Há
maçons que "enchem a boca" para dizer que Mozart era membro da Ordem,
mas será que sabem que a obra maçônica magna do compositor trata da iniciação
de uma personagem do sexo masculino e outra do sexo feminino? Seria apenas o
casamento do rei e da rainha dentro de cada um de nós, ou, além disso, uma
defesa dos ritos mistos? Para mim, este fato nada tira do brilho dessa ópera;
pelo contrário, acrescenta-lhe. Vamos conferir um pouco dessa história no texto
a seguir.
CAGLIOSTRO
E A FLAUTA MÁGICA
Stage set for Mozart's Magic Flute (1815), by
Karl Friedrich Schinkel (1781 -1841).
Alessandro Cagliostro (1743-1795)
Wolfgang Amadeus Mozart (1756-1791)
Por
Melanie Braun, SRC*
Publicado na revista O
Rosacruz. Verão 2011, n. 275. Curitiba: AMORC, 2011. p. 32-38
A
ópera, gênero mais familiar para nós em sua roupagem italiana (Verdi, Puccini),
tem uma tradição que remonta a um pouto cantes do ano de 1600. No final do
século XVIII, vários tipos de ópera eram populares e geralmente se dividiam em
dois grupos: as “sérias” e as “cômicas”.
A
ópera cômica, que era popular na França e na Itália do século XVIII, também se
expandiu para os países germânicos na forma de Singspiel, uma ópera popular que
envolvia tanto o canto quanto o diálogo falado. Um dos mais famosos
compositores de Singspiel foi
Wolfgang Amadeus Mozart (1756-1791), cuja produção incluía várias óperas deste
gênero, sendo que a mais bem conhecida é A
Flauta Mágica. Mozart queria escrever uma ópera mágica alemã, e A Flauta Mágica atingiu este objetivo.
Ela foi concluída no último ano de sua vida, 1791, quando ele tinha 35 anos de
idade.
Estátua de Cagliostro
Maçonaria
Um
aspecto da vida de Mozart que é essencial para se compreender sua ópera é sua
afiliação à Maçonaria. Mozart tinha conhecimento das ordens maçônicas desde
muito cedo na vida. Contudo, apenas em 1784 é que ele foi iniciado, na Loja Zur Wohltatigkeit (“Caridade”), em
Viena. Apesar de ter sido criado como católico, Mozart parecia ser capaz de
resolver quaisquer diferenças de pensamento e compôs música litúrgica
devocional paralelamente a várias peças maçônicas que foram apresentadas em
diversas Lojas durante sua vida. Foi finalmente iniciado ao Terceiro Grau
maçônico, o de Mestre, um ponto comum de conquista na época.
Mozart
estava mais inclinado aos elementos místicos da Maçonaria do que ao seu
racionalismo ético. Infelizmente, é difícil acompanhar a visão de Mozart
através de documentos, pois sua viúva e seu segundo marido censuraram a
correspondência de Mozart, removendo todos os traços de sua afiliação maçônica.
Mas existem evidências de que a música de Mozart procurava refletir o espírito
místico, e particularmente as palavras de algumas de suas músicas maçônicas são
profundamente tocantes, refletindo os aspectos mais profundos da Maçonaria.
Muito
tem sido escrito sobre o caráter da Maçonaria, mas uma influência sentida no
século XVIII tem base neste assunto. Durante aquele período houve um surgimento
de interesse em ritos iniciáticos do Egito antigo e a introdução do simbolismo
egípcio em alguns rituais maçônicos. A Loja de Mozart pratica a “Estrita
Observância”, um rito estabelecido em 1754 que dava grande atenção às
influências dos Cavaleiros Templários. Foi descrita como uma mistura de
“Simbolismo Maçônico, práticas alquímicas e tradições Rosacruzes.1”
Selo de Cagliostro
Entra
Cagliostro
Por
que essa influências do Egito antigo surgiu nessa época específica? Um etudo cuidadoso
das fontes esotéricas revela algumas ligações interessantes. Vamos tentar
traçar uma linha que leva a vários acontecimentos ligados ao surgimento de A
Flauta Mágica a uma figura proeminente (e infelizmente com alguma notoriedade):
o místico conhecido como Conde Cagliostro. Sua vida é cercada de mistério e ele
foi muito difamado devido a suas práticas ocultas.
Muita
controvérsia cerca a verdadeira identidade de Cagliostro, mas o que se sabe é
que ele era contemporâneo de Mozart, provavelmente um discípulo do alquimista
Althotas e dizia-se que tinha sido iniciado por Saint-Germain, que, por sua
vez, era um místico Rosacruz de grande sutileza espiritual e clareza
intelectual2. Esta tradição é importante porque ilustra a influência
da Ordem Rosacruz, que passou então por Cagliostro e teve algum peso em A Flauta Mágica.
Cagliostro
criou um “Rito Maçônico Egípcio” que usava um simbolismo iniciático do Egito
antigo, assim como formas maçônicas existentes. Sua grande popularidade como
curador e conselheiro não poderia deixar de produzir algum efeito em outros
rituais maçônicos da época. Existe uma tradição esotérica que diz que Mozart e
Cagliostro tinham conhecimento um do outro. Um irmão maçom, que também era
músico, relatou amplamente, nas lojas, sobre uma cura que ele teve através de
Cagliostro, um acontecimento que muito provavelmente chegaria aos ouvidos de
Mozart. Mais tarde, relatou-se que Cagliostro tinha aceitado uma casa em
Wahring, um bairro de prestígio de Viena3. Esses contatos podem
muito bem ter estimulado a curiosidade de Mozart a potno de ele querer conhecer
Cagliostro ou, pelo menos, admirá-lo à distância4. Esta ligação não
é feita claramente em nenhuma das fontes exotéricas que se referem à Flauta Mágica, mas em uma lenda
esotérica, de onde surge a possibilidade de eles terem se conhecido.
Montagem de A Flauta Mágica no Teatro Degollado, Guadalajara, México
A
composição da ópera
Com
esse contexto em mente, vamos voltar para a ópera em si. Como é que esses fatos
e tradições se relacionam com sua composição? Mozart queria escrever uma ópera
maçônica e cumprir a meta de compor uma ópera mágica alemã ao mesmo tempo.
Embora houvesse muitas óperas baseadas em contos de fadas em destaque na ópera,
apresentando uma variedade de instrumentos “mágicos”, parece que Mozart usou
esse formato apenas como veículo para difundir um simbolismo mais profundo.
Há
vários níveis de percepção do significado da ópera. O público desinformado vê e
ouve uma ópera-resgate Singspiel alemã, cheia de incidentes cômicos, músicas e
efeitos dramáticos maravilhosos. O público pouco informado, conhecendo a
finalidade óbvia da ópera, tem consciência de algum simbolismo iniciático
incluído – como o das provas pelo fogo e pela água. Mas é apenas quando atinge
o nível interno de interpretação que você percebe o grande número de atos e
objetos simbólicos em cada cena. O filósofo e dramaturgo alemão Goethe, que era
maçom e místico, declarou sobre A Flauta Mágica: “É suficiente que a multidão
tenha prazer em ver o espetáculo; mas, ao mesmo tempo, seu significado elevado
não vai escapar aos iniciados.”5
O
próprio livreto (texto) da ópera foi escrito por Emanuel Schikaneder e
possivelmente por algum outro colaborador desconhecido. A história em si se
baseia em várias fontes do período: um romance esotérico, Sethos, por Jean Terrason; tramas de óperas egípcias mais antigas,
por exemplo Thamos, Rei do Egito (para
a qual Mozart escreveu a música incidental); e contos de fada alemães, estes já
muitas vezes contendo simbolismo iniciático. Isso tudo defende e ilustra o
combate das forças das trevas contra a Luz e a final aniquilação das forças do
mal, com o grand finale no Templo do
Sol.
O
simbolismo de Cagliostro – como indicado em seu rito egípcio6 –
incluía uma oposição e união final do Sol com a Luz... a meta da iniciação. O
Sol é o elemento positivo e a Lua é o elemento negativo. Isso se reflete na
união do céu com a terra, do masculino com o feminino, do dia com a noite e
outras polaridades. Outros símbolos encontrados no rito de Cagliostro eram a
serpente, que aparecia no alto de seu brasão; a acácia um tipo de árvore
significando a Matéria Prima; o pentagrama; e o gabinete ou Câmara de Reflexão,
uma gruta ou caixa onde o candidato era deixado antes do ritual. Muitas vezes
uma pirâmide era um dos símbolos nessa câmara. Columbas também eram usadas nas
cerimônias de Cagliostro.
A
ópera simboliza um conflito entre dois mundos. Não se trata apenas de um
conflito entre o bem e o mal, mas envolve muitas referências sutiãs a outras
polaridades. Cada um dos personagens de uma ópera tem um significado que se
liga diretamente ao resultado final. Sugere-se que a história da ópera seja
lida de fontes disponíveis para que o que se segue fique mais claro.
Mozart, interpretado por Tom Hulce no
filme Amadeus (1984), de Milos Forman.
Montagem da Flauta Mágica no filme Amadeus
(1984), de Milos Forman.
Os
personagens principais
Os
nomes de Tamino e Pamina, personanges principais, significam “consagrado a Min
ou Deus”, em egípcio. Eles são os dois candidatos para a iniciação, que
finalmente passam pelos testes do fogo e da água. A Rainha da Noite representa
o lado negativo ou mau. Ela procura destruir o sacerdote da Luz e vê em Tamino
um agente que pode realizar isso. Sempre aparece à noite e acompanhado da
escuridão e do trovão. Monostatos, o Mouro, representa a pura existência
física. Seu nome em grego significa “o isolado”. Ele sequestra Pamina antes de
seu resgate e iniciação.
Sarastro
é representado como um mago mau no início da ópera. Talvez este personagem seja
a evidência mais forte de uma ligação com Cagliostro. Primeiro, a má reputação
de Cagliostro foi atribuída por suas assim chamadas práticas “mágicas” e muitos
acharam que ele era perigoso. Embora o nome Sarastro provavelmente tenha sido
tirado de Zoroastro, parece bastante com Cagliostro para sugerir que o modelo
tenha sido ele. Muitos acham que Sarastro representava um maçom famoso chamado
Ignaz Von Born, mas Born não era nem mágico nem um alto sacerdote. Cagliostro
se dizia o Alto Sacerdote de Ísis, e toda a cena iniciática da Flauta Mágica nomeia Ísis e Osíris como
os deuses a quem os inciados devem apelar. Finalmente, Sarastro demonstra ser o
Sacerdote do Sol e não o mal, como se acreditava, o que novamente aponta para a
verdade referente à pessoa de Cagliostro. A esposa de Cagliostro, ou a “Grande
Senhora”, também era conhecida como “Rainha de Sheba”. Na ópera, Sarastro e a
Rainha de Noite pareciam ter sido casados em algum momento.
Papageno
(da palavra alemã Papagei, “papagaio”)
se assemelha ao Louco das cartas do Tarô. Ele acrescenta relevos cômicos à
ópera. Sendo uma criatura de penas, também representa o elemento “ar”. Significa
a humanidade “comum”, indigna da iniciação. Ele tenta, mas não consegue passar
por ela. Quer, acima de tudo, ser um bom marido e uma pessoa “normal”.
Elementos
simbólicos
É impossível,
dentro dos limites deste artigo, detalhar todo o simbolismo da ópera e mostrar
como ele está relacionado tanto com a história quanto a possiveis influências
rosacruzes que possam por intermédio de Cagliostro a Mozart através da
Maçonaria, quer direta ou indiretamente. Alguns dos símbolos mais importantes
ainda estão disponíveis, e estudos adicionais da ópera por interessados vão revelar
a riqueza das influências esotéricas, assim como uma referência constante aos
quatro elementos ou princípios: água, fogo, terra e ar.
A serpente,
encontrada no alto do brasão de Cagliostro, assim como no bastão do caduceu de
Hermes Mercúrio, tem uma história de simbolismo inicático e era usada nos ritos
egípcios e nas histórias bíblicas. No início da ópera, uma enorme serpente é
morta sendo dividida em três partes enquanto Tamino está desfalecido. Esse desfalecimento
– e outras perdas de sentidos que acontecem no decorrer da ópera a candidatos à
iniciação – basicamente simboliza a morte do velho e o renascimento para uma
nova vida como resultado da iniciação.
A flauta
mágica, simbolizando o elemento “ar”, é usada apenas para superar obstáculos,
não para destruí-los. Sua história, recontada mais tarde na ópera, diz que ela
foi esculpida em madeira pelo pai de Pamina numa noite de tempestade (água e
escuridão) reprelta de sons de trovoes (terra) e de relâmpagos (fogos). Assim,
a própria flauta sintetiza todo o simbolismo iniciático.
Antes
da iniciação em si, os candidatos são libertados da flauta e dos sinos mágicos
por um momento, como acontece no ritual maçônico quando o candidato é “despido
de seus metais”7, significando coisas profanas que não devem ser
trazidas para o templo. Tamino e Papageno são então levaods para uma caverna
subterrânea, que corresponde ao “Gabinete de Reflexão”, para meditar sobre a
iniciação que aconteceria. Eles são obrigados a fazer silêncio e Tamino deve
rejeitar Pamina quando ela aparece, não falando com ela. No ritual de
Cagliostro, o silêncio é a primeira instruçlão no Gabinete de Reflexão, e a
virtude do celibato é louvada.
A rosa,
além de ter significados rosacruzes e outros significados antigos, é o símbolo
da iniciação maçônica. No rito egípcio, um lema recorrente é: “Eu acreito na
Rosa”. Pamina está deitada, adormecida num jardim de rosas; este é seu “adormecimento”
antes da inciação, que ela interpreta no elemento “terra”. Também fica sugerido
que os três espíritos que levam Tamino para o templo devem ser carregados numa
cesta decorada com rosas.
União
dos opostos
As provas
do fogo e da água são graficamente ilustradas na ópera. Tamino e Pamina de fato
caminham por uma gruta e superam os elementos. Depois, eles se apresentam no
Templo do Sol em vestes sacerdotais. Aqui, a mulher é igual ao homem: o sol (o
reino de Sarastro) e a lua (o reio da Rainha) estão unidos espiritualmente. O rito
de Cagliostro era o único ritual maçônico que admitia igualmente homens e
mulheres. Essa união, através da inciação do masculino com o feminino, estava
na base da filosofia dos ritos egípcios. Apenas através do casamento do sol com
a lua é que a verdadeira iniciação poderia ser atingida. As vestes sacerdotais
usadas por ambos provavalmente devem sua aparência ao ritual de Cagliostro8.
Mozart,
além de supervisionar o libreto, proporcionou a música e o gênio inspirador,
que realmente traduz o simboloismo visual em som. Também usou numerologia
musical (através das relações de tonalidade e de padrões rítmicos, por exemplo,
na representação dos números 3 e 8) e ilustrou as três batidas na porta da Loja
pelos acordes rítmicos que surgem em pontos chaves na ópera.
O uso
desses símbolos, quando vistos dentro da história da ópera, tem uma semelhança
com os rituais de iniciação influenciados pelo rito de Cagliostro e a criação
dessas referências esotéricas torna A Flauta Mágica, um trabalho que trata do
lado interno da humanidade, como os símbolos alquímicos e alegóricos dos
primeiros rosacruzes. A influência do rito egípcio, descendente de Cagliostro e
Saint-Germain, sem dúvida liga a ópera de Mozart aos mistérios antigos, pois
nos fala de uma nova vida.
Notas:
1 – Jacques Chailley. The Magic Flute Unveiled (1971), trad. por H. Weinstock (Inner
Traditions, 1992) p. 63;
2 – Manly P. Hall (ed.) The Most Holy Trinosophia of Saint-Germain (Philosophical Research
Society), Introdução;
3 – Paul Nettl. Mozart and Masonry. Nova York, Da Capo, 1970, p. 42;
4 – Outras referências à tradição de
que Mozart e Cagliostro se conheciam são encontradas em The Soul of Lilith, um romance de Marie Corelli, e em um artigo que
surgiu alguns anos atrás em El Rosacruz, revista rosacruz espanhola por H.
Rios, intitulado Cagliostro, o Vento do Sul;
5 – Citado em Chailly, op. cit. p. 7
6 – Vide Conde de Cagliostro, Secret Ritual of Egyptian Rite Freemansonry
(reimpressão, Kessinger Publishing, 1992); também a série da AMORC de monografias
suplementares sobre Cagliostro. Para maiores informações de base: artigo de
Ralph M. Lewis intitulado Cagliostro, Man
of Mystery, publicado no Rosicrucian
Digest LXII, n. 3 (março de 1984), pp. 24-...;
7 – Ritual de Cagliostro mencionado acima,
p. 166 Chailley, op. cit., p. 77; e
8 – Chailley. op. cit., p. 77.
*
SRC significa Soror Rosacruz, membro feminino da Antiga e Mística Ordem da
Rosacruz.
Excelente e rara publicação de cunho educacional e instrutivo que, faz realmente enriquecer os conhecimentos maçônicos que excedem ao grau "3" (mestre maçon)
ResponderExcluirTFA
Josuel Farias