The creation of Man, por Natalie Lennard |
“Pessoas que são incapazes de
se sentirem satisfeitas quando a vida corre tranqüila para elas. Podem até
atingir situações materiais e rejeitar, um belo dia, todas essas vantagens por
causa de certos escrúpulos imaginários. São pessoas que, em certos casos, se
sentem capazes de se consagrar ao bem-estar dos outros, fazendo completa
abstração de seus próprios interesses e necessidades vitais. A marca mais forte
dessas pessoas não é a exibição de seu sofrimento, mas o convívio com ele. Ele
se manifesta numa tendência autopunitiva muito forte, que tanto pode revelar-se
como uma grande capacidade de somatização de problemas psicológicos (isto é, a
transformação de traumas emocionais em doenças físicas reais), como numa
elaboração de rígidos conceitos morais que os afastam do cotidiano, das outras
pessoas em geral e principalmente dos prazeres. Sua insatisfação básica,
portanto, não se reservaria contra a vida, mas sim contra si próprio, uma vez
que ele foi estigmatizado pela marca da doença, já em si uma punição.”
Essa pode ser a descrição
psicológica de Bruce Wayne, mas foi retirada de um site de Umbanda, falando das
pessoas ligadas à energia da divindade africana Obaluaiê (também conhecido como
Omolu ou Omulu).
Esse é o Bruce Wayne dos
filmes de Christopher Nolan. E sua doença é o Batman. Obaluaiê se esconde por
trás de uma roupa de palha, e seu domínio são as cavernas. Bruce se esconde
atrás de uma roupa de morcego, e seu quartel-general é uma caverna.
Assim vemos como os arquétipos
dominam nossas mentes desde tempos imemoriais, e seguimos recontando as mesmas
histórias, que são NOSSAS histórias por serem parte de nossa estrutura mental.
Todos temos um pouco de Luke Skywalker, Han Solo, Coringa, Terminator ou
Batman, e nos identificamos com esses personagens em diferentes graus (alguns
até perigosamente, como o atirador do cinema). Quem conta uma história está
lidando com essa matéria-prima e nos guiando através dos arquétipos,
literalmente nos manipulando pra ter um deleite, um prazer, um terror, uma
paixão; e o cinema – com sua sala escura, som cristalino e tela gigante, numa
experiência pessoal e ao mesmo tempo coletiva – é a melhor mídia para nos
transportar para outros níveis de nós mesmos.
Christopher Nolan, seu irmão
Jonathan e David S. Goyer sabem como poucos hoje no cinema nos guiar através de
nossos próprios labirintos da mente. Eles escreveram a trilogia de Batman no
cinema e fecharam com chave de ouro essa série, com “O Cavaleiro das Trevas
Ressurge” (The Dark Knight Rises). Pra mim o segundo filme (“O Cavaleiro das
trevas”) continua sendo a obra-prima, o melhor de todos porque se beneficiou da
atuação inspiradíssima de Heath Ledger e de um roteiro até então nunca visto. O
primeiro filme eu sempre considerei um ótimo início pra o Batman, mas fraco em
termos de narrativa e emoção. O terceiro não só conclui de forma brilhante,
como ainda resgata a importância do primeiro para a mítica da série. Ou seja, o
que antes eram dois filmes separados agora é uma história coesa. O que torna
bastante recomendável, caso não tenha visto o primeiro, que o faça para melhor
apreciação do conteúdo.
Se você ainda não viu o filme
e está em dúvida se deve ver, saiba que ele é do mesmo nível que o segundo. Tem
uma abertura ESPETACULAR que me lembra os filmes de James Bond, e que foi
filmada em IMAX (pena que não tem no Recife, mas procurei ver no maior telão
daqui do estado, no Box Guararapes – sala 6). O som é fantástico! Cada tiro
assustava, parecia que tinha sido disparado ali, dentro da sala – e várias
vezes olhei ressabiado pra saída de incêndio, paranóico. As atuações estão –
como sempre – excelentes, com destaque para Michael Caine (Alfred), que merece
uma indicação ao Oscar.
Daqui pra baixo não leia se
não viu o filme. Faça um favor a você mesmo e se reserve o direito de ter
prazer com o filme. Saber de qualquer coisa daqui de baixo vai ARRUINAR sua
experiência. Tenho dito.
O filme é longo, mas tinha
espaço pra mais coisa. Por exemplo, vimos como o diretor desenvolveu bem a
coisa do cidadão reagindo ao caos que acontecia no segundo filme, mas no
terceiro ele quase não aparece. Gotham aqui está menos ativa, e mais
superficial. A coisa da Lei Marcial e da “redistribuição” de renda com um “judiciário”
de fachada (uma cópia oposta do que prendeu gente sem direito a apelação) podia
ter sido mais desenvolvida, assim como o drama dos policiais (sintetizado num
brilhante diálogo curto com o Comissário Gordon), mas aí o filme iria pra mais
de 3 horas de duração (quem sabe no Blu-Ray?).
Podemos analisar os filmes de
Batman através do processo desenvolvido pelo psiquiatra tcheco Stanislav Grof
(o Walter Bishop da vida real). Ele desenvolveu um método que permite acessar,
através de estados alterados da consciência, toda uma gama de sensações,
emoções intensas, reações instintivas que não nos são compreendidas, mas nos
são muito familiares. Ele agrupou este processo em 4 matrizes perinatais, que correspondem a processos arquetípicos.
1 - A
primeira matriz perinatal corresponde à concepção até a contração intra-uterina
Segundo Grof a base biológica
desta matriz é a unidade simbólica original do feto com o organismo materno.
Não há percepção de fronteira nem diferença entre interno e externo.
No
primeiro filme temos a gênese de Batman. Fica claro que Batman é uma criatura
gerada pela violência de Gotham City. Gotham City é, pois, sua mãe, e a
identificação de Batman com Gotham corresponde à do filho com a mãe em seu
estágio intra-uterino. Vemos Gotham/Batman ameaçados, mas a paz retorna ao
final.
2 - A
segunda matriz vai do momento da contração até a entrada do canal de nascimento
O início do parto biológico. O
feto se sente “expulso do paraíso”. Devido às contrações, o fluxo de sangue
diminui, e o espaço fica apertado. Sensações de estar preso, desemparado e
culpado são componentes simbólicos das memórias deste estágio. Grof destaca que
“uma tríade experiencial típica deste estado é uma sensação de morte, de ficar
louco e nunca mais voltar”.
No
segundo filme vemos isso representado na figura do Coringa (outro filho de
Gotham), mas também no Batman, que ao final se sente inadequado em relação a
sua mãe (Gotham), que quer expulsá-lo (Batman até perde o conforto de sua
caverna). A cena final é Batman em sua moto saindo de um túnel em direção a uma
réstia de luz:
3 - A
terceira matriz está completa quando o feto atravessa o canal de nascimento
Nesta etapa os riscos são
imensos. A pressão exercida pelo canal pode conduzir a estados de sufocamento
extremo, além do que ao final do parto o feto pode entrar em contato íntimo com
material biológico materno (sangue, muco, urina e fezes).
No
terceiro filme o vilão de Batman é Bane, que usa uma máscara pra poder respirar
direito, e vive no esgoto.
No trabalho “Uma reflexão
sobre a morte no contexto da Psicologia Transpessoal”, que usei como base,
vemos textualmente:
“Segundo Grof (1997, p.40), a
pressão exercida pelas “contrações uterinas que oscilam entre 22,5 e 45 kg” são
responsáveis pelo caráter titânico dessa experiência. Identificações com
elementos violentos da natureza emergem assim como explosões de bombas atômicas, tanques, foguetes, usinas nucleares.
Temas arquetípicos e mitológicos como imagens
do juízo final, purgatório, batalhas entre luz e sombra ou deuses e titãs
estão relacionados a esta matriz.
A essa altura vocês devem
estar de queixo caído, como eu fiquei, mas tem mais:
4 - A quarta matriz corresponde ao nascimento como um corpo independente
Ao nível simbólico, esse é o
momento de morte e renascimento, aparecendo nas sessões experienciais como a
morte do ego. Quando devidamente trabalhada essa experiência, apesar do caráter
aterrador, possibilita-se uma maior integração com o presente, levando o indivíduo a uma maior liberdade interior. São
comuns relatos de visões de luz e lugares tranquilos.
O
terceiro filme termina com a morte do Batman e renascimento como Bruce Wayne,
finalmente livre internamente, vivendo o presente, numa tranquila e iluminada
cena em Florença.
Vejamos uma análise mais
detalhada desse processo de nascimento, morte e renascimento, acompanhando
todos os filmes:
No primeiro filme Bruce cai
num poço, onde se confronta com seu medo (morcegos, escuridão, abandono).
Posteriormente ele desce até lá voluntariamente, e absorve (toma pra si) esse
medo, convertendo-o numa arma (essa é a origem do Batman). O que Bruce evoca (e
canaliza) é uma energia primordial, avassaladora, nutrida do terror, do medo,
das sombras, que faz as engrenagens funcionarem à força e cujo preço é o
consumo de sua própria alma. Esse é o primeiro sacrifício por Gotham. No
segundo filme temos o confronto com esse medo projetado no outro: o Coringa é o
que aconteceria se a integração e conversão desse medo numa arma se desse de
forma desordenada. O Coringa é o Batman que deu errado, e um aviso pra Bruce
Wayne de onde esse caminho poderia lhe levar. A beleza aqui é que a cidade de
Gotham surge mais claramente como um personagem central: o Coringa espalha o
ódio surgido do medo para a cidade, que se volta contra si mesma. Batman então
se sacrifica pela segunda vez, quando toma a si mesmo como exemplo do que NÃO
se deve ser: um justiceiro, um fora-da-lei. Batman então renega sua sombra e
deixa a luz (a face sã de Harvey Dent, baseada na Justiça, no Direito) guiar
Gotham. Numa pessoa equilibrada, a personalidade de Bruce Wayne deveria
naturalmente emergir e assumir o destino de sua vida (deixando de ser uma mera
máscara para o Batman), mas sabemos que sua alma atormentada está longe disso.
No terceiro filme vemos Batman e Bruce como uma pessoa só, essa treva
reprimida, auto-condenada ao ostracismo. Gotham não precisa mais dele. Alfred,
o mordomo, é quem faz o papel da luz, da consciência, que através de uma última
cartada (num dos momentos mais emocionantes do filme) tenta, através do choque,
fazer o Bruce despertar. O choque não dá certo e só funciona pra que as trevas
o suguem ainda mais, pra que Bruce se isole ainda mais no buraco em que se
meteu (e a metáfora visual da caverna, o útero da mãe-Terra – que abrigou esse
órfão – não poderia ser mais precisa e desesperadora).
Bruce perde toda a fortuna, e
quando a gente pensa que as coisas não podem piorar vem Bane, lasca a coluna dele
e o joga num buraco. Esse é – literalmente – o fundo do poço da jornada do
herói. Daqui não tem como ir mais pra baixo. A parte da prisão, embora pra mim
não tenha sido bem conduzida como forma de entretenimento (roteiro e direção)
é, metafórica e arquetipicamente perfeita. Se Bruce/Batman estava preso no
útero da mãe-Terra, nas trevas, a saída do poço representa o canal vaginal, o
renascimento, o caminho para a luz! E que pra ser feito precisa se inspirar
numa CRIANÇA! Que – depois descobrimos – é do sexo FEMININO! Beatriz, a Anima,
caramba!
RISE!
E Bruce ascendeu para a luz,
quando desatou as cordas e deu um salto de fé. Afinal, não nascemos para o
mundo com anteparas de segurança. E o que segue é resolução. Uma linda e
inesquecível resolução. Esqueçam as brigas, os efeitos, as centenas de
figurantes, o que me emociona nesse filme são as pessoas. E esse filme, no
fundo, é sobre Bruce. Assim como em “A Origem”, o que há de mais belo nesse
filme é a história de redenção interna de um homem, Bruce Wayne. Nele, Bruce se
desfaz da maldição de ser o Batman. E VIVE!
Li um crítico falando que o
filme se tornou um pouco longo devido ao desenvolvimento – desnecessário pra
ele – da personagem Selina “Mulher-Gato” Kyle, mas ela é essencial nessa
história! Não para o Batman, mas para o Bruce! E Nolan está o tempo todo nos
contando a história de Bruce! Há uma beleza que vai além do complexo de Édipo
quando Bruce se encanta com a visão de Selina com o colar de pérolas da mãe. É
a beleza de voltar a enxergar o feminino, com todas as suas potencialidades de
transformação.
RISE!
E o morcego ascende, em direção
ao Sol e carregando seu fardo – uma
bomba nuclear: seu terceiro e derradeiro sacrifício por Gotham.
E seus olhos se acostumam com
o Sol – a Luz – e depois tudo o que ele viveu, tudo o que ele construiu e lutou
insanamente contra si e contra os outros para manter se desfaz, em luz...
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