Por
Rodrigo Cavalcante
Cruzada.
No mundo pós-11 de setembro, a simples menção dessa palavra causa polêmica.
Após o ataque às torres gêmeas, o presidente George W. Bush teve de pedir
desculpas por usar o termo “cruzada” para nomear sua guerra contra o
terrorismo. Osama bin Laden aproveitou a gafe. Em seu pronunciamento, o
terrorista classificou a guerra no Afeganistão de “cruzada religiosa contra os
muçulmanos”. A palavra ressuscitava dos livros de história. Só faltava
Hollywood se interessar pelo assunto. Não deu outra.
O
enredo do filme Cruzadas, de Ridley Scott, que está chegando aos cinemas, gira
em torno de um ferreiro que se torna cruzado. Em tempos de Guerra no Iraque,
nada mais natural que um filme com tema tão espinhoso despertasse protestos
antes mesmo do lançamento. Em agosto de 2004, o jornal The New York Times
entregou o roteiro de Cruzadas para teólogos cristãos e islâmicos. Os cristãos
não viram problema, mas os muçulmanos acusaram o filme de estar cheio de erros.
Afinal,
o que foram as cruzadas? Um ato de fé e heroísmo? Um massacre covarde? “Não faz
sentido buscar hoje bandidos e mocinhos”, diz o holandês Peter Demant,
historiador da USP. “As batalhas tiveram significados diferentes para o
Ocidente e o Oriente”. Existem, portanto, duas histórias das Cruzadas. Nada
melhor do que narrar essa história dos dois pontos de vista. Como você poderá
constatar nos dois textos que correm nas páginas seguintes, as versões não se
contradizem. São olhares diferentes que ajudam a entender por que, nove séculos
depois, o assunto continua fascinando – e causando polêmica – nos dois lados do
mundo.
A
VERSÃO DOS CRUZADOS
O
exército de Cristo
No
dia 27 de novembro de 1095, o papa Urbano II fez um comício ao ar livre nas
cercanias da cidade de Clermont, na França. Na audiência, além de muitos
bispos, havia nobres e cavaleiros. Depois desse sermão, o mundo nunca mais
seria o mesmo.
No
discurso, o papa tentou convencer os espectadores a embarcar numa missão que
parecia impossível: cruzar 3 mil quilômetros até a cidade santa de Jerusalém e
expulsar os muçulmanos, que dominavam o lugar desde 638. Segundo os
historiadores, Urbano II deve ter usado uma linguagem vibrante e provavelmente
falou dos horrores que os peregrinos cristãos à Terra Santa estavam vivendo. Do
alto de sua autoridade divina de substituto de São Pedro na Igreja, o papa
prometeu: quem lutasse contra os infiéis ganharia perdão de todos os pecados e
lugar garantido no paraíso. Um prêmio tentador no imaginário do homem cristão
medieval, sempre atormentado pela ameaça de queimar no inferno.
A
reação da multidão foi imediata. Gritos de “Essa é a vontade de Deus” começaram
a ecoar. A pregação mal havia terminado e o bispo Ademar de Monteil, num gesto
provavelmente ensaiado, ajoelhou-se diante do papa e “tomou a cruz”, ritual de
alistamento em que o voluntário recebia uma cruz de pano que deveria ser
costurada na altura do ombro do uniforme de batalha. Ademar embarcaria na
primeira cruzada. Dali em diante, aquela cruz passaria a identificar os
“soldados de Cristo”, ou, simplesmente, “cruzados”.
Segundo
os historiadores, a intenção do papa era convocar apenas cavaleiros bem
preparados. Mas seu discurso empolgou especialmente os camponeses pobres que
tinham pouco a perder. As cruzadas terminariam entrando para a história como o
maior movimento populacional da Idade Média, redefinindo para sempre o mapa do
mundo.
A
ameaça do Islã
No
século 11, não havia dúvidas: o Islã era a religião mais forte do planeta. Em
menos de cinco séculos, desde a morte de Maomé, em 632, a palavra de Alá tinha
conquistado a Península Arábica, o norte da África, a Ásia Central, Espanha,
Portugal, grande parte da Índia e até um pedacinho da China.
Não
era uma hegemonia apenas religiosa. Os muçulmanos superavam os cristãos em
ramos como a matemática, a astronomia, a medicina e a química. Não havia cidade
européia que se comparasse aos centros islâmicos. O Cairo sozinho abrigava
tanta gente quanto Paris, Veneza e Florença juntas, as três maiores cidades
cristãs da época.
Foi
quando chegou ao papa um pedido de ajuda do Império Cristão Bizantino. A sede
do império, Constantinopla (atual Istambul, capital da Turquia), era o maior centro
do cristianismo naquela parte do mundo. Os bizantinos estavam preocupados com a
presença nas suas fronteiras dos muçulmanos, naquela época governados por uma
agressiva monarquia de etnia turca, os seljúcidas. Originados de uma tribo de
saqueadores nômades das estepes da Ásia Central, os seljúcidas haviam
conquistado os territórios do califado de Bagdá no século 10 e, após se
converterem ao islamismo, tornaram-se a maior força muçulmana. E eles queriam
mais. Já tinham tomado a cidade bizantina de Nicéia e estavam a menos de 160
quilômetros de Constantinopla, o equivalente a três dias a cavalo.
Naquele
momento, não restava alternativa ao imperador bizantino Aleixo Comenos a não
ser apelar para seus confrades europeus. Só que, quando o imperador avistou a
primeira leva de combatentes cristãos, teve motivos de sobra para se preocupar.
Cruzada
Popular
Se é
verdade que a intenção do papa era enviar um exército forte e organizado,
formado pela elite dos cavaleiros, ele se frustrou um pouquinho. Uma série de
pregadores populares começaram a incitar o povão a atacar os “infiéis”. A
promessa de remissão dos pecados, aliada à chance de pilhar tesouros lendários,
era bem atraente. Velhos, mulheres e crianças resolveram se lançar na aventura.
O
primeiro desses exércitos foi liderado por um pregador conhecido como Pedro, o
Eremita. Já no caminho, seus seguidores criaram tumultos, massacrando
comunidades judaicas em cidades como Trier e Colônia, na atual Alemanha. “As
cruzadas fugiram do controle”, diz a professora Leila Rodrigues da Silva,
professora de História Medieval da UFRJ. “É provável que muitas dessas pessoas
nem soubessem diferenciar um judeu de um muçulmano.”
Ainda
assim, o imperador bizantino recebeu os seguidores do Eremita em
Constantinopla. Prudentemente, Aleixo aconselhou o grupo a aguardar a chegada
de tropas mais bem equipadas. Mas a turba começou a saquear a cidade e foi
obrigada a se alojar fora de Constantinopla, perto da fronteira muçulmana. Até
que, em agosto de 1096, o bando inquieto cansou-se de esperar e partiu para a
ofensiva. Foi massacrado.
Somente
dois meses após essa “cruzada popular” começaram a chegar a Constantinopla os
primeiros exércitos liderados por nobres. Esses homens estavam interessados em
mais do que um lugarzinho no céu. “Nessa época, a Europa vivia um boom
populacional e a pressão pela posse de terras era muito grande”, diz a
historiadora da Idade Média Fátima Fernandes, da UFPR. “Os filhos de nobres que
não eram primogênitos só podiam enriquecer por meio de um bom casamento, algo
cada vez mais difícil. As cruzadas abriram uma esperança para eles”, diz ela.
Até
que foi fácil
O
primeiro líder nobre a chegar a Constantinopla, em dezembro de 1096, foi o
conde Hugo de Vermandois, primo do rei da França, que veio pelo mar com seus
cavaleiros e soldados. Logo depois, vindo pela mesma rota, aportou o duque da
Baixa-Lorena, Godofredo de Bouillon, acompanhado de irmãos e primos. Para
financiar sua participação na cruzada, Godofredo vendera seu castelo – o que
prova que não pretendia voltar para casa.
Em
abril de 1097, cerca de 40 mil homens atravessaram o estreito de Bósforo (que
separa a Europa da Ásia) sem encontrar resistência. O governante muçulmano, o
sultão turco Kilij Arslan, iludido pela facilidade com que havia derrotado os
pobres cruzados do Eremita, estava mais preocupado com disputas internas com
vizinhos muçulmanos do que com a chegada de um novo contingente de cristãos.
Como o sultão iria perceber apenas tarde demais, esse seria o maior erro de sua
vida.
Dessa
vez, bem equipados com escudos, armaduras e cavalaria, os cruzados cercaram e
tomaram Nicéia, devolvendo-a aos bizantinos. Em outubro de 1097, eles chegaram
a Antióquia, conquistando aquela que havia sido uma das principais cidades do
Império Romano. Seis meses depois, os cristãos partiram em direção a Jerusalém.
A essa altura, restavam 13 mil homens, um terço do contingente inicial. Após um
mês de cerco, em 13 de julho de 1099, os cruzados conseguiram finalmente entrar
na cidade santa. No dia 15 venceram as últimas resistências.
Para
a maioria deles, a conquista fora um milagre. Menos de quatro anos após a
pregação em Clermont, os cristãos vitoriosos saíam em procissão para o
Santuário do Santo Sepulcro, onde Cristo teria ressuscitado. O papa Urbano II
morreu duas semanas depois, sem ter recebido a boa notícia da vitória. Mas ele
também foi poupado das más notícias que chegariam depois.
Derrota
após derrota
Foram
criados quatro Estados cristãos nos territórios conquistados. Ao sul, o mais
importante, o Reino de Jerusalém, governado por Godofredo de Bouillon. Um pouco
acima estavam o Estado de Trípoli, o Principado de Antióquia e o Condado de
Edessa. Os chefes desses Estados logo perceberam que a permanência lá não seria
fácil.
Os
governantes cristãos logo perderam o apoio dos bizantinos, porque se recusavam
a reconhecer a soberania do Império na região e não haviam demonstrado nenhum
escrúpulo em substituir os patriarcas da Igreja Ortodoxa Bizantina por bispos
oriundos da Igreja Católica Romana. Para piorar, não havia soldados suficientes
para a formação de grandes exércitos. Logo após a conquista de Jerusalém,
milhares de cavaleiros regressaram à Europa.
Em
1144, a perda de Edessa para os muçulmanos foi a primeira prova da
vulnerabilidade cristã. Com o objetivo de recuperar o território perdido, o
papa Eugênio III lançou uma segunda cruzada em 1145, liderada por Luís VII, rei
da França. Foi um fracasso. O filme que está chegando aos cinemas retrata as
cruzadas a partir desse período.
Mas
o pior estava por vir. Em 1187, sob a liderança de Saladino – o sultão que
unificou os muçulmanos e até hoje é venerado por seguidores do Islã no mundo
inteiro –, os muçulmanos reconquistaram o Reino de Jerusalém. Era o começo do
fim.
A
perda de Jerusalém foi um choque para a Europa cristã, apesar de Saladino ter
permitido peregrinações ao Santo Sepulcro. Dali em diante, houve pelo menos
mais quatro grandes cruzadas em direção à Terra Santa e os cristãos
colecionaram derrotas e vexames. Um dos piores foi o de 1204, quando uma
cruzada acabou atacando e saqueando a cidade cristã de Constantinopla, deixando
cicatrizes profundas na relação entre os cristãos do Oriente e do Ocidente. Em
1212, organizou-se uma cruzada formada por adolescentes, a “Cruzada das
Crianças”. Seus participantes, na maioria, terminaram mortos ou vendidos como
escravos.
A
herança cruzada
Mas,
afinal, qual foi a herança das cruzadas para o Ocidente?
Segundo
os historiadores, elas deixaram diversas marcas negativas, como a separação da
Igreja do Ocidente e do Oriente e um rastro de violência que fez aumentar a
desconfiança entre cristãos e muçulmanos nos anos seguintes.
Em
compensação, é inegável que a Europa, apesar de não ter conquistado seus
objetivos, saiu fortalecida. As cruzadas reforçaram a autoridade dos reis,
abrindo caminho para a criação dos Estados Nacionais. Elas também impulsionaram
o comércio com o Oriente, enriquecendo as cidades italianas que iriam ter papel
fundamental na sofisticação das transações financeiras até resultar na criação
do sistema bancário. Além disso, reforçaram a identidade cristã no Ocidente. E
paradoxalmente, apresentaram os costumes orientais aos ocidentais, dos tapetes
às especiarias. Essas novidades gerariam curiosidade na Europa, o que
impulsionaria a busca por outras terras. Como o Brasil.
Mas
isso tudo é só metade da história. Volte à página 54 para conhecer o lado menos
conhecido das cruzadas.
Para
saber mais
Na
livraria:
The Oxford Ilustrated History of The Crusades -
Jonathan Riley-Smith (org.), Oxford University Press, Reino Unido, 2001
Dicionário Temático do
Ocidente Medieval - Jacques Le Goff e Jean-Claude Schmitt (orgs), Universidade
do Sagrado Coração, 2002
Os Templários - Piers Paul
Read, Imago, 2000
O Livro de Ouro dos Papas -
Paul Johnson, Ediouro, 1998
A
VERSÃO DOS ÁRABES
A
invasão bárbara
Foi
um dia de terror. Em 15 de julho de 1099, milhares de guerreiros loiros
entraram em Jerusalém matando adultos, velhos e crianças, estuprando as mulheres
e saqueando mesquitas e casas. As ruas se transformaram numa imensa poça de
sangue. Os poucos sobreviventes tiveram de enterrar os parentes rapidamente
antes que eles próprios fossem presos e vendidos como escravos. Dois dias
depois, não havia sequer um muçulmano em Jerusalém. Tampouco havia judeus. Nas
primeiras horas da batalha, muitos deles participaram da defesa do seu bairro,
a Juderia. Mas, quando os cavaleiros invadiram as ruas, os judeus entraram em
pânico. A comunidade inteira, repetindo um gesto ancestral, reuniu-se na
sinagoga para orar. Os invasores bloquearam as saídas, jogaram lenha e atearam
fogo à sinagoga. Os judeus que não morreram queimados foram assassinados na
rua.
A
cena é narrada em As Cruzadas Vistas pelos Árabes, do libanês radicado na
França Amin Maalouf. Seu livro é uma tentativa de contar as cruzadas do ponto
de vista de quem estava do lado de lá. Para os cronistas muçulmanos, na
verdade, não existiram cruzadas. As investidas cristãs em seus territórios
ficariam conhecidas como as invasões dos francos (porque a maioria dos cruzados
falava o francês), um período de terror e brutalidade na história do Islã.
Lá
vêm eles
A
primeira investida dos francos, ocorrida em 1096, três anos antes do terrível
ataque a Jerusalém, não chegou a assustar o sultão turco Kilij Arslan, que
comandava os territórios do atual Afeganistão até o que viria a se chamar,
séculos depois, de Turquia. Liderado por um tal de Pedro, o Eremita, o grupo
que se aproximava de Constantinopla com a ameaça de exterminar todos os
muçulmanos da região mais parecia um bando de mendigos maltrapilhos. Entre os
guerreiros, havia uma multidão de mulheres, velhos e crianças – um inimigo
muito menos ameaçador do que os cavaleiros mercenários que o sultão estava
acostumado a enfrentar.
Durante
um mês, mais ou menos, tudo o que os cavaleiros turcos fizeram foi observar a
movimentação dos invasores, que se ocupavam apenas de saquear as regiões
próximas do acampamento onde foram alojados. Quando parte dos europeus resolveu
partir em direção às muralhas de Nicéia, cidade dominada pelos muçulmanos, uma
primeira patrulha de soldados do sultão foi enviada, sem sucesso, para
barrá-los. Animado pela primeira vitória, o exército do Eremita continuou o
ataque a Nicéia, tomou uma fortaleza da região e comemorou se embriagando, sem
saber que estava caindo numa emboscada. O sultão mandou seus cavaleiros
cercarem a fortaleza e cortarem os canais que levavam àgua aos invasores. Foi
só esperar que a sede se encarregasse de aniquilá-los e derrotá-los, o que
levou cerca de uma semana.
Quanto
ao restante dos cruzados maltrapilhos, foi ainda mais fácil exterminá-los. Tão
logo os francos tentaram uma ofensiva, marchando lentamente e levantando uma
nuvem de poeira, foram recebidos por um ataque de flechas. A maioria morreu ali
mesmo, já que não dispunha de nenhuma proteção. Os que sobreviveram fugiram em
pânico. O sultão, que havia ouvido histórias temíveis sobre os francos,
respirou aliviado. Mal imaginava ele que aquela era apenas a primeira invasão e
que cavaleiros bem mais preparados ainda estavam por vir.
Ataque
surpresa
Em
meados de 1097, um ano depois da vitória sobre os homens do Eremita, os
muçulmanos não estavam lá muito preocupados com a notícia da chegada de novos
invasores. Mas a segunda leva de cavaleiros francos que marchava em direção aos
seus territórios em nada se parecia com aqueles maltrapilhos ingênuos e
despreparados. Bem protegidos com armaduras e escudos, os cavaleiros que agora
chegavam não seriam presa fácil para as flechas lançadas pelos arqueiros
turcos. Quando os muçulmanos se deram conta dessa diferença, já era tarde
demais.
Em
poucos dias, os cruzados invadiram a cidade de Nicéia e continuaram marchando
como um verdadeiro furacão. Os exércitos turcos mal acabavam de lutar contra
uma leva de invasores e, pronto, chegava um novo contingente ainda mais
numeroso. Em pânico, a população de cidades como Antióquia avistava desesperada
a chegada daqueles cavaleiros. Não havia nada a fazer. Alguns muçulmanos
acreditavam até que se tratava do fim do mundo. Relatos do período diziam que o
final dos tempos seria precedido pelo nascer de um gigantesco sol negro, vindo
do Oeste, acompanhado de hordas de bárbaros. Se o sol negro ainda não havia
aparecido, os bárbaros, ao menos, já davam as caras.
A
nova ofensiva, que culminou com a brutal invasão de Jerusalém, em julho de
1099, alteraria para sempre a visão que o Oriente tinha do Ocidente. Os saques,
estupros e assassinatos de crianças não eram nada condizentes com o tratamento
que os próprios mulçumanos sempre deram aos cristãos e judeus que viviam em
seus territórios. Quando eles chegaram a Jerusalém, no século 7, fizeram
questão de preservar as igrejas cristãs e sinagogas judaicas. O acordo era
claro: desde que esses povos não insultassem o profeta e não deixassem de pagar
seus impostos, eles sempre teriam a liberdade para viver de acordo com suas
crenças e suas próprias leis. Os poucos casos de governos hostis aos judeus e
cristãos não passavam de exceções em longos períodos de convivência pacífica.
Com
a queda de Jerusalém e a derrota para os francos, os mulçumanos aprenderam uma
difícil lição: enquanto estivessem desunidos, o futuro do Islã estaria
comprometido. Para que essa união fosse possível, contudo, seria necessário o
surgimento de um líder respeitado pela maioria dos muçulmanos. Ele apareceu
quase um século depois.
A
reação islâmica
O
homem que se transformaria no herói da reação muçulmana era um soldado curdo
chamado Salah al-Din, conhecido no Ocidente como Saladino. Até hoje seu nome é
venerado como símbolo da resistência contra o Ocidente – o próprio Saddam
Hussein, conhecido pelas atrocidades cometidas contra os curdos de seu país,
citou várias vezes o nome de Saladino aos iraquianos nos dias que antecederam a
invasão americana.
Décadas
após a fundação dos reinos cristãos no Oriente, os muçulmanos ainda não haviam
conseguido retomar a maioria dos territórios perdidos. As disputas entre os
diversos califas e sultões tampouco ajudavam na reconquista. Em 1174, ao
tornar-se o soberano mais importante do mundo muçulmano, Saladino já pensava em
como unir os estados islâmicos para uma contra-ofensiva.
A
chave do sucesso de Saladino era um misto de profunda convicção religiosa e
pragmatismo militar. Para derrotar os cruzados, ele pregava a união de todos os
muçulmanos em torno da jihad, a guerra santa do Islã. Relatos contam que ele
costumava reclamar que os muçulmanos não lutavam com o mesmo fervor dos
cristãos. Após organizar os exércitos e treinar novas técnicas de combate, ele
conseguiria o que muitos consideravam impossível: em 1187, reconquistou a
cidade sagrada de Jerusalém, que havia 88 anos estava nas mãos dos cristãos.
Após entrarem na cidade, muitos muçulmanos quiseram destruir a Igreja do Santo
Sepulcro e matar todos os cristãos por vingança pelas atrocidades cometidas na
invasão dos cruzados. Saladino, porém, fez questão de conter os ânimos dos seus
soldados, preservando tanto a igreja quanto a vida dos cristãos.
Como
já era esperado, a queda de Jerusalém foi um choque para o Ocidente. A cada
derrota no front cristão, novas cruzadas eram enviadas ao Oriente, arrastando a
batalha por décadas. O último bastião cristão na região só seria derrubado mais
de um século após a tomada de Jerusalém por Saladino. O capítulo das cruzadas
medievais terminaria apenas em 1291, quando os muçulmanos expulsaram os cristãos
do Reino do Acre, ao norte de Jerusalém.
O
legado da briga
Durante
muito tempo, uma pergunta intrigou historiadores tanto do Ocidente quanto do
Oriente: se os muçulmanos saíram vitoriosos das cruzadas, por que os estados
islâmicos terminaram sendo ofuscados, no séculos seguintes, pela ascensão de
potências européias?
Segundo
a maioria dos pesquisadores, a ascensão européia tem menos ligação com as
cruzadas e mais a ver com a debilidade dos governos muçulmanos da época. Essa
fraqueza estava ligada a vários fatores, entre eles a falta de identidade árabe
(desde o século 9, a maioria dos dirigentes muçulmanos era estrangeira, como os
turcos seljúcidas) e a incapacidade de criar instituições estáveis – como os
Estados em formação na Europa Ocidental.
O
fato é que as cruzadas foram um marco nas relações entre ocidentais e
orientais. Naquele momento, os “invasores bárbaros” eram os ocidentais cristãos
e a grande potência era a muçulmana. Sobrou daquela guerra um ressentimento
amargo, que extravasa de tempos em tempos, como tem acontecido com freqüência
desde o ataque terrorista de 2001. Não são poucos os muçulmanos que atribuem o
atraso econômico de seus países àquela agressão quase um milênio atrás – e que
querem vingança por isso.
A
vitória contra os francos e a ascensão de Saladino reforçaram no imaginário
muçulmano a idéia de que é possível vencer o inimigo com altivez e senso de
justiça. Além disso, as lutas contra os francos ensinaram também que os
muçulmanos são mais fortes quando estão unidos – tese que até hoje permanece
como uma utopia no Oriente. Mas até que ponto as cruzadas devem ser lembradas
em tempos de guerra no Iraque?
“Não
há por que ficar buscando na história motivos para reacender animosidades entre
os dois povos”, diz o historiador Demant. “As cruzadas marcaram a história por
apenas dois séculos. Já a convivência pacífica entre cristãos e muçulmanos
sobrevive há mais de mil anos”.
Para
saber mais
Na livraria:
As Cruzadas Vistas pelos
Árabes - Amin Malalouf, Brasiliense, 1998
Islamic World, Ilustrated History - Francis Robinson,
Cambridge University Press, Reino Unido, 2002
Uma História dos Povos
Árabes - Albert Hourani, Companhia das Letras, 1991
Islã (Coleção Para Saber
Mais) - Rodrigo Cavalcante, Superinteressante, 2003
FONTE: CAVALCANTE,
Rodrigo. Os 2 lados das Cruzadas. Superinteressante.
ed. 213. maio 2015. p. 52-61.
Onde posso baixar essa ediçao 213 da publicaçao Superinteressante ??
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