domingo, 13 de outubro de 2024

GENEALOGIA DO FANATISMO

 


Por Emil Cioran

 

Em si mesma, toda ideia é neutra ou deveria sê-lo; mas o homem a anima, projeta nela suas chamas e suas demências; impura, transformada em crença, insere-se no tempo, toma a forma de acontecimento: a passagem da lógica à epilepsia está consumada... Assim nascem as ideologias, as doutrinas e as farsas sangrentas.

Idólatras por instinto, convertemos em incondicionados os objetos de nossos sonhos e de nossos interesses. A história não passa de um desfile de falsos Absolutos, uma sucessão de templos elevados a pretextos, um aviltamento do espírito ante o Improvável. Mesmo quando se afasta da religião, o homem permanece submetido a ela; esgotando-se em forjar simulacros de deuses, adota-os depois febrilmente: sua necessidade de ficção, de mitologia, triunfa sobre a evidência e o ridículo. Sua capacidade de adorar é responsável por todos os seus crimes: o que ama indevidamente um deus obriga os outros a amá-lo, na espera de exterminá-los se se recusam. Não há intolerância, intransigência ideológica ou proselitismo que não revelem o fundo bestial do entusiasmo. Que perca o homem sua faculdade de indiferença: torna-se um assassino virtual; que transforme sua ideia em deus: as consequências são incalculáveis. Só se mata em nome de um deus ou de seus sucedâneos: os excessos suscitados pela deusa Razão, pela ideia de nação, de classe ou de raça são parentes dos da Inquisição ou da Reforma. As épocas de fervor se distinguem pelas façanhas sanguinárias. Santa Teresa só podia ser contemporânea dos autos de fé e Lutero do massacre dos camponeses. Nas crises místicas, os gemidos das vítimas são paralelos aos gemidos do êxtase... patíbulos, calabouços e masmorras só prosperam à sombra de uma fé - dessa necessidade de crer que infestou o espírito para sempre. O diabo empalidece comparado a quem dispõe de uma verdade, de sua verdade. Somos injustos com os Neros ou com os Tibérios: eles não inventaram o conceito de herético: foram apenas sonhadores degenerados que se divertiam com os massacres. Os verdadeiros criminosos são os que estabelecem uma ortodoxia no plano religioso ou político, os que distinguem entre o fiel e o cismático.

No momento em que nos recusamos a admitir o caráter intercambiável das ideias, o sangue corre... Sob as resoluções firmes ergue-se um punhal; os olhos inflamados pressagiam o crime. Jamais o espírito hesitante, afligido pelo hamletismo, foi pernicioso: o princípio do mal reside na tensão da vontade, na inaptidão para o quietismo, na megalomania prometeica de uma raça que se arrebenta de tanto ideal, que explode sob suas convicções e que, por haver-se comprazido em depreciar a dúvida e a preguiça  vícios mais nobres do que todas as suas virtudes , embrenhou-se em uma via de perdição, na história, nesta mescla indecente de banalidade e apocalipse... Nela as certezas abundam: suprima-as e suprimirá sobretudo suas consequências: reconstituirá o paraíso. O que é a Queda senão a busca de uma verdade e a certeza de havê-la encontrado, a paixão por um dogma, o estabelecimento de um dogma? Disso resulta o fanatismo  tara capital que dá ao homem o gosto pela eficácia, pela profecia e pelo terror , lepra lírica que contamina as almas, as submete, as tritura ou as exalta... Só escapam a ela os céticos (ou os preguiçosos e os estetas), porque não propõem nada, porque  verdadeiros benfeitores da humanidade  destroem os preconceitos e analisam o delírio. Sinto-me mais seguro junto de um Pirro do que de um São Paulo, pela razão de que uma sabedoria de boutades é mais doce do que uma santidade desenfreada. Em um espírito ardente encontramos o animal de rapina disfarçado; não poderíamos defender-nos demasiado das garras de um profeta... Quando elevar a voz, seja em nome do céu, da cidade ou de outros pretextos, afaste-se dele: sátiro de nossa solidão, não perdoa que vivamos aquém de suas verdades e de seus arrebatamentos; quer fazer-nos compartilhar de sua histeria, de seu bem, impô-la a nós e desfigurar-nos. Um ser possuído por uma crença e que não procurasse comunicá-la aos outros é um fenômeno estranho à terra, onde a obsessão da salvação torna a vida irrespirável. Olhe à sua volta: por toda parte larvas que pregam: cada instituição traduz uma missão; as prefeituras têm seu absoluto como os templos: a administração, com seus regulamentos  metafísica para uso de macacos... Todos se esforçam por remediar a vida de todos; aspiram a isso até os mendigos, inclusive os incuráveis: as calçadas do mundo e os hospitais transbordam de reformadores. A ânsia de tornar-se fonte de acontecimentos atua sobre cada um como uma desordem mental ou uma maldição intencional. A sociedade é um inferno de salvadores! O que Diógenes buscava com sua lanterna era um indiferente.

Basta-me ouvir alguém falar sinceramente de ideal, de futuro, de filosofia, ouvi-lo dizer "nós" com um tom de segurança, invocar os "outros" e sentir-se seu intérprete, para que o considere meu inimigo. Vejo nele um tirano fracassado, quase um carrasco, tão odioso quanto os tiranos e os carrascos de alta classe. É que toda fé exerce uma forma de terror, ainda mais temível quando os "puros" são seus agentes. Suspeita-se dos espertos, dos velhacos, dos farsantes; no entanto, não poderíamos atribuir-lhes nenhuma das grandes convulsões da história: não acreditando em nada, não vasculham nossos corações, nem nossos pensamentos mais íntimos; abandonam-nos à nossa indolência, ao nosso desespero ou à nossa inutilidade; a humanidade deve a eles os poucos momentos de prosperidade que conheceu: são eles que salvam os povos que os fanáticos torturam e que os "idealistas" arruínam. Sem doutrinas, só possuem caprichos e interesses, vícios complacentes, mil vezes mais suportáveis que os estragos provocados pelo despotismo dos princípios; porque todos os males da vida provêm de uma "concepção da vida". Um homem político completo deveria aprofundar-se nos sofistas antigos e tomar aulas de canto; e de corrupção...

O fanático é incorruptível: se mata por uma ideia, pode igualmente morrer por ela; nos dois casos, tirano ou mártir, é um monstro. Não existem seres mais perigosos do que os que sofreram por uma crença: os grandes perseguidores se recrutam entre os mártires cuja cabeça não foi cortada. Longe de diminuir o apetite de poder, o sofrimento o exaspera; por isso o espírito sente-se mais à vontade na companhia de um fanfarrão do que na de um mártir; e nada o repugna tanto como este espetáculo onde se morre por uma ideia... Farto do sublime e de carnificinas, sonha com um tédio provinciano em escala universal, com uma História cuja estagnação seria tal que a dúvida representaria um acontecimento e a esperança, uma calamidade...

 

REFERÊNCIA:
CIORAN, E. M. Breviário da decomposição. Tradução de José Thomaz Brum.  Rio de Janeiro: Rocco, 1995. p. 11-14.

sexta-feira, 4 de outubro de 2024

BRASIL - EDUCAÇÃO, EMPREGO E INFORMAÇÃO

 


Violência nas escolas tem aumento de 50% em 2023

 

Das 20 metas do Plano Nacional de Educação, só 4 foram ao menos parcialmente cumpridas

 

IBGE: 9,3 milhões de brasileiros ainda são analfabetos, a grande maioria com mais de 40 anos

 

03 em cada 10 brasileiros é considerado analfabeto funcional

13% dos analfabetos funcionais em nível elementar alcançam o ensino superior
03% dos analfabetos funcionais em nível rudimentar chegaram à faculdade

 

Governo agora diz que cai o número de jovens que não estudam, não trabalham nem procuram emprego

 

47% dos brasileiros evitam consumir notícias, diz “Reuters”...

 

Relatório da Reuters


Acesso em: 04 out. 2024.

VERDADEIRO EPOPTA

 


Por Emil Cioran

 

Toda experiência capital é nefasta: as camadas da existência carecem de espessura; quem as escava, arqueólogo do coração e do ser, encontra-se, ao cabo de suas investigações, ante profundidades vazias. Em vão terá saudades do ornamento das aparências.

Eis por que os Mistérios antigos, pretensas revelações dos segredos últimos, não nos legaram nada em matéria de conhecimento. Sem dúvida, os iniciados estavam obrigados a não transmitir nada. No entanto, é inconcebível que em tão grande número não se tenha encontrado um só tagarela; o que há de mais contrário à natureza humana que tal obstinação no segredo? O que acontece é que não havia segredos; havia ritos e estremecimentos. Uma vez afastados os véus, o que podiam descobrir senão abismos sem importância? Só há iniciação ao nada  e ao ridículo de estar vivo.

... E eu sonho com uma Elêusis de corações desiludidos, com um Mistério claro, sem deuses e sem as veemências da ilusão.

 

REFERÊNCIA:
CIORAN, E. M. Breviário da decomposição. Tradução de José Thomaz Brum.  Rio de Janeiro: Rocco, 1995. p. 20-21.

domingo, 22 de setembro de 2024

NÃO SOMOS NADA

 



CÓMO DESENAMORARSE DE LA VIDA

 




O FIM DA AÇÃO COMUNICATIVA

 


Por Byung-Chul Han

 

No universo pós-factual das tribos digitais, a opinião não tem mais relação alguma com os fatos. Desse modo, prescinde de toda e qualquer racionalidade. Não é nem criticável, nem necessita de fundamentação. Quem se compromete com ela, contudo, recebe uma sensação de pertencimento. O discurso é substituído, portanto, pela crença e pelo voto de fé. Fora da área de cada tribo, então, há apenas inimigos – os outros, afinal – que devem ser combatidos. O tribalismo atual, que pode ser observado não apenas na direita, mas também na política identitária de esquerda, divide e polariza a sociedade. Faz da identidade um escudo ou uma fortaleza que rechaça toda outridade. A tribalização progressiva da sociedade ameaça a democracia. Leva a uma ditadura da identidade e da opinião tribalista que carece de toda racionalidade comunicativa.

A comunicação tem se tornado hoje cada vez menos discursiva, à medida que lhe escapa cada vez mais a dimensão do outro. A sociedade decai em identidades inconciliáveis sem alteridade. Em vez do discurso, tem lugar uma guerra de identidades. A sociedade perde, com isso, o comum [Gemeinsame], o espírito público [Gemeinsinn]. Não ouvimos mais o outro de maneira atenta. Ouvir atentamente é um ato político, à medida que só com ele as pessoas formam uma comunidade e se tornam capazes de discursar. Ele promove um nós. A democracia é uma comunidade da escuta atenta. A comunicação digital como comunicação sem comunidade destrói a política da escuta atenta. Só ouvimos ainda, então, a nós mesmos falar. Isso seria o fim da ação comunicativa.

 

REFERÊNCIA:
HAN, Byung-Chul. Infocracia: digitalização e a crise da democracia. Tradução de Gabriel S. Philipson. Petrópolis: Vozes, 2022. p. 61-62.

segunda-feira, 9 de setembro de 2024

“DEUS QUER ASSIM!”

 



Por Pierre Bourdieu

 

Em uma sociedade dividida em classes, a estrutura dos sistemas de representações e práticas religiosas próprias aos diferentes grupos ou classes, contribui para a perpetuação e para a reprodução da ordem social (no sentido de estrutura das relações estabelecidas entre os grupos e as classes) ao contribuir para consagrá-la, ou seja, sancioná-la e santificá-la. Tal sucede porque no momento mesmo em que ela se apresenta oficialmente como una e indivisa, esta estrutura se organiza em relação a duas posições polares, a saber: 1) os sistemas de práticas e de representações (religiosidade dominante) tendentes a justificar a hegemonia das classes dominantes; 2) os sistemas de práticas e de representações (religiosidade dominada) tendentes a impor aos dominados um reconhecimento da legitimidade da dominação fundada no desconhecimento do arbitrário da dominação dos modos de expressão simbólicos da dominação (por exemplo, o estilo de vida bem como a religiosidade das classes dominantes), contribuindo, desta maneira, para o reforço simbólico da representação dominada do mundo político e de ethos da resignação e da renúncia diretamente inculcado pelas condições de existência. Em outros termos, trata-se de reforçar simbolicamente a propensão para medir as esperanças pelas possibilidades inscritas nestas condições de existência, por intermédio de técnicas de manipulação simbólica de aspirações tão diversas (embora convergentes) como o deslocamento das aspirações e conflitos através da compensação e da transfiguração simbólica (promessa da salvação) ou a transmutação do destino em escolha (exaltação do ascetismo).

 

REFERÊNCIA:
BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. Sergio Miceli (introdução, organização e seleção). 8. ed. São Paulo: Perspectiva, 2015. p. 52-53.

DA ILUSÃO, A DESOLAÇÃO

 


Por Montesquieu
  
CARTA 118
 
USBEK AO MESMO
 
 

O que há de singular é que essa América, que recebe todos os anos tantos novos habitantes, está deserta e não tira proveito das perdas contínuas da África. Esses escravos, que são transferidos para outro clima, morrem aos milhares; os trabalhos nas minas a que são destinados tanto os nativos como os estrangeiros, as exalações maléficas que delas efluem, o mercúrio que deve ser usado continuamente, os destrói sem retorno.

Não há nada de tão extravagante como fazer perecer um número incontável de homens para tirar do fundo da terra ouro e prata; esses metais, em si mesmos totalmente inúteis, e que só são riquezas porque foram escolhidos para serem símbolos.

 
 

De Paris, último dia da lua de Shahban, 1718.

 
  
REFERÊNCIA:
MONTESQUIEU. Cartas Persas. v. II. Tradução de Antônio Geraldo da Silva. Coleção Grandes Obras do Pensamento Universal, n. 47. São Paulo: Editora Escala, 2006. p. 282.

terça-feira, 13 de agosto de 2024

SAGRADO NÃO-BINÁRIO? O CONCEITO DE PSIQUE ANDRÓGINA NA REFORMULAÇÃO DO DEBATE DE GÊNERO NO SAGRADO FEMININO

 
 

Por Clarissa de Franco e Eduardo Meinberg de Albuquerque Maranhão Fº
 
Resumo
 

O foco desse artigo é o debate de gênero, com possibilidades conciliatórias entre os Estudos de Gênero e a Psicologia Analítica. Utilizamos como campo o Sagrado Feminino e suas tensões conceituais sobre o ser mulher diante de algumas propostas feministas, já que os círculos sagrados de mulheres se apoiam na perspectiva dos arquétipos, animus e anima e têm utilizado tais conceitos de modo a reforçar o aspecto essencialista sobre o feminino. Embora as concepções iniciais de Jung sobre o tema reflitam sua época, uma leitura atenta de sua obra e de pós-junguianxs leva-nos à compreensão de que sua proposta carrega uma subversão das polaridades de gênero. Com a teoria de integração de polaridades e o politeísmo psíquico, os conceitos de animus e anima ganham uma perspectiva que foge ao dualismo binário e caminha para a androginia e não-binariedade de gênero.

 

REFERÊNCIA:
Clarissa de Franco e Eduardo Meinberg de Albuquerque Maranhão Fº. Sagrado Não-Binário? O conceito de psique andrógina na reformulação do debate de gênero no Sagrado Feminino. Mandrágora, v. 25, n. 2, 2019, p. 127-151. DOI:10.15603/2176-0985/mandragora.v25n2p127-151

  

LINK PARA DOWNLOAD: https://core.ac.uk/reader/270208160

sexta-feira, 9 de agosto de 2024

AS EMOÇÕES COMO O MOTUS DAS AÇÕES MORAIS EM RELAÇÃO AO MEIO AMBIENTE

 
 

Por Eugênia Ribeiro Teles e Sérgio de Farias Lopes

 
Resumo

Esse artigo tem por objetivo argumentar em favor da hipótese de que as emoções, mais especificamente a empatia e a compaixão, são elementos fundamentais nas tomadas de decisão e ações em relação ao meio ambiente. Elas são essenciais por possibilitarem uma aproximação da natureza, derrogando, assim, o distanciamento histórico antrópico, bem como por favorecer a emersão de um sentimento de pertença ambiental. Tanto o sentimento de aproximação como o de pertencimento são importantes para ações morais baseadas em uma ética ambiental ecocêntrica, visto que a visão antropocêntrica presente nas éticas tradicionais tem levado o ser humano a praticar ações que possuem consequências degradantes e destrutivas no cômputo global e, principalmente, para o equilíbrio dos ecossistemas e de toda a biosfera. Diante disso, urgem reflexões buscando encontrar novos paradigmas relacionais que evidenciem o valor intrínseco do meio ambiente.

 
REFERÊNCIA:
TELES, Eugênia; FARIAS LOPES, Sérgio. As emoções como o motus das ações morais em relação ao meio ambiente. Revista Instante, v. 5, n. 2, p. 30-58, 2024.
 

Recuperado de https://revista.uepb.edu.br/revistainstante/article/view/2697