Mestre de 1515 (Jorge Afonso?), (sec. XVI)Pintura (óleo sobre madeira de carvalho): retábulo da Igreja da Madre de Deus, c. 1515, Alt 160,5 x Lg 124,5 cm.Museu Nacional de Arte Antiga. Proveniência: Igreja da Madre de Deus, Lisboa
OBSERVANDO
A “ADORAÇÃO DOS PASTORES”: UMA HISTÓRIA DAS RELIGIÕES NUMA CENA BÍBLICA
Por Paulo
Mendes Pinto*
Se há peças obrigatórias na
tradição do presépio, elas são os pastorinhos que tanto cativam a atenção das
crianças na época natalícia
E
estavam pastores na mesma região pernoitando nos campos e guardando os seus
rebanhos durante a noite. E um anjo do Senhor postou-se diante deles e a glória
do Senhor brilhou diante à sua volta e temeram um grande temor. E disse-lhes o
anjo: «Não temais, eis que vos anuncio uma grande alegria, que será para todo o
povo, porque foi dado à luz para vós hoje um salvador, que é Cristo Senhor na
cidade de David. E isto será para vós o sinal: encontrareis um bebé envolto em
panos e deitado numa manjedoura.» E de súbito surgiu, juntamente com o anojo,
uma multidão do exército celeste, louvando a Deus dizendo:
«Glória
nas alturas a Deus! E, sobre a terra, paz entre as pessoas de boa vontade.»
E
aconteceu que, quando os anjos se retiraram de junto deles para o céu, os
pastores disseram uns aos outros: «Vamos até Belém e vejamos esta palavra que
aconteceu e que o Senhor nos deu a conhecer.» E foram depressa e encontraram
Maria e José e o menino deitado na manjedoura.
Bíblia, Lucas 2, 8-16 (tradução de Frederico
Lourenço, Bíblia, Vol. I, Novo Testamento, Lisboa, 2016, pp. 229-230.)
A chamada Adoração dos Pastores é um
marco na construção da imagem do Cristo enquanto menino. Se Mateus coloca uns
magos de inspiração babilónia a adorar Jesus, Lucas prefere, numa lógica mais
pueril, centrar-se na figura dos pastores.
No imaginário colectivo, esta cena
ganhou destaque e um lugar de carinho que poucas outras adquiriram no quadro
largo da vida de Jesus. Se há peças obrigatórias na tradição do presépio, elas
são os pastorinhos que tanto cativam a atenção das crianças na época natalícia.
Quem são estes pastores, que em tantas
representações surgem a ofertar ao menino “Cristo Senhor” o que de melhor têm:
os produtos da terra, do seu gado, e do seu trabalho? Nada há de acaso nesta
descrição bíblica. Em primeiro lugar, nunca nada há de acaso nos textos de
Lucas. De facto, este possível discípulo de Paulo, médico de profissão, era um
inquiridor nato que declara nos primeiros versículos deste Evangelho tudo ter
indagado para produzir um texto, diríamos hoje, sustentado e rigoroso.
Os pastores são induzidos para a acção.
Os anjos aparecem-lhes, informam, e prescrevem a visita. Porquê, então, os
pastores, com tantos outros grupos possíveis para colocar a adorar Jesus? É que
os pastores são plenos de significados importantes para o nascente
cristianismo. Se pensarmos que o texto descreve uma cena em ambiente judaico,
então os pastores são os que se afastam da cidade, que trabalham com gado
impuro, são a imagem dos mais pequenos e frágeis a quem Jesus se vem
apresentar.
Mas o sentido do texto é mais rico:
tendo em conta que o público-alvo deste texto de Lucas era, assumidamente, o
grupo dos recém-cristãos gregos, então ser pastor tem outros ecos, não tão
negativos mas muito mais fortes em termos religiosos. A imagem do pastor remete
para a espiritualidade, para a purificação. Por exemplo, Hesíodo, o pai da
poesia grega, era pastor. Estamos, claramente, no caminho da imagem do Bom
Pastor, uma das imagens mais ricas em termos teológicos e espirituais.
Perante público-alvo tão específico neste
texto de Lucas, já com algum conhecimento do cristianismo e culturalmente
helenizados, é de notar que é neste texto que é usada a caracterização de Jesus
como o «Cristo Senhor», uma forma de afirmar, inquestionavelmente, a realeza de
Jesus como messiânica. Se no episódio dos chamados Reis Magos se coloca a
imagem da realeza a adorar o menino Jesus, aqui são colocados os mais simples
na mesma função. De ambos Jesus recebe tributo.
E é também de tributo que temos de
falar quando olhamos para este episódio, profusamente pintado na arte
portuguesa. De facto, e apesar de nada o texto bíblico dizer sobre as oferendas
dadas à Sagrada Família, nenhum dos pintores optou por seguir esse desprendimento
do texto. Efectivamente, e como que reproduzindo a atitude que se esperava
perante as instituições da Igreja, os pastores, quais camponeses dos séculos
XVI ou XVII, oferecem ovos e animais da sua produção.
A cesta de ovos, que nos faz lembrar tão
bem a riqueza dos doces conventuais, surge em grande plano no grupo azulejar
que apresentamos. Trata-se de uma obra-prima da produção nacional de
quinhentos, e estava integrado numa figuração de retábulo de marcenaria
lavrada, na capela de N. Senhora da Vida. Significativamente, ladeando esta
representação central, estavam S. João Batista e, com toda a naturalidade, o
próprio evangelista que retrata esta cena, Lucas.
No quadro de Josefa de Óbidos, um
século mais tardio, os cestos são já em número de dois, sendo ainda oferecido
um cabrito. Estas oferendas ganham, nesta obra, um grande cuidado por parte de
uma pintora que teve nas naturezas mortas um dos seus campos mais profícuos de
produção.
Regressando ao século XVI, no quadro do
Mestre de 1515, temos novamente uma figuração que se afasta do actual
estereótipo da gruta, preferindo-se a ruína, ao mesmo tempo que temos um
significativo e pormenorizado vislumbre sobre os instrumentos musicais de
início de quinhentos. Também neste caso, as ofertas da lavoura, mais
propriamente, os ovos, estão presentes, como que lembrando aos crentes, quase
todos eles agricultores, que deveriam repetir esse gesto supostamente iniciado
mal nascera o Salvador.
(Imagens e dados das Obras de Arte
retiradas do site MatrixPix, instrumento da Direção-Geral do Património
Cultural (DGPC): http://www.matrizpix.dgpc.pt)
Marçal
de Matos [atribuída], sec. XVIPainel de azulejos (barro vidrado,
majólica), c.1580, Alt 465 x Lg 500 cm Museu Nacional do
Azulejo. Proveniência: antiga Igreja de Santo André, Capela de Nossa Senhora da
Vida, Lisboa
Josefa
D’Óbidos (1630-1684)Pintura: óleo sobre tela, 1669. Alt 150 x Lg 164 cm.
Museu Nacional de Arte AntigaProveniência: Convento arrábido de Santa
Maria Madalena (Alcobaça)
*Coordenador
da área de Ciência das Religiões da Universidade Lusófona. Embaixador do
Parlamento Mundial das Religiões e fundador da European Academy of Religions. É
especializado em História das Religiões Antigas (mitologia e literaturas
comparadas), mas dedica parte dos seus trabalhos a questões relacionadas com a
relação entre o Estado e as religiões. Na área da Ciência das Religiões, é o
responsável por diversos projectos de investigação, especialmente na relação
entre as Religiões e a escola, assim como no desenvolvimento de uma cultura
sobre as religiões como componente de cidadania. É ainda investigador da
Cátedra de Estudos Sefarditas «Alberto Benveniste» da Universidade de Lisboa. É
Membro do Conselho Consultivo da Associação de Professores de História. É
director da Revista Lusófona de Ciência das Religiões. Recebeu a Medalha de
Ouro de Mérito Académico da Un. Lusófona em 2013.
REFERÊNCIA:
PINTO, Paulo Mendes. OBSERVANDO
A "ADORAÇÃO DOS PASTORES": UMA HISTÓRIA DAS RELIGIÕES NUMA CENA
BÍBLICA. Disponível em:
<http://visao.sapo.pt/opiniao/bolsa-de-especialistas/2017-12-26-Observando-a-Adoracao-dos-Pastores-Uma-Historia-das-Religioes-numa-cena-biblica>.
Acesso em: 29 dez. 2017.