domingo, 14 de julho de 2024

CLEMENCE ISAURE

  


  

Por Julie Scott, SRC

  

Quem foi Clemence Isaure?

O nome Clemence significa clemência ou misericórdia e Isaure significa Ísis de ouro, ou Ísis Dourada. Várias fontes descrevem Clemence Isaure como uma pessoa real, que viveu no Território de Oc no final dos anos 1400 e no começo dos anos 1500, cuja beleza e talento eram raros e inspiradores. Outros dizem que ela era uma personagem fictícia criada para perpetuar as tradições femininas dos tempos antigos.

De acordo com a lenda, depois da morte de seu amado trovador, que a enaltecia com as belas canções e a quem ela adorava, Clemence Isaure fez um voto de castidade e silêncio. No entanto, antes de fazer isso, ela fez um donativo à cidade de Toulouse para restaurar os concursos de poesia da Gai Savoir, uma sociedade poética estabelecida em 1323 por meio de um novo grupo chamado de Jeux Floraux.

Clemence Isaure simbolizava a nobre ação, beleza e sabedoria inspiradas pela poesia. Acima de tudo, ela representava a perpetuação dos antigos mistérios, principalmente aqueles associados ao feminino e, de forma mais específica, à deusa Isis.

 

O Misterioso Território de Oc

Na Idade Média, a metade sudeste onde agora é a França, partes da Espanha e Mônaco era chamada de Occitânia ou Território de Oc. Hoje essa região é chamada de Languedoc (o idioma de Oc) ou L’Occitanie. A vibrante cultura occitana permitiu direitos iguais para mulheres e homens, incentivando a compreensão e o diálogo entre todas as fés, proporcionando uma educação excelente para seus cidadãos, e era muito pacífica e próspera.

Baseando-se nas tradições místicas mais antigas, as primeiras versões da Cabala surgiram dessa área no começo do século XII. Os Cátaros, uma seita de místicos cristãos cujas crenças provavelmente se originaram nas tradições da Antiga Europa e no maniqueísmo (gnosticismo persa), também viviam em Languedoc e em outras partes da Europa iniciando no século XI.

Os reis da França do norte (na época um país separado) e a Igreja Católica Romana queriam a riqueza, as terras e os convertidos de Languedoc, principalmente os Cátaros para que essas duas poderosas forças conspirassem contra o povo de Oc, resultando em sua perseguição e a iminente extinção das tradições occitanas, pelo menos em sua presença pública nos anos 1200. Cerca de 500.000 pessoas de Languedoc, incluindo cristãos, judeus e outros místicos, podem ter sido assassinadas durante a Cruzada Albigense ao longo de 20 anos e, em seguida, a Inquisição que durou um século.

Os trovadores, que cantavam no idioma de Oc, encontraram uma forma oculta de perpetuar as tradições occitanas e suas fontes, os antigos mistérios, através do simbolismo poético. Enquanto os trovadores pareciam estar cantando sobre o amor de um homem por uma mulher, na verdade, eles estavam se referindo às leis do amor universal. Eles estavam expressando a benção da união com o Divino e a paz que resulta desta comunhão. Um dos símbolos que os trovadores usavam para representar o desejo interior da alma por essa união mística era a rosa.

 

A “Gai Savoir” e a “Jeux Floraux”

Depois de intensa perseguição na área, em 1323 sete indivíduos em Toulouse, conhecidos como os sete trovadores, fundaram uma sociedade mística chamada de Gai Savoir, que significa “feliz conhecimento”. A missão exotérica dessa sociedade era transformar o mundo em um lugar melhor e mais feliz através da poesia. Embora oculto, o significado esotérico de suas poesias era claro para aqueles com olhos para exergá-lo.

Os sete trovadores colocaram uma carta em circulação para todos os poetas em Languedoc, convidando-os para apresentar sua poesia em um concurso no mês de maio seguinte (1324). O painel dos sete juízes escolheu os vencedores, que foram premiados com a violeta (sua cor simbolizando o grau místico mais elevado), a calêndula (representando o ouro filosófico), e a rosa silvestre.

A Gai Savoir operava como uma Ordem, com uma filosofia e regras que eles chamavam de “leis do amor”. Eles reuniram as antigas tradições místicas que se espalharam ao longo dos séculos, as preservando e discretamente perpetuando.

Durante as Guerras Religiosas na França nos anos 1500 (um século de horríveis guerras entre os Católicos Franceses e os Protestantes Huguenotes) a Gai Savoir adormeceu. Mais tarde, o grupo reapareceu na forma de Jeux Floraux, com a descoberta alegórica de uma tumba, da mesma forma que a tumba de Christian Rosenkreuz foi descoberta e aberta.

A tumba, que foi descoberta em Toulouse, foi a de Clemence Isaure, a fundadora alegórica de Jeux Floraux. Flores também foram encontradas nessa tumba, em alusão às premiações florais concedidas anteriormente pela Gai Savoir. A basílica, na qual dizem estar localizada a tumba, chamada de La Dourade, se encontra no local do primeiro Templo dos Visigodos em Gália, um antigo templo à Minerva (Ísis), que hoje é dedicado à “Virgem Negra” com uma bela estátua dela olhando a capela principal do alto.

 

[...]

 

“Clemence Isaure” – a Pintura

De 1892 a 1897, sob a direção de Joséphin Péladan (que tinha fortes laços com a Jeux Floraux e com a Rose-Croix de Toulouse), a Rose-Croix da França organizava os Salões da Rose-Croix em Paris. Esses salões, que recebiam milhares de convidados todos os anos, apresentava música e ritual Rosacruz, assim como arte. O famoso compositor rosacruz Erik Satie foi nomeado como o diretor musical da Ordem da Rose-Croix no começo dos anos 1890. Claude Debussy, amigo de Satie e um dos grandes compositores franceses, também era um Rosacruz.

Os Salões Rosacruzes exibiam obras de muitos pintores do movimento do Simbolismo, incluindo Henri Martin de Toulouse, cujas pinturas foram exibidas em 1892. Neste mesmo ano, Martin foi contratado para criar várias pinturas para o Hall of the Illustrious no Capitólio de Toulouse.

Ele escolheu como tema a Jeux Floraux. Uma dessas pinturas é “A Aparição de Clemence Isaure aos Trovadores”. Nela, Clemence Isaure mostra aos sete trovadores um pergaminho da Jeux Floraux, que inclui a rosa e a cruz. Ela está acompanhada de três Musas e da deusa Minerva, a Ísis Egípcia.

 

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Who Was Clemence Isaure?

The name Clemence means clemency or mercy, and Isaure means Isis of gold, or Golden Isis. Several sources describe Clemence Isaure as an actual person, who lived in the Territory of Oc in the late 1400s and early 1500s, whose beauty and talent were rare and inspiring. Others say she was a fictional character created to perpetuate the feminine traditions of earlier times.

According to legend, following the death of her troubadour love, who praised her through his beautiful songs and whom she adored, Clemence Isaure took a vow of chastity and silence. Before doing so, however, she established an endowment for the city of Toulouse to re-establish the poetry contests of the Gai Savoir, a poetry society established in 1323, through a new group called the Jeux Floraux.

Clemence Isaure symbolized noble action, beauty, and wisdom inspired through poetry. Above all, she represented the perpetuation of the ancient mysteries, especially those associated with the feminine and particularly with the goddess, Isis.

 

The Mysterious Territory of Oc

In the Middle Ages, the southern half of what is now France, parts of Spain, and Monaco were called Occitania or the Territory of Oc. Today this region is referred to as the Languedoc (the language of Oc) or L’Occitanie. The vibrant Occitan culture allowed equal rights for women and men, encouraged understanding and dialogue between all faiths, provided excellent education for its citizens, and was very peaceful and prosperous.

Drawing heavily on older mystical traditions, the first versions of Kabbalah emerged from this area in the early twelfth century. The Cathars, a sect of Christian mystics whose beliefs most likely originated from the traditions of Old Europe and Manichaeism (Persian Gnosticism), also lived in the Languedoc and other parts of Europe beginning in the eleventh century.

The kings of northern France (a separate country at the time) and the Roman Catholic Church wanted the wealth, land, and converts of the Languedoc, especially of the Cathars, so these two powerful forces plotted against the people of Oc, resulting in their persecution and the near extinction of the Occitan traditions, at least their public presence, in the 1200s. As many as 500,000 people of the Languedoc, including Christians, Jews, and other mystics, may have been murdered during the twenty-year Albigensian Crusade and the century-long Inquisition that followed.

The troubadours, who sang in the language of Oc, found a veiled way to perpetuate the Occitan traditions and their source, the ancient mysteries, through poetic symbolism. While the troubadours appeared to be singing about the love of a man for a woman, they were really referring to the laws of spiritual love. They were expressing the bliss of union with the Divine and the peace that results from this communion. One of the symbols the troubadours used to represent the inner desire of the soul for this mystical union was the rose.

 

The Gai Savoir and Jeux Floraux

Following the intense persecution in the area, in 1323 seven individuals in Toulouse, known as the seven troubadours, founded a mystical society called the Gai Savoir, meaning “happy knowledge.” The exoteric mission of this society was to make the world a happier and better place through poetry. Though veiled, the esoteric meaning of their poetry was clear for those with eyes to see.

The seven troubadours circulated a letter to all the poets in the Languedoc, inviting them to present their poetry at a contest the following May (1324). The panel of seven judges chose the winners, who were awarded a violet (its color symbolic of the highest mystical degree), a marigold (representing the philosophical gold), and the wild rose.

The Gai Savoir operated as an Order, with a philosophy and rules that they called “the laws of love.” They gathered together the ancient mystical traditions that had been scattered over the centuries, preserved and discreetly perpetuated them.

During the Wars of Religion in France during the 1500s (a century of horrible wars between the French Catholics and Protestant Huguenots), the Gai Savoir became dormant. The group later reappeared in the form of the Jeux Floraux, with the allegorical discovery of a tomb, similar to the way in which Christian Rosenkreuz’s tomb was found and opened.

The tomb, which was discovered in Toulouse, was that of Clemence Isaure, the allegorical founder of the Jeux Floraux. Flowers were also found in this tomb, alluding to the floral prizes earlier awarded by the Gai Savoir. The basilica where the tomb is said to be located, called La Dourade, is on the site of the first Visigoth temple in Gaul, a previous temple to Minerva (Isis), and today is dedicated to “the black Madonna,” with a beautiful statue of her overlooking the main chapel.

 

[…]

 

Clemence Isaure – the Painting

From 1892 to 1897 under the direction of Joséphin Péladan (who had strong ties to the Jeux Floraux and the Rose-Croix of Toulouse), the Rose+Croix of France organized the Salons of the Rose-Croix in Paris. These salons, which hosted tens of thousands of guests each year, presented music and Rosicrucian ritual, as well as art. Well-known composer and Rosicrucian Erik Satie was named the musical director of the Order of the Rose+Croix in the early 1890s. Claude Debussy, Satie’s friend and one of France’s greatest composers, was also a Rosicrucian.

The Rosicrucian Salons exhibited the works of many painters of the Symbolist movement, including Henri Martin from Toulouse, whose paintings were exhibited in 1892. That same year Martin was commissioned to create a number of paintings for the Hall of the Illustrious in Toulouse’s Capitole. He chose as his theme – the Jeux Floraux.

One of these paintings is The Appearance of Clemence Isaure to the Troubadors. In it, Clemence Isaure shows the seven troubadours the charter of the Jeux Floraux, which includes the rose and the cross. She is accompanied by three Muses and by the goddess Minerva, the Egyptian Isis.

 

REFERÊNCIAS:
SCOTT, Julie. Clemence Isaure – a Isis Dourada Rosacruz. O Rosacruz. n. 308, Curitiba, AMORC-GLP, p. 12-18, outono 2019. Trechos selecionados.
 
SCOTT, Julie. Clemence Isaure: The Rosicrucian Golden Isis. Rosicrucian Digest, San Jose, AMORC, v. 99, n. 1, p. 55-59, 2021. Excerpts.

quarta-feira, 10 de julho de 2024

VIAGEM AO CENTRO DO JARDIM

 


 

Por Gail Butler, SRC

 

Se pararmos para contemplar não apenas a beleza e a forma de um jardim doméstico, mas sua “existência” elementar, veremos que sua vida interior é rica e significativa. O conceito de jardim evoluiu, não apenas ao lado da humanidade, mas também dentro de nossa consciência desde os primeiros fundamentos da civilização.

Como arquétipo, o jardim representa a Alma, suas qualidades de abundância, alegria, inocência, paz e ordem. O jardim em sua expressão mais refinada representa uma expansão da consciência. Em um estado não cuidado e negligenciado, o jardim espelha uma consciência de dormência e estagnação. Ao examinar a história dos jardins em suas várias expressões de forma e função, obtemos pistas, não apenas de seu efeito sobre nossa evolução coletiva da consciência, mas como cada um de nós pode nutrir nosso próprio “Jardim Interno”.

A evolução do jardim começou quando os humanos cercaram os espaços externos com a intenção de manter algo, como animais, dentro ou fora. A primeira manifestação do jardim era puramente funcional, consistindo em cercas facilmente erguidas e desconstruídas para acomodar um estilo de vida semi-nômade. Cerca de 10.000 anos atrás, a agricultura permitiu que as civilizações florescessem e as pessoas começaram a criar espaços murados.

Particularmente no Irã, na Mesopotâmia, no Egito e no Levante1, os jardins tornaram-se mais elaborados. Indivíduos abastados construíram e plantaram jardins decorativos, não apenas pela praticidade, mas também como belos espaços estéticos. As pinturas egípcias do século XVI a.C. registram alguns dos primeiros jardins de lazer conhecidos, embora seja muito provável que esses jardins sejam anteriores a esse período. Talvez os jardins fechados tenham se originado em climas desérticos como refúgios do calor e do brilho abrasador do sol – oásis privados de serenidade e beleza.

Do Oriente Médio para a Grécia, Roma, França, Itália e através das Ilhas Britânicas, os jardins tornaram-se enfeites necessários para as propriedades de cidadãos ricos e colonizadores. Jardins exuberantes, estátuas ornamentadas e magníficas fontes de água tornaram-se emblemas de status. Além disso, o jardim passou a incorporar componentes simbólicos e religiosos, além de suas delícias sensoriais. Seja imitando um oásis, exibindo o status de um proprietário ou criando um paraíso terrestre, os jardins privados tornaram-se lugares para fazer oferendas às divindades, orar e meditar e, talvez, experimentar o êxtase místico. Em pouco tempo, as classes médias começaram a criar seus próprios jardins de refúgios, embora menos imponentes. Eventualmente, algumas comunidades conceituaram a ideia de jardins públicos para embelezar seus municípios e edificar sua população.

 

Jardins do Paraíso Persas

 Em lugares monocromáticos e sem água, cercados por dunas movediças e precipícios escarpados, é razoável concluir que as pessoas idealizavam a vida após a morte como um belo jardim. Assim, o paraíso tornou-se o modelo para jardins privados e públicos no que hoje é o Irã.

Ó eu em repouso e em paz, volte para o seu Senhor, agradável e satisfeito! Entre em meio aos meus servos! Entre no meu jardim. - Surat al-Fajr, 27-30, Alcorão

Idealmente, o jardim do paraíso persa tem um design formal e simétrico. Tradicionalmente, é dividido em quatro quartos. Os aposentos são plantados com árvores para sombra e frutas, com ervas e flores perfumadas para perfumar o espaço, convidando as abelhas a permanecerem, construindo colmeias gotejando mel doce e dourado. Nenhuma imagem religiosa ou estátua distrai da serenidade, pureza e propósito desses jardins. A água – em forma de piscina ou fonte – ocupava um lugar importante no centro do jardim. Às vezes, canais estreitos transportavam água para os quatro cantos, ecoando a arquitetura do Paraíso de Allah, conforme descrito no Alcorão.

Allah prometeu aos homens e mulheres os Jardins dos crentes com rios fluindo sob eles, permanecendo neles eternamente, para sempre, e belas moradas nos Jardins do Éden. E o bom prazer de Allah é ainda maior. Essa é a grande vitória. - Surat at-Tawba, 72, Alcorão.

Este estilo de jardim clássico e icônico é chamado chahar bagh, que significa “quatro jardins”. Às vezes, o chahar bagh é chamado de jardim “islâmico”. Ele aparece com destaque no simbolismo, nas pinturas e na fala sufis, por seu ideal espiritualizado, inspirado em canções sufis de amor e fala mística.

As linhas a seguir ilustram o tom e o teor da poesia mística do amor:

Incapaz de perceber a sua forma, encontro você ao meu redor. Sua presença enche meus olhos com seu amor. Isso humilha meu coração, pois você está em toda parte.”2

O objetivo a que aspiravam os sufis resume-se na seguinte citação.

O sufismo é mais sobre promover nosso jardim interior, das línguas às meras palavras, ao sem palavras. Trata-se mais de educar nosso ouvido para ouvir a voz que não usa palavras.”3

O místico sufi sabia que é preciso passar pela beleza e fragrância do jardim externo e entrar no reino além das aparências para comungar com o Amado, pois é aí que o Paraíso é verdadeiramente encontrado.

 

O Jardim Bíblico

No início da Bíblia, no segundo capítulo de Gênesis, Deus criou um jardim:

Deus [o Divino], plantou um jardim ao oriente, no Éden, e ali [Ele] colocou a pessoa que Ele havia formado (Gênesis 2:8).

Desta forma, o trabalho foi concluído. Talvez o Jardim do Divino não pudesse ser concluído sem nós, mas estamos inteiros e completos sem o Jardim?

Eles mesmos serão como um jardim bem regado, para nunca mais desfalecer. (Jeremias 31:12).

Os antigos hebreus plantavam seus jardins como lugares práticos e agradáveis para passear por caminhos sombreados. Bancos de pedra forneciam locais para uma contemplação pacífica. Havia oliveiras, romãzeiras, tamareiras, damasqueiros e figueiras. As uvas eram cultivadas para o vinho. Ervas como coentro, mostarda, hissopo, hortelã e endro davam sabor e conferiam cura e refeição. Os lírios eram uma flor favorita, assim como o açafrão, as papoulas e as anêmonas.4

Incrustados nas paredes de jardins há muito arruinados, os arqueólogos encontraram pólen revelando a presença de plantas não nativas, como cidra (etrog), murta, nogueira persa, bétula e cedro do Líbano.5

O segundo jardim mais famoso da Bíblia, depois do Éden, é o Jardim do Getsêmani. No tempo de Yeshua, pode realmente ter sido um olival. Hoje, é mantido como um jardim de peregrinação porque as escrituras nos dizem que Yeshua veio aqui antes de sua crucificação. Enquanto os discípulos dormiam, Yeshua orou: Meu Pai, se for possível, afaste de mim este cálice, porém que não seja feita a minha vontade, mas a Tua. (Mateus 26:39). Foi para o Getsêmani que Yeshua em desespero se retirou. Talvez, ao refugiar-se entre as oliveiras, sentisse com mais fervor a proximidade do Pai.

 

O Átrio Romano

Enquanto procurava o assunto para este artigo, as palavras “átrio do coração” corriam incessantemente pela minha mente. O que minha musa interior estava tentando transmitir? Olhando para o “átrio do coração”, aprendi que as câmaras superiores do coração são, na verdade, chamadas de átrios.6

Deixando temporariamente de lado esse início enigmático e secreto da minha pesquisa, surgiram outros átrios – os da clássica vila romana. As vilas romanas foram construídas em torno de um átrio central composto por um pátio aberto. No centro do átrio estava o impluvium, uma piscina rasa afundada no chão para captar a água da chuva do telhado aberto. O impluvium também adicionou um ambiente interessante ao espaço. As paredes que cercam o átrio podem ser adornadas com pinturas de divindades, cupidos ou personagens mitológicos. O átrio serviu como centro da vida social e política da casa e como espaço privado para a família se reunir e relaxar.7

Logo além do átrio – se a vila fosse grande o suficiente – o peristilo estava localizado. Neste espaço ao ar livre, plantas, árvores frutíferas e estátuas criavam um refúgio útil e tranquilo. No centro desse espaço havia um lago chamado “piscine”, no qual os peixes podiam ser mantidos para apreciação visual e refeições futuras. Algumas vilas romanas combinavam um átrio e um peristilo em um único e grande pátio retangular no centro da vila. As plantas cultivadas no átrio podiam incluir rosas, ciprestes e amoreiras. Ervas e flores como alecrim, tomilho e hissopo eram cultivadas. Tagetes, narcisos, jacintos e violetas perfumavam o ar.8

Dentro dos limites frios e privados de seus átrios, os cidadãos romanos adoravam suas divindades e faziam oferendas aos Lares – os espíritos domésticos da vila. Às vezes, os filósofos se divertiam e os átrios se tornavam espaços para discussões animadas. A colocação arquitetônica do átrio no coração da vila consolidou sua importância como núcleo da vida interior e exterior.

 

O jardim de cura

Os jardins de cura são onipresentes em muitas culturas. Eles podem ser vistos ao lado das residências mais humildes, dentro de mosteiros religiosos e castelos fronteiriços. A partir de modestos lotes de ervas cercados por cercas de pau-a-pique ou pedras, surgiram os jardins de cura nos quais as ervas curativas foram plantadas em padrões simples ou complexos. Os jardins astrológicos e alquímicos agrupavam ervas e plantas de acordo com suas assinaturas e poderes planetários.

Na Europa, desde o século XII até os dias atuais, no castelo, no palácio e na mansão, os jardins formais de ervas permanecem populares. Caixotes aparados ou sebes de hissopo, canteiros geométricos com bordas ordenadas, contendo vastos conjuntos de ervas aromáticas e flores – uma cornucópia de deleite sensorial e bem-estar corporal! Os jardins de cura, independentemente do tamanho ou grandeza, continuam sendo farmácias vivas de potência terapêutica e planetária.

Os jardins do mosteiro incluíam fileiras de vegetais, pomares de frutas e galinheiros, além de canteiros de ervas medicinais e culinárias. Enquanto muito tempo era gasto trabalhando nos jardins, bancos e assentos de pedra forneciam lugares para sentar e ponderar as escrituras e a doutrina.

Na minha antiga casa de campo, uma grande horta crescia perto da casa. Era um jardim de trabalho com canteiros de legumes e morangos e um jardim retangular de ervas culinárias e medicinais. Uma grande plantação de milho, feijão, abóbora e melão tornava esta horta prática. No entanto, havia espaço para as flores encantarem os olhos e atrair abelhas e borboletas. Um caramanchão de velhos lilases dividia o jardim e fazia um recanto sombreado para uma cadeira de metal. Aqui, eu podia sentar e ver meu jardim crescer. O que realmente ocorreu naqueles momentos idílicos sob os lilases foi que em algum nível meu jardim me fez crescer.

 

Jardins do Tarô

Com sua história enigmática e diversas manifestações de interpretação e estilo, o Tarô – seja como uma ferramenta de prognóstico ou um caminho para a iluminação –  apresenta imagens significativas de jardins. Referindo-se ao baralho Universal Waite, vemos indícios simbólicos de paisagens naturais e cultivadas nas cartas dos Arcanos Maiores. É nas cartas dos Arcanos Menores que se encontra a maioria das imagens de jardim, no todo ou em parte.

O simbolismo do jardim do tarô reflete o teor das vidas temporais retratadas nas cartas. A maioria das cenas de jardim do Tarot aparecem apenas parcialmente ilustradas. Raramente vislumbramos a totalidade do jardim. É como se sua totalidade estivesse latente, esperando. A contemplação desse aspecto do Tarô sugere que o jardim é de natureza dual, manifestando-se tanto no exterior quanto no interior. Talvez cultivemos apenas aspectos particulares de nós mesmos deixando grande parte do Jardim Interno em dormência?

O naipe de Ouros é onde a maioria das imagens de jardim são encontradas, refletindo que este naipe representa o elemento Terra. No Ás de Ouros encontramos um jardim completo, desocupado, exceto por uma mão misteriosa emergindo de uma nuvem. O que está sendo oferecido? Esta carta ilustra a beleza e a generosidade disponíveis quando cultivamos nossa natureza terrena com cuidado e discriminação?

O Nove de Ouros coloca alguém – você, ou talvez eu – no centro do jardim. Pentáculos florescem abundantemente, sugerindo que a natureza terrena foi podada e nutrida para um crescimento pleno. As uvas estão maduras, prontas para o jardineiro. Uma ave de rapina encapuzada senta-se na mão do ocupante – a natureza animal gentilmente controlada? Duas árvores estão na parte de trás do jardim. Elas representam uma dualidade que foi equilibrada dentro da pessoa que está no meio? Certamente o indivíduo que ocupa o jardim o cultivou com cuidado e paciência, desfrutando da abundância, conhecendo seu segredo, pois este jardim se mostra exuberante e completo.

De maior interesse é o Cinco de Ouros, povoado por dois indivíduos espancados lutando contra uma tempestade de inverno. Não há indícios de pétalas ou folhas nesta cena sombria. No entanto, aparentemente despercebido pelo par, uma janela de pentagramas brilha calorosamente. Talvez esses dois não tenham consciência do conforto e companheirismo prometidos pelo brilho acolhedor? Certamente, este par parece ter sido expulso de seu jardim, ou desconhece sua existência? Se ao menos eles se virassem e olhassem! Se ao menos eles alargassem o círculo de sua consciência e abraçassem o socorro que os aguarda dentro do santuário de janelas!

 

O jardim metafórico

Jardins enviam suas raízes profundamente na psique humana. Talvez não possamos começar a alcançar uma consciência emergente do eu interior até que tracemos essas raízes aos lugares misteriosos e férteis que elas ocupam dentro de nós. Uma rima antiga pergunta: “Como seu jardim cresce?”9 Essa pergunta não se aplica apenas ao jardim físico, pois poetas como Walt Whitman também falam com a linguagem do coração.

Botões invisíveis, infinitos, bem escondidos, sob a neve e o gelo, sob a escuridão, em cada centímetro quadrado ou cúbico,

Germinais, requintados, em rendas delicadas, microscópicos, nascituros...10

A poesia pode ser apreciada intelectual e emocionalmente, certamente. Mas, se penetrarmos mais profundamente, isso também indica o misticismo. A poesia é a linguagem da alma falada com as palavras do coração e ilustrada com caneta na página. Lendo atentamente o que flui da caneta do poeta, ouvindo atentamente a sabedoria do místico, contemplando as imagens do jardim do Tarô – começamos suavemente nossa abordagem em direção ao centro de um secreto, “Jardim Interior”.

 

Entrando no Jardim

A jornada para o jardim não é externa como eu pensava e buscava. É uma estada no aspecto mais profundo do nosso ser. É aqui que começaremos a desenterrar um esplendor surpreendente. Este é o segredo conhecido pelo místico, escrito pelo poeta e ilustrado no Tarô. De alguma forma, esquecemos como e onde encontrar a entrada, ou mesmo por que devemos procurá-la. Talvez o ritmo e a complexidade de nossas vidas tenham obscurecido o caminho. No entanto, não precisamos reviver o caminho sem ajuda! Temos os exemplos de sufis, poetas e místicos como guias. Talvez a diretiva intrigante da minha musa, “átrio do coração”, fosse dupla. Isso me deu um ponto de partida para minha pesquisa – a palavra “átrio”. Também me levou infalivelmente ao lugar onde cada um de nós pode comungar dentro do jardim. À medida que cada um de nós tende e busca o “Jardim Interior”, a consciência se expande além da forma e além do pensamento. Nesse limiar, entre o pensamento e a pura consciência, entramos no centro do jardim. Aqui, todos os limites e limitações caem. Aqui, descobrimos a comunhão com a essência viva que pulsa no coração de todas as coisas e dentro de nós mesmos. Os místicos sufis nos mostraram o caminho através do jardim físico e para o “Jardim Interno”. Poetas escreveram sobre a vida interior do Jardim, e o Tarô nos mostra que o “Jardim Interior” é refletido externamente. Aqui está o roteiro deles como o destilei: é preciso esperar, sentar um feitiço e permitir que os sentidos se abram ao natural usando todos os cinco – deleite os olhos com beleza, cor e forma; prove a erva aromática; cheire a miríade de fragrâncias; ouça o vento, a água, o canto dos pássaros; sinta folha e pétala, o solo úmido e opulento. Então, devemos sentir novamente – desta vez emocionalmente – a pungência que essas sensações despertam dentro de nós. É paz, alegria, calma, anseio, conexão – algo mais? Por fim, agarre firmemente o fio diáfano do Amor e permita que ele o conduza ao Centro do Jardim, em direção ao Ser Interior.

Rosicrucian Digest nº 2 – 2021

 

NOTAS:

1 O Levante inclui a Síria, Israel, Líbano, Jordânia, e Palestina.

2 Hakim Sanai, The Walled Garden of Truth, traduzido por Priya Hemenway, (Kansas City: Andrews NcMeel Publisher, 2002), pg. 41.

3 “Cultivate your inner garden with Sufism,” Express Tribune, acessada em 15 de setembro de 2021, https:// tribune.com.pk/story/1403143/cultivate-inner-garden-sufism.

4 “Plants of the Garden,” Charles Stuart University, Acessado em 15/09/2021, https://www.csu.edu.au/ special/accc/biblegarden/plants-of-the-garden.

5 “The secret life of plants in an ancient,royal Judean garden,” Israel21c: Uncovering Israel, acessado em 15/09/2021, https://www.israel21c.org/the-secret-life-of-plants-in-an-ancient-royal-judean-garden/.

6 “Atrium,” Encyclopedia Britannica, acessado em 15/09/2021, https://www.britannica.com/science/ atrium-heart.

7 “Sample Plan of a Roman House,” vroma.org, acessado em 15/09/2021, http://vroma.org/vromans/ bmcmanus/house.html

8 “Ancient Roman Gardens,” History and Archaeology Online, acessado em 15/09/2021 , https:// historyandarchaeologyonline.com/ancient-roman-gardens/.

9 “Mary, Mary, Quite Contrary” antiga canção de ninar europeia.

10 Walt Whitman, Leaves of Grass, (New York:Barnes & Noble, 2004).

  

REFERÊNCIA:
BUTLER, Gail. Viagem ao Centro do Jardim. O Rosacruz. n. 321, Curitiba, AMORC-GLP, p. 36-43, inverno 2022.