Por
Mircea Eliade
A
revelação de Krishna
À primeira vista, pode parecer paradoxal que a obra literária que
pinta uma terrível guerra de extermínio e o fim de um yuga constitua, ao
mesmo tempo, modelo exemplar de toda síntese espiritual efetuada pelo
hinduísmo. A tendência à conciliação dos contrários caracteriza o pensamento
indiano desde a época dos Bramanas, mas é no Mahabharata que se avalia a
importância de seus resultados. Essencialmente, pode-se dizer que o poema1
(1) ensina a equivalência do Vedanta (isto é, a doutrina dos Upanixades), do
sanquia e da ioga; (2) estabelece a paridade das três “vias” (marga),
representadas pela atividade ritual, o conhecimento metafisico e a prática da
ioga; (3) esforça-se por justificar certo modo de existência no tempo, em
outras palavras, assume e valoriza a historicidade da condição humana; (4)
proclama a superioridade de uma quarta “via” soteriológica: a devoção a
Vishnu(-Krishna).
O poema apresenta o sanquia e a ioga em seus estágios pré-sistemáticos.
O primeiro significa o “verdadeiro conhecimento” (tattva jnana) ou o “conhecimento
do Eu” (atmaboddha); a esse respeito, o sanquia prolonga a especulação
upanixádica. A ioga designa toda atividade que conduz o eu a Brahman, ao mesmo
tempo que confere inúmeros “poderes”. O mais das vezes essa atividade equivale
ao ascetismo. O termo yoga significa algumas vezes “método”, outras, “força”
ou “meditação”.2 Os dois darsana são considerados
equivalentes. Segundo a Bhagavadgita, “somente os espíritos limitados
contrapõem o sanquia e a ioga, mas não os sábios (panditah). Aquele que
é verdadeiramente senhor de um deles colhe o fruto de ambos... Sanquia e ioga
são apenas um” (V. 4-5).
É também na Bhagavadgita que a homologia das três “vias”
soteriológicas é rigorosamente demonstrada. Esse episódio célebre tem início
com a “crise existencial” de Arjuna e termina por uma revelação exemplar
relativa à condição humana e às “vias” de libertação. Vendo-o deprimido por
causa da guerra, na qual seria obrigado a matar amigos e seus próprios primos,
Krishna revela a Arjuna os meios de cumprir com seu dever de xátria sem se
deixar acorrentar pelo carma. Em linhas gerais, as revelações de Krishna versam
sobre: 1) a estrutura do Universo; 2) as modalidades do ser: 3) as vias que
cumpre seguir para obter a libertação final. Krishna, entretanto, cuida de
acrescentar que essa “ioga antiga” (IV. 3), que é o “mistério supremo”, não é
uma inovação; já a ensinou a Vivasvat, que a revelou em seguida a Manu, e Manu
a transmitiu a Ikshvaku (IV, 1). “Foi por meio dessa tradição que se conheceram
es reis-rishis; mas, com o tempo, essa ioga desapareceu aqui embaixo”
(IV, 2). Todas as vezes que a ordem (darma) titubeia, Krishna por sua vez se
manifesta (IV. 7), vale dizer, revela, de um modo apropriado ao referido “momento
histórico”, essa sabedoria intemporal. (É a doutrina do avatara). Em
outros termos, se a Bhagavadgita se apresenta historicamente como uma
nova síntese espiritual, ela só parece “nova” a nossos olhos de seres
condicionados pelo tempo e pela históriaa.
Pode-se dizer que a essência da doutrina revelada por Krishna está
contida nestas palavras sumárias: compreenda-me e imita-me! Porque tudo aquilo
que ele revela sobre seu próprio ser e sobre seu “comportamento” no cosmo e na
história deve servir de modelo exemplar a Arjuna: este encontra o sentido de
sua vida histórica e conjuntamente obtém a libertação, compreendendo o que
Krishna é e o que faz. Por outro lado, o próprio Krishna insiste
no valor exemplar e soteriológico do modelo divino: “Tudo o que o chefe faz, os
outros homens imitam: a norma que ele observa, o mundo a segue” (III, 21). E
acrescenta, referindo-se a si mesmo: “Nos três mundos, não há nada que eu seja
obrigado a fazer, ... e, no entanto, permaneço ativo” (III, 23). Krishna
apressa-se em desvelar a significação profunda dessa atividade: “Se eu não
estivesse sempre incansavelmente ativo, em todas as partes os homens seguiriam
meu exemplo. Os mundos deixariam de existir se eu não executasse minha obra; eu
seria a causa da universal confusão e do fim das criaturas” (III, 23-4).
Arjuna deve, por conseguinte, imitar o comportamento de Krishna: ou
seja, em primeiro lugar, continuar em atividade, não contribuindo, com sua
atitude passiva, para a “universal confusão”. Mas, para que ele possa agir “à
maneira de Krishna”, cumpre-lhe entender tanto a essência da divindade como
seus modos de manifestação. É por essa razão que Krishna se revela: ao
conhecer Deus, o homem conhece, ao mesmo tempo, o modelo que tem de seguir.
Ora, Krishna começa por revelar que o ser e o não ser residem nele e que toda a
Criação – desde os deuses até os minerais – descende dele (VII, 4-6: IX, 4-5;
etc.). Cria continuamente o mundo por meio de sua prakrti, mas essa
atividade incessante não o acorrenta: ele nada mais é que o espectador de
sua própria Criação (IX, 8-10). Ora, é justamente essa valoração, aparentemente
paradoxal, da atividade (do carma) que constitui a lição fundamental revelada
por Krishna: à imitação de Deus, que cria e sustenta o mundo sem dele
participar, o homem aprenderá a proceder da mesma forma. “Não é suficiente
abster-se de ação para libertar-se do ato: a inação por si só não conduz à
perfeição”, porque “cada qual está condenado à ação” (III, 4-5). Mesmo que ele
se abstenha do ato no sentido estrito do vocábulo, toda uma atividade inconsciente,
provocada pelos guna (III, 5), continua a acorrentá-lo ao mundo e
incorporá-lo no circuito cármico.
Condenado à ação –pois “a ação é superior à inação” (III, 8) –, o
homem deve cumprir os atos prescritos, em outros termos, os “deveres”, os atos
que lhe incumbem em virtude de sua situação particular. “Mais vale cumprir, ainda
que imperfeitamente, o seu próprio dever (svadharma) do que executar,
mesmo à perfeição, o dever que se impõe a outra classe social” (paradharma:
III, 35). Essas atividades especificas são condicionadas pelos guna
(XVII, 8s.; XVIII, 23s.). Krishna repete em diversas ocasiões que os guna
procedem dele, mas não o acorrentam: “Não que eu esteja neles; são eles que
estão em mim” (VII, 12). A lição que daí se tira é a seguinte: aceitando a “situação
histórica” criada pelos guna (e devemos aceitá-la porque os guna,
também eles, derivam de Krishna) e procedendo de acordo com as necessidades
dessa “situação” – o homem deve recusar-se a valorizar seus atos e, por
conseguinte, a atribuir um valor absoluto a sua própria condição
“Renunciar
aos frutos de seus atos”
Nesse sentido, pode-se dizer que a Bhagavadgita se empenha
em “salvar” todos os atos humanos, em “justificar” toda ação profana: pois, pelo
próprio fato de já não gozar de seus “frutos”, o homem transforma seus atos
em sacrifícios, isto é, em dinamismos transpessoais que contribuem para
manter a ordem cósmica. Por outro lado, lembra Krishna, somente os atos que têm
por objeto o sacrifício não acorrentam (III, 9). Prajapati instituiu o sacrifício
para que o cosmo pudesse manifestar-se e para que os seres humanos pudessem
viver e multiplicar-se (III, 10s.). Mas Krishna revela que o homem também pode
colaborar para a perfeição da obra divina: não só através dos sacrifícios
propriamente ditos (aqueles que constituem o culto védico), mas por todos os
seus atos, qualquer que seja sua natureza. Quando os diferentes ascetas e iogues
“sacrificam” suas atividades psicofisiológicas, desvinculam-se dessas atividades,
comunicam-lhes um valor transpessoal (IV, 25s.); e, ao fazerem isso, “têm
todos a noção verdadeira do sacrifício e, por meio do sacrifício, apagam todas
as suas máculas” (IV, 30).
Essa transmutação de atividades profanas em rituais é possibilitada
pela ioga. Krishna revela a Arjuna que o “homem de ação”b pode
salvar-se, em outras palavras, subtrair-se às consequências de sua participação
na vida do mundo, desde que continue a agir. A única coisa que ele deve
observar é a seguinte: deve desvincular-se de seus atos e dos resultados
destes, em outros termos: “Renunciar aos frutos de seus atos” (phalatrsnavairagya),
agir impessoalmente, sem paixão, sem desejo, como se agisse por
procuração, em lugar de outra pessoa. Se ele se conformar fielmente a essa
regra, seus atos já não semearão novas potencialidades cármicas, e já não o manterão
como escravo do circuito cármico. “Indiferente ao fruto da ação, sempre
satisfeito, livre de toda peia, por mais atarefado que possa estar, na
realidade não age” (IV, 20).
A grande originalidade da Bhagavadgita é ter insistido nessa
“ioga da ação”, que se realiza “renunciando aos frutos de seus atos”. Temos aí
também o motivo principal de seu sucesso, sem precedente na Índia. Porque
doravante é permitido a todo homem esperar a libertação graças ao phalatrsnavairagya,
ao passo que, por motivos de ordem muito diversa, será obrigado a continuar a
participar da vida social, a continuar a ter uma família, preocupações, a
ocupar funções, até a cometer atos “imorais” (tal como Arjuna, que deve matar
na guerra os seus adversários). Agir placidamente, sem ser movido pelo “desejo
do fruto”, é obter um autodomínio e uma serenidade que, sem dúvida, a ioga é a
única que pode conferir. Como diz Krishna: “Embora aja sem restrição, ele
permanece fiel à ioga.” Essa interpretação da técnica ioga é característica do
grandioso esforço de síntese da Bhagavadgita, que queria conciliar todas
as vocações: ascética, mística, ou consagrada à atividade no mundo.
Além dessa ioga acessível a todo mundo, e que consiste na renúncia
nos “frutos dos atos”, a Bhagavadgita expõe sumariamente uma técnica ióguica
propriamente dita, reservada aos contemplativos (VI, 11s.). Krishna decreta que
“A ioga é superior à ascese (tapas); superior mesmo à ciência (jnana),
superior ao sacrifício” (VI, 46). No entanto, a meditação ióguica só alcança
seu fim último quando o discípulo se concentra em Deus: “Com a alma serena e
sem temor, ... com o intelecto firme e pensando continuamente em mim, deve ele
praticar a ioga tomando-me como fim supremo” (VI, 14). “Aquele que por toda
parte me vê, e vê todas as coisas em mim, eu nunca o abandono e nunca sou por
ele abandonado. Aquele que, tendo se fixado na unidade, me adora, a mim que
habito em todos os seres, esse iogue habita em mim, seja qual for sua
maneira de viver” (VI, 30-31; grifos nossos).
Trata-se, ao mesmo tempo, do triunfo das práticas da ioga e da
exaltação da devoção mística (bhakti) na categoria de “via” suprema. De
mais a mais, afora na Bhagavadgita o conceito de graça, de perdão,
anunciando o desenvolvimento exuberante que atingirá na literatura vishenuísta
medieval. Mas o papel decisivo que ela teve no surto do taoísmo não esgota a
importância da Bhagavadgita. Essa obra sem-par, pedra angular da espiritualidade
indiana, é suscetível de ser valorizada em contextos múltiplos. Em virtude de
enfatizar a historicidade do homem, a solução oferecida pela Gita é
decerto a mais abrangente e, importa acrescentar, a mais adequada à Índia
moderna, já integrada no “circuito da história”. Pois, traduzido em termos
familiares aos ocidentais, o problema que se enfrenta na Gita é o
seguinte: como resolver a situação paradoxal criada pelo duplo fato de que o homem,
de um lado, se encontra no tempo, é devotado à história, e, de outro,
sabe que será “condenado” caso se deixe esgotar pela temporalidade e por sua
própria historicidade; que, por conseguinte, deve a qualquer preço encontrar no
mundo uma via que desemboca num plano transistórico e atemporal?
Já vimos a solução proposta por Krishna: cumprir com seu dever (svadharma)
no mundo, mas sem se deixar incitar pelo desejo dos frutos de suas ações (phalatrsnavairagya).
“Visto que o Universo inteiro é a Criação, ou até a epifania, de
Krishna(-Vishnu)”, viver no mundo, participar de suas estruturas, não constitui
uma “ação má”. A “má ação é acreditar que o mundo, o tempo e a história dispõem
de uma realidade própria e independente, ou seja, que nada existe de
diferente fora do mundo e da temporalidade. A ideia é sem dúvida
pan-indiana; no entanto, é na Bhagavadgita que ela recebe sua mais
coerente expressão.
“Separação”
e “totalização”
Para que se avalie o papel considerável da Bhagavadgita na
história religiosa da Índia, cumpre evocar as soluções propostas pelo sanquia,
pela ioga e pelo budismo. Segundo essas escolas, a libertação exigia, como
solução sine qua non, o desapego do mundo, ou até a negação da vida
humana enquanto modo de existir na históriac. A descoberta da “dor
universal” e do ciclo infinito das reencarnaçõesd havia orientado a
busca da salvação numa direção precisa: a libertação devia implicar a recusa
de seguir os impulsos da vida e as normas sociais. O refúgio na solidão e as práticas
ascéticas constituíam as preliminares indispensáveis. Por outro lado, a
salvação pela gnose era comparada a um “despertar”, a uma “libertação das peias”,
à “remoção de uma venda que cobria os olhos” etc. (cf. §136). Em síntese, a
salvação pressupunha um ato de ruptura: a desvinculação do mundo, lugar de
sofrimento e prisão amontoada de escravos.
A desvaloração religiosa do mundo foi facilitada pelo
desaparecimento do Deus criador. Para o Samkhya-Yoga, o Universo chegou
a ser Universo graças ao “instinto teleológico” da substância primordial (prakrti).
Para Buda, o problema nem sequer se coloca; de qualquer modo, Buda contesta a existência
de Deus. A desvaloração religiosa do mundo é por uma exaltação do espirito ou
do eu (atman, purusa). Para o próprio Buda, ainda que rejeite o atman
como mônada autônoma e irredutível, a libertação é obtida graças a um esforço
de natureza “espiritual”.
O endurecimento progressivo do dualismo espírito-matéria evoca o
desenvolvimento do dualismo religioso, culminando na expressão iraniana dos dois
princípios contrários, que representam o bem e o mal. Como já observamos várias
vezes, durante um longo período, a oposição bem/mal não passava de um dos
múltiplos exemplos de díades e polaridades – cósmicas, sociais, religiosas –
que asseguravam a alternância rítmica da vida e do mundo. Em suma, o que se
isolou nos dois princípios antagônicos, o bem e o mal, era no começo apenas uma
entre as numerosas expressões por meio das quais se traduziam os aspectos
antitéticos mas complementares da realidade: dia/noite: macho/fêmea; vida/morte;
fecundidade/esterilidade; saúde/doença etc.3 Em outras palavras, o bem e o mal
faziam parte do mesmo ritmo cósmico e, portanto, humano, que o pensamento chinês
formulou na alternância dos dois princípios yang e yin (§130).
A desvaloração do cosmo e da vida esboçada nos Upanixades conhece
as expressões mais rigorosas nas ontologias “dualistas” e nos métodos de separação
elaborados pelo Samkhya-Yoga e pelo budismo. Pode-se comparar o processo
de retesamento, que caracteriza essas etapas do pensamento religioso indiano,
com o endurecimento do dualismo iraniano, de Zaratustra no maniqueísmo.
Zaratustra, de forma análoga, considerava o mundo como uma “mistura” de
espiritual e de material. Ao efetuar corretamente o sacrifício, o fiel separava
sua essência celeste (menok) da manifestação material (gete).4 Contudo, para Zaratustra e para o masdeísmo, o Universo era obra de Aúra-Masda.
Só ulteriormente é que o mundo foi corrompido por Arimã. Em contrapartida, o
maniqueísmo e muitas seitas gnósticas atribuíam a Criação às forças demoníacas.
O mundo, a vida e o próprio homem são produto de uma série de atividades
dramáticas, sinistras ou criminosas. Bem feitas as contas, essa Criação
monstruosa e vã está fadada ao aniquilamento. A libertação é o resultado de um
longo e difícil esforço para separar o espirito da matéria, a luz das trevas
que a mantém cativa.
Não há dúvida que os diversos métodos e técnicas indianos, que
visam à libertação do espirito por uma série de “separações” cada vez mais
radicais, continuaram a ter prosélitos muito tempo depois do aparecimento da Bhagavadgita.
Pois a recusa da vida e sobretudo da existência condicionada pelas estruturas
sociopolíticas e pela história convertera-se, depois dos Upanixades, numa
prestigiosa solução soteriológica. Todavia, a Gita tinha conseguido
integrar numa audaciosa síntese todas as orientações religiosas indianas, e
portanto também as práticas ascéticas que implicam o abandono da comunidade e
das obrigações sociais. Mas sobretudo a Gita tinha efetuado a ressacralização
do cosmo, da vida universal e até da existência histórica do homem.
Como acabamos de ver, Vishnu-Krishna não é somente o Criador e o
senhor do mundo, ele ressantifica com sua presença a natureza inteira.
Por outra parte, é ainda Vishnu quem destrói periodicamente o Universo
ao término de cada ciclo cósmico. Em outras palavras, tudo é criado e
regido por Deus. Por conseguinte, os “aspectos negativos” da vida cósmica, da
existência individual e da história recebem uma significação religiosa. O homem
não é mais o refém de um cosmo-prisão que é criado isoladamente, já que o mundo
é obra de um Deus pessoal e onipotente. E, de mais a mais, um Deus que não
abandonou o mundo depois da Criação, mas que continua a nele estar presente e
ativo em todos os níveis, desde as estruturas materiais do cosmo até a do
homem. As calamidades cósmicas e as catástrofes históricas, e mesmo a
destruição periódica do Universo, são regidas por Vishnu-Krishna; elas são,
portanto, teofanias. Isso aproxima o deus da Bhagavadgita de Javé,
Criador do mundo e senhor da história, tal como o entenderam os profetas (cf. §121).
Por outro lado, não deixa de ter interesse lembrar que, do mesmo modo como a
revelação promovida pela Gita ocorreu durante uma pavorosa guerra de
extermínio, assim os profetas pregaram sob o “terror da história”, sob a ameaça
do iminente desaparecimento do povo judeu.
A tendência à totalização do real, que caracteriza o pensamento
indiano, encontra na Bhagavadgita uma das expressões mais convincentes.
Efetuada sob o signo de um Deus pessoal, essa totalização confere um valor
religioso até mesmo a manifestações inegáveis do “mal” e da “desventura”, como
a guerra, a traição ou o homicídioe. Mas é sobretudo a
ressacralização da vida e da existência humana que teve consequências
apreciáveis na história religiosa da Índia. Nos primeiros séculos de nossa era,
o tantrismo, analogamente, se esforçará por transformar as funções orgânicas
(alimentação, sexualidade etc.) em sacramentos. No entanto, esse tipo de
sacralização do corpo e da vida era obtido por intermédio de uma técnica
ióguica extremamente complexa e difícil. Com efeito, a iniciação tântrica
estava reservada a uma elite, ao passo que a mensagem da Bhagavadgita se
endereçava a todas as categorias de homens e encorajava todas as vocações
religiosas. Era privilégio da devoção tributada a um Deus ao mesmo tempo
pessoal e impessoal, criador e destruidor, encarnado e transcendente.
COMENTÁRIOS
a. Isso não deixa de ter influência sobre
toda interpretação ocidental da espiritualidade indiana; pois, se temos o
direito de reconstituir a história das doutrinas e técnicas indianas,
esforçando-nos por precisar-lhes as inovações, os desenvolvimentos e as
modificações sucessivos, não devemos esquecer que, através do prisma da Índia,
o contexto histórico de uma revelação tem apenas um alcance limitado: o “aparecimento”
ou o “desaparecimento” de uma expressão soteriológica no plano da historia nada
nos pode ensinar quanto a sua “origem”. Segundo a tradição indiana, tão
firmemente reafirmada por Krishna, os diversos “momentos históricos” – que são ao
mesmo tempo, momentos do devir cósmico – não criam a doutrina, mas
apenas põem a nu expressões apropriadas da mensagem intemporal. Cf. M.
Eliade, Le yoga, p. 161s.
b. O “homem de ação”, isto é, aquele que
não pode retirar-se da vida civil para construir sua salvação por meio do
conhecimento, da ascese ou da devoção mística.
c. É certo que a etapa “clássica” dos darsanas
sanquia e ioga é posterior de vários séculos à redação da Bhagavadgita.
Mas suas tendências características – especialmente os métodos elaborados com o
objetivo de separar o espirito da experiência psicomental – já são atestadas na
época dos Upanixades.
d. Lembremos que a fatalidade da
transmigração tornava inútil o suicídio.
e. Sob certo prisma, seria possível dizer
que a Bhagavadgita recupera a concepção arcaica da realidade total
imaginada como a alternância de princípios opostos mas complementares.
NOTAS
1. Particularmente nos trechos “pseudoépicos”
e didáticos (livros XII, XIII etc.).
2. Essa variedade de acepções corresponde a
uma real diversidade morfológica; cf. Eliade, Le yoga, p. 157s.
3. Ver Eliade, La nostalgie des origines,
p. 332s.
4. Cf. §104. Seguimos a interpretação de G.
Gnoli; cf. M. Eliade, “Spirit, light and seed”, p. 18s.
REFERÊNCIA
ELIADE,
Mircea. História das Crenças e das Ideias Religiosas, v. II: de Gautama
Buda ao Triunfo do Cristianismo. Roberto Cortes de Lacerda (trad.). 1. ed. Rio de
Janeiro: Zahar, 2011. p. 211-219.
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