanidade.
A Sirah, ou Tradição Islâmica, relata um diálogo entre o
profeta Maomé e alguns judeus. Estes queriam colocar o profeta à prova e lhe
perguntaram: “Quem foi o primeiro homem a
introduzir o culto aos ídolos?” E Maomé respondeu claramente: “Foi Jamshid, pois apoderou-se da soberania
sobre todo o universo [ou seja, a famosa taça]” Ele era de uma beleza
extraordinária. Então Iblis, o satã dos muçulmanos, veio tentá-lo fazendo-se
passar por Deus. Jamshid, que queria ascender ao céu, fabricou, a conselho
deste, cinco ídolos e lhes atribuiu o nome de seus lugares-tenentes. Segundo o
Alcorão (surata Noé 22-24), esse culto aos ídolos conduziu ao Dilúvio. Com esse
Jamshid/Yima, vemos que a posse da taça permite um exercício pacífico do
poder. Inversamente, quando o poder ultrapassa seus limites, conduz a uma ruptura
do equilíbrio cósmico e à perda do objeto sagrado. Dois temas universais são
então tratados conjuntamente: a taça e o Dilúvio.
O Livro dos Reis,
o Shah Nameh de Firdoussi, reporta
que após a desventura de Jamshid a taça não foi entretanto perdida. Ela passou
pelas mãos de Kay Kosrou, oitavo e último rei da dinastia kayanida, à qual o
místico persa Soravardhi faz alusão com os seguintes termos: “A taça, o espelho do universo, pertencia a
Kay Kosrou. Nela, ele podia ler tudo o que desejasse, contemplar as coisas
ocultas e conhecer as coisas manifestas. É dito que a taça se encontrava num
estojo atado por dez laços. Quando Kay Kosrou quis ver certo dia as coisas
ocultas, ele desfez os laços. Quando todos estavam desfeitos, a taça se tornou
invisível. Quando o estojo, lugar de sua Junção, foi reatado, a taça se tornou
visível novamente”. Na realidade, o estojo representa o próprio homem.
O advento e a vida desse Kay Kosrou parecem muito com as
peripécias vividas pela assembleia da Távola Redonda e, mais particularmente,
com as de Percival o Galês. Assim como Percival, ao nascer, seu pai foi
assassinado. Cresceu junto com uma viúva numa floresta. Ainda jovem, sentiu-se
fascinado pela cavalaria. Muitas vezes fala como um sonso e não evoca suas origens.
Porém, se engajará num combate contra o mal. Nada impede de se pensar que a
aventura de Kay Kosrou tenha servido de protótipo iraniano para a de Percival.
A versão do romance escrito por Wolfram von Eschenbach tem sua origem, segundo
o autor, num manuscrito árabe descoberto em Toledo. A versão de Chrétien de
Troyes interpretaria um texto descoberto na Terra Santa por Filipe da Alsácia,
conde de Flandres. Para além da realidade histórica dessas afirmações, existe
sim, portanto, um perfume de Oriente islâmico, até mesmo zoroastriano, que
emanaria dos romances arturianos. Uma pequena informação complementar: o jogo
de xadrez vem do Irã e foi introduzido na Europa no século XII. Nos romances
arturianos, são numerosas as cenas em que se joga xadrez – jogo iniciático por
excelência.
O quarto protótipo do Graal no qual nos deteremos é o Nartamonga, do povo Nartz. Os Nàrtz são
os descendentes dos Sármatas, tribo ariana do começo da nossa era cuja origem
geográfica se situa próximo ao Mar Cáspio. Os Ossetas modernos se reivindicam
como sucessores longínquos desses povos. Os Nartz possuíam, portanto, essa taça
peculiar chamada “Nartamonga” disputada pelos chefes da tribo. E por uma razão
evidente! Esse recipiente também possuía virtudes mágicas. Ele devia servir
unicamente para a produção de alimento destinado aos heróis e lhes trazia
inspiração. Finalmente, é o maior dos heróis e guerreiros Nartz, Batradz, que
obtém o privilégio da guarda do Nartamonga. Através dessa lenda dos Nartz, a
existência do símbolo fortíssimo da taça é colocada como sendo comum a toda a
esfera indo-iraniana e aos povos que se lhe aparentam.
É dito que os Celtas teriam descendido também desses
povos antigos. Diz-se dos deuses de seu ramo irlandês, os Tuatha dé Danann, que
teriam vindo do Oriente, ou do Norte do mundo, ou ainda da Grécia. Três deles
tinham por atributos os instrumentos apresentados a Percival no castelo do
Graal: a espada, para o deus guerreiro ou rei Nuada; a lança, para o deus
luminoso Lug (a cidade de Lyon, Lugdunum,
é dedicada a Lug); e por fim o caldeirão, equivalente do Graal, para Dagda, o
Deus druida. Esse caldeirão celta é o mesmo que é imortalizado por Panoramix
numa célebre história em quadrinhos. Nós o retemos, portanto, como um quinto
Graal, com mais facilidade ainda pelo fato de os historiadores considerarem
hoje em dia que a origem dos romances arturianos se encontra nas lendas
célticas. O Dagda era por vezes representado como um gigante dissoluto. Ele é
frequentemente comparado com o deus gaulês Gargan, a partir do qual Rabelais
concebeu seu pândego e enorme Gargântua. O caldeirão do Dagda tornava imortais
os guerreiros mortos em combate quando estes eram imersos nele. Representava
também a soberania e o arquétipo dos famosos caldeirões de abundância das
tradições populares. O caldeirão de Gundestrup, descoberto na Dinamarca pelos
arqueólogos, é uma boa representação desse maravilhoso recipiente. Além disso,
alguns cientistas estudam seriamente hoje em dia os pontos comuns, ou até mesmo
a origem comum, entre a cultura religiosa dos Celtas e a da antiga Índia.
Deixemos agora a esfera ariano-céltica.
Mais próxima de uma influência judaico-cristã, trataremos
agora da personagem enigmática de Melquisedeque. Esse “rei de justiça”;
conforme a tradução de melchi - sé - dech, aparece discretamente no Antigo Testamento, mas sua
importância real ou simbólica se revela inversamente proporcional à quantidade
de suas aparições. Ele também é qualificado de “Rei de Salem”, ou seja, da Jerusalém
antiga – o termo salem significando “paz”
(salam, entre os muçulmanos). Mais do
que a cidade designada por esse termo, é o estado espiritual mais elevado que é
indicado por esse nome. Melquisedeque teria sido uma personagem de carne e
osso ou o símbolo de um determinado nível da hierarquia universal? Sobre ele,
Saulo de Tarso afirma, em sua Epístola
aos Hebreus, que não tem pai, nem mãe, nem genealogia e que sua vida não
tem começo e nem fim. No que toca o nosso assunto, retemos que esse rei
partilhou o pão e o vinho com Abraão, que naquela ocasião recebe uma espécie de
iniciação cujo traço é revelado por sua súbita mudança de nome. De Abraão ele
se torna Abrahão. A adjunção da letra hebraica He se revela aqui de uma importância capital, uma vez que designa
um novo estado de tomada de consciência. E naturalmente, ainda que o texto não
o diga, o vinho foi consumido numa taça que representará o nosso sexto Graal. O
que ensina essa cena, tão breve na Bíblia, mas que, paradoxalmente, dá tanto
pano para manga?
A prática da Eucaristia da igreja cristã possuía provavelmente
uma origem bem anterior ao Cristianismo e ao Judaísmo, e Paulo certamente sabia
disso, pois faz de Jesus um sacerdote-rei da Ordem de Melquisedeque. A
propósito do próprio Davi, declara-se o seguinte no salmo 110-4: “O Eterno o jurou, e disso não se
arrependerá: és para sempre sacrificador à maneira de Melquisedeque”. Essa
fórmula é por vezes traduzida como: “És
para sempre sacerdote segundo a Ordem de Melquisedeque”. Existiria,
portanto, uma Ordem invisível dita “de
Melquisedeque”, a qual possuiria por instrumento fundamental uma taça de
soberania cujas origens seriam anteriores ao Cristianismo e ao Judaísmo. Salientemos
que Melquisedeque era o grande sacerdote do “altíssimo” El Elyon, e que esse El
Elyon era de fato um deus fenício. Esse “detalhe” sugere a ideia de uma
religião universal que recobre todas as religiões locais e temporais.
Prossigamos, porém, com a pesquisa, pois outra personagem
importante da Bíblia, que parece ter passado completamente despercebida sob
este ângulo, também possuía uma taça de virtudes prodigiosas: José é um dos
doze filhos de Jacó, ele próprio filho de Isaque, o segundo rebento de Abrahão.
Ele nasceu de Raquel, a amada esposa de Jacó, embora esta fosse estéril. Seu
nascimento deveu-se, portanto, a uma intervenção divina. José é vendido e
deixado para morrer por seus irmãos ciumentos, que queriam se livrar dele. De
certa forma, ele se torna um apátrida rejeitado por seu povo e levado ao Egito.
Lá, José se vê aprisionado. Contudo, ele possui um dom excepcional – o do “verdadeiro
sonho”: Ele interpreta os sonhos do faraó, sobretudo o famoso episódio das “vacas
gordas” e das “vacas magras”. Isso lhe valerá o cargo de ministro do faraó.
Anos mais tarde, sucede uma fome que aflige os Hebreus. Os irmãos de José vêm
ao Egito em busca de alimento. Eles reencontram o irmão, mas não o reconhecem.
Ele conhece suas identidades e deseja zombar deles. Faz com que seus sacos de
grãos sejam enchidos e coloca uma taça de prata no conteúdo do saco do irmão mais
novo. Então, acusa-os de roubo. Eles, naturalmente, clamam sua inocência. José,
“em quem estava o espírito de Deus”,
tendo se tornado primeiro-ministro do faraó, pede que sejam abertos os sacos e,
fingindo surpresa, lhes diz: “Por que
roubaram a taça que uso para adivinhar?” (Gen 44,4 a 17). A taça de José
será o sétimo Graal que reteremos.
Associamos a faculdade particular de José de utilizar o sonho
com a existência dessa taça de divinação. Torna-se então possível deduzir disso
que esta taça simboliza a Alma Universal e os poderes proporcionados pela
faculdade particular desenvolvida pelos místicos de estabelecer um contato com
ela. Possuir a taça pressupõe, portanto, adotar uma atitude de disponibilidade
e de abertura particular diante das forças invisíveis na fonte da Criação. E o
que aparece aqui cada vez mais claro é a existência, relatada por meio da
alegoria, de um místico rei do mundo cuja identidade aparente foi conhecida
pelos nomes de Yima, Jamshid, Kay Kosrou, Melquisedeque, Abrahão, José, Davi,
Jesus, José de Arimateia e, por fim, Artur. A essa lista poderíamos
acrescentar nomes aceitos pela Tradição Esotérica, tais como Hermes, Pitágoras
e Salomão. O rei deve possuir em seu arsenal a faculdade de se comunicar com a
Sabedoria Divina, simbolizada pela taça sagrada.
Essa taça, associada à tradicional partilha do pão e do
vinho, pertence provavelmente ao patrimônio da Tradição Primordial, em sua
versão inicialmente médio-oriental e posteriormente ocidental. O pão, de fato,
na sua forma chata, é um dos mais antigos alimentos produzidos pela humanidade.
O vinho, por sua vez, também é uma das bebidas mais antigas já elaboradas. Ele
se torna até mesmo o símbolo daquilo que existe de melhor – o nec plus ultra, a quintessência filtrada
e várias vezes destilada. Partilhar o pão e o vinho se tornava então o símbolo
de uma atitude tendendo a reforçar os elos da coletividade e da civilização humana,
e até mesmo de uma capacidade de entrar em contato com o seu inconsciente
coletivo. Esse rito, cujo valor se perde na mediocridade em nossa sociedade de
superconsumo e de abundância, servia de argamassa social e para consolidar a
paz entre os homens.
Se por um lado Chrétien de Troyes não revela
verdadeiramente a natureza do Graal, a versão cisterciense por sua vez a
associa claramente, através da lenda de José de Arimateia cuja fonte pode se
encontrar no Evangelho de Nicodemos ou nos Atos de Pilatos, à taça da ceia,
cerimônia no decurso da qual o Mestre Jesus partilhou o vinho com seus
discípulos. A esse respeito, eis o que declara o psicanalista C. G. Jung em sua
obra As Raízes da Consciência, “O vinho
fortifica, mas noutro sentido que não o de um alimento. Ele estimula e rejubila
o coração do homem graças a uma determinada substância volátil que se costuma
chamar de ‘espírito’. Diferentemente da água inofensiva, ele constitui uma
essência que inspira, pois é habitado por um espírito ou um deus que engendra o
êxtase da ebriedade... o pão representa o meio de existência física; o vinho o
meio de existência espiritual.” Especificamos aqui que o pão integral
fermentado teria uma natureza próxima à do corpo humano.
De fato, esse vinho, assim como o das bodas de Cana do
Evangelho de São João, conduz diretamente aos mistérios dionisíacos e às
beberagens prodigiosas evocadas tanto por Rabelais quanto pelos Hindus através
do Soma, ou ainda pelos Gregos e o “néctar dos deuses” Rabelais, no quinto
livro do seu Pantagruel, realiza,
através de um conto tão extravagante quanto iniciático, a síntese dessas
noções. Ele conduz os heróis de seus romances, no desfecho de suas aventuras,
ao templo da “diva garrafa”. No
centro do santuário iluminado por uma lâmpada perpétua se encontra justamente
um afresco que representa o combate de Dionísio contra os indianos. Ele está
acompanhado pelo deus Pã e seus Bacantes. Na ocasião dessa visita ao templo, no
qual eles descem os degraus “tetrádicos”, os heróis de Rabelais recebem uma
iniciação que se encerra com o consumo do conteúdo da “diva”, ou divina, “garrafa”,
o que é forçosamente uma alusão ao nosso nono Graal. E o doutor Rabelais, sob
o pseudônimo Alcofribas Nasier, distila conselhos sutis: “Não se deve beber o vinho do vulgar, pois do vinho divino se torna.1”
; ou ainda: “No vinho está a verdade.
Beba, imagine e diga que para Deus nada é impossível.”; e por fim, de uma
maneira toda poética, na forma de uma canção: “No vinho se encontra a última libertação.”
A guerra de Dionísió na Índia nos leva a evocar o contato
entre a Grécia e aquelas paragens distantes. Esse encontro simboliza efetivamente
a substituição do vinho, enquanto bebida sagrada, pelo Soma dos indianos. Este
Soma era consumido pelos brâmanes e oferecido em sacrifício ·aos deuses. Assim
como no Cristianismo o vinho e o pão são identificados como sendo o sangue e o
corpo do Cristo, Soma, mais do que um líquido, era na realidade um deus da
chuva e da Lua. Quando a Lua cresce, diz-se que Soma, ou a energia vital, flui
para a Terra como numa taça. Soma e o seu conteúdo, nosso décimo Graal, cujo
equivalente iraniano é haoma, permite
ressaltar a identidade estreita que existe entre a Divindade e o estado de
consciência induzido pelo consumo de Amrita,
outro qualificativo da beberagem da imortalidade.
O décimo primeiro Graal, do qual trataremos, é
certamente o mais universal de todos. O bávaro Wolfram von Eschenbach escreve
no século XIII uma adaptação do romance de Chrétien de Troyes. Este, por sua
vez, não disse grande coisa a respeito da natureza do Graal. Wolfram tentará
fazê-lo em seu lugar. Declara ter recebido suas informações de um misterioso
provençal, Mestre Kyot, que descobre um manuscrito sobre o assunto escrito em
árabe. O autor do texto é um judeu de nome Flegetanis, cujo pai era adorador de
um bezerro: seria esta uma referência à Era de Touro? Esse Flegetanis, sendo
astrólogo, vive nas constelações, e o nome do Graal está inscrito claramente
entre as estrelas. Segundo ele, um séquito de anjos o havia posto na Terra
antes de retornar para as estrelas. E são cristãos desconhecidos, e depois os
Templários, os seus depositários. Kyot, personagem provavelmente inventada, se
pôs a procurar esses seres desconhecidos que possuíam as mais altas virtudes humanas.
E ele explica: trata-se da dinastia mítica angevina à
qual pertenciam Gahmuret e seu filho Parzival. Ora, do ponto de vista político,
foram os condes de Anjou – os verdadeiros – e seus descendentes que financiaram
a maior parte dos romances arturianos. Os condes angevinos tinham relação com a
Ordem do Templo: Ricardo Coração de Leão e René d’Anjou teriam pertencido à
Milícia do Cristo; mas que buscavam eles transmitir através da lenda do Graal?
Eis o que escreve Wolfram a respeito do objeto sagrado: “Ele é chamado ‘lapis exillis’ [a pedra do exílio]. Por sua virtude, a fênix se consome, se
torna cinza e renasce de suas cinzas. Torna-se mais bela do que antes. O Graal
protege homens e mulheres do envelhecimento. Na sexta-feira santa uma pomba
desce sobre essa pedra e deposita nela uma hóstia. Essa presença lhe confere
seus poderes e uma mensagem. Ela pode então prodigalizar toda espécie de alimento
aos Templários ligados à sua guarda.”
Para Wolfram, o Graal é, portanto, uma pedra descida
sobre a Terra. Aqueles que, antes dos homens, foram os primeiros associados à
sua guarda foram os anjos que permaneceram neutros no combate que opôs Deus e
Lúcifer. Eles não tomaram partido, não ficando nem do lado do bem e nem do
lado do mal, e Wolfram chega a se perguntar se Deus não os teria perdoado.
Desde então, a pedra chama aqueles que estão destinados ao seu serviço. O Graal
de Wolfram aparece então como algo bastante curioso. Ele parece transcender as
noções religiosas clássicas e moralizadoras veiculando uma determinada ideia de
pureza. Tudo se passa como se Wolfram houvesse querido indicar uma via capaz de
transcender o discurso das religiões oficiais, tomando cuidado para não ser
taxado de herege. Flegetanis é um judeu que se interessa pela tradição astrológica
dos magos. Gahmuret, o pai de Parzival, já teve um filho, Firefiz, com uma
moura da Espanha. O meio-irmão de Parzival é, portanto, um árabe. A via
indicada parece estar, portanto, diretamente ligada à Tradição Primordial,
entendida como a garantia que Deus deixou ao coração de todo homem de boa
vontade, para além de sua filiação religiosa ou mesmo étnica.
O último tipo de Graal que iremos examinar pertence ao
fim dos tempos. O Apocalipse de São João evoca de fato sete anjos detentores
de sete taças. O texto sugere que essas taças dão testemunho da onipresença e
da onipotência da Divindade, não mais conforme o modelo do Criador e do Reconciliador,
mas segundo o destruidor. Essas taças contêm de fato sete pragas e o vinho da
cólera de Deus. É com esse Graal escatológico final, o qual podemos ligar ao
do princípio, a mítica pedra de esmeralda caída da fronte de Lúcifer, que se
encerra este périplo através dessas doze faces do Graal, ou “outros Graals”. O
objetivo desse estudo consistia em mostrar a universalidade do tema. Sem
dúvida, outras pesquisas poderiam ser feitas na África, na América ou noutras
partes ... Em todos os casos abordados, esse símbolo permanece sendo portador
de diversas verdades esotéricas profundas sobre as quais cada um deve meditar
inabalavelmente.
Nota:
1. Aqui temos um jogo de palavras sofrivelmente traduzível em português, cuja
sonoridade em francês não é equiparável: “Il
ne faut pas beire le vin du vulgaire, car de vin, divin on devient”. (N. do
T.)
FONTE:
DESCHAMPS, Philippe. Doze faces do
Graal. In O Rosacruz. Curitiba: AMORC-GLP, 2015. p. 24-32.
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