Por Luiz
Carlos Silva
Étienne de La Boétie afirma
haver três tipos de tiranos:
1°) os que o obtêm o poder
pela força das armas;
2°) aqueles que o herdam por
sucessão da raça; e
3°) os que chegam ao poder
por eleição do povo.
Os que obtêm o poder pelo
direito da guerra, agem como em terra conquistada; quanto aos reis, nascidos e
criados no seio da tirania, consideram os povos a eles submetidos como servos
hereditários, têm todo o Reino e seus súditos como extensão de sua herança.
Quanto ao eleito pelo povo, não nos enganemos: ao se ver alçado a um posto tão
elevado, tão alto - "lisonjeado por um não sei quê que chamam de grandeza"
- toma a firme resolução de não abrir mão da rês pública. "Quase sempre
considera o poderio que lhe foi confiado pelo povo como se devesse ser
transmitido a seus filhos".
Para La Boétie, é essa ideia
funesta que o faz superar todos os outros tiranos em vícios de todo tipo e até
em crueldades.
Para consolidar a nova
tirania e aumentar a servidão, afastam toda e qualquer ideia de liberdade
presente no espírito do povo. Em resumo, independente de como chegam ao poder,
o espírito de quem governa subjugando as massas é quase sempre o mesmo: os
conquistadores vêem o povo como uma presa a ser dominada; os sucessores como um
rebanho que naturalmente lhes pertence e, por fim, os eleitos tratam-no como
bicho a ser domado.
O trecho abaixo exemplifica
que, independente da forma de governo, a tirania é sempre funesta ao povo:
“Assim, para dizer toda a
verdade, encontro entre eles alguma diferença, mas não vejo por onde escolher.
Sendo diversos os modos de alcançar o poder, a forma de reinar é sempre
idêntica. Os eleitos procedem como quem doma touros; os conquistadores como
quem se assenhoreia de uma presa a que têm direito; os sucessores como quem
lida com escravos naturais" (LA BOÉTIE).
Salienta, ainda:
“Para que os homens,
enquanto neles resta vestígio de homem, se deixem sujeitar, é preciso uma das
duas coisas: que sejam forçados ou iludidos. Iludidos, eles também perdem a
liberdade; mas, então, menos frequentemente pela sedução de outrem do que por
sua própria cegueira. O povo parece esquecer que possui direitos e que é a base
do governo, e essa alienação é tão profunda que se torna quase impossível
despertá-lo para a realidade. Serve tão mansamente e de tão bom grado que, ao
observá-lo no torpor, cegueira e loucura da servidão, poderia-se dizer não que
o povo tenha perdido totalmente a liberdade, mas que nunca a conheceu
verdadeiramente”.
Étienne enfatiza: “No início
serve-se contra a vontade e à força; mais tarde, acostuma-se, e os que vêm
depois, nunca tendo conhecido a liberdade, nem mesmo sabendo o que é, servem
sem pesar e fazem voluntariamente o que seus pais só haviam feito por
imposição. Assim, os homens que nascem sob o jugo, alimentados e criados na
servidão, sem olhar mais longe, contentam-se em viver como nasceram; e como não
pensam ter outros direitos nem outros bens, além dos que encontraram em sua
entrada na vida, consideram como sua condição natural a própria condição de seu
nascimento”.
Uma forte e talvez primeira
razão da servidão voluntária é o costume ou hábito. Através dele se ensina a
servir e a ser escravizado. A perpetuação dos mesmos acontecimentos e atitudes
desagua naquela premissa popular "sempre foi assim". E à medida que o
tempo passa, leva o povo não somente a engolir, pacientemente, os germes
venenosos que induzem à escravidão, mas até mesmo a desejá-la: "pois por
melhor que seja, o natural se perde se não é cultivado, enquanto o hábito
sempre nos conforma à sua maneira, apesar de nossas tendências naturais."
Em assim sendo, pode-se
nascer servo, como no período de Étienne ou das monarquias antigas e ainda
existentes, ou se acomodar e sujeitar-se ao discurso midiático estipulado pelas
falsas democracias atuais. Dessa sujeição decorre naturalmente a segunda razão
da servidão voluntária: a Covardia! Sob a tirania (mesmo que disfarçada),
inevitavelmente os homens se acovardam e se escravizam.
La Boétie preconiza: “Os
escravos não têm ardor nem constância no combate. Só vão a ele como que
obrigados, por assim dizer, embotados, livrando-se de um dever com dificuldade;
não sentem queimar em seu coração o fogo sagrado da liberdade, que faz
enfrentar todos os perigos e desejar uma bela e gloriosa morte que nos honra
para sempre, junto aos nossos semelhantes; entre os homens livres, ao
contrário, é a discussão, polémica, cada qual melhor, todos por um e cada um
por todos; sabem que colherão uma parte igual no infortúnio da derrota ou na
felicidade da vitória; mas os escravos, inteiramente sem coragem e vivacidade,
têm o coração baixo e mole, e são incapazes de qualquer grande ação. Disso bem
sabem os tiranos; assim, fazem todo o possível para torná-los sempre mais
fracos e covardes. Artimanha dos tiranos: bestializar seus súditos!”
O poder seja de qualquer
época, sempre disponibiliza instrumentos poderosos de alienação popular. A
máxima do pão e circo sempre se revigora. À proporção que a sociedade parece
evoluir, sofisticam-se os mecanismos para a manipulação da vontade,
comportamento e colaboração voluntária ao sistema governamental. Basta observar
que a globalização e a Internet muito mais escravizam e servem ao poder
constituído, do que comunicam para a liberdade e iluminam verdadeiramente as
consciências. O povo não percebe que o poder, através dos tempos, se camufla de
forma camaleônica em mantenedor da tirania, a fim de adormecê-lo. E para
transformá-lo em súdito da escravidão, disponibilizam-se todo e qualquer meio
de entretenimento: drogas, shows, prostituição, jogos, carnaval, enfim, toda
sorte de apelos para o entorpecimento da mente. Torna-se fácil manipular e não
há necessidade de se criar mecanismos mais inteligentes para precaver-se contra
o povo ignorante e miserável, fácil e bestialmente entretido e domesticado com
tolices vãs.
A citação abaixo,
assustadoramente nos remete à constatação de que as semelhanças do discurso do
século XVI aos nossos dias não é mera coincidência:
“Os tiranos romanos foram
longe” (na política do pão e circo), “festejando frequentemente os homens das
decúrias” (homens do povo, agrupados de dez em dez, e alimentados às custas do
tesouro público), “empanturrando essa gente embrutecida e adulando-a por onde é
mais fácil de prender, pelo prazer da boca. Por isso, o mais instruído dentre
eles não teria largado sua tigela de sopa para recobrar a liberdade da
República de Platão. Os tiranos distribuíam amplamente o quarto de trigo, o
sesteiro de vinho, o sestércio” (bolsa-família romana); “e então dava pena
ouvir gritar: Viva o Rei! Os broncos não percebiam que, recebendo tudo isso,
apenas recobravam uma parte de seu próprio bem, e que o tirano não teria podido
dar-lhes a própria porção que recobravam se antes não a tivesse tirado deles
mesmos. O que hoje apanhava o sestércio, o que se empanturrava no festim
público abençoando Tibério e Nero por sua liberalidade, no dia seguinte, ao ser
obrigado a abandonar seus bens à cobiça, seus filhos à luxuria, sua própria
condição à crueldade desses magníficos imperadores ficavam mudos como uma pedra
e imóvel como um tronco”.
Torna-se mister ressaltar
que uma nação possui história, memória e tradição. E está enraizado na tradição
brasileira o orgulho de ser um povo pacífico. Entretanto, a violência atinge
índices alarmantes, principalmente entre os jovens. Desta forma, a aptidão para
a paz não pode ser confundida com a mansidão. Sob pena de nossa sociedade
incorporar a subserviência, ser facilmente iludida e enfeitiçada; e
transformar-se em uma massa de ignorantes! Percebe-se hoje um paradoxo, pois a
violência é efeito (e não causa) da servidão voluntária.
Reportamo-nos sobre a
terceira razão da servidão voluntária, a Participação na Tirania.
La Boétie aponta quem são os
interesseiros que se deixam seduzir pelo esplendor dos tesouros públicos sob a
guarda do tirano, os que, em conluio, garantem e asseguram seu poder: “são
sempre quatro ou cinco homens que o apoiam e que para ele sujeitam o país inteiro.
Sempre foi assim: cinco ou seis obtiveram o ouvido do tirano e por si mesmos
dele se aproximaram ou então, foram chamados para serem os cúmplices de suas
crueldades, os companheiros de seus prazeres, os complacentes para com suas
volúpias sujas e os sócios de suas rapinas. Tão bem esses seis domam seu chefe
que este se torna mau para com a sociedade, não só com suas próprias maldades,
mas também com as deles. Esses seis têm seiscentos que debaixo deles domam e
corrompem, como corromperam o tirano. Esses seiscentos mantêm sob sua
dependência seis mil, que dignificam, aos quais fazem dar o governo das
províncias ou o manejo dos dinheiros públicos, para que favoreçam sua avareza e
crueldade, que as mantenham ou as exerçam no momento oportuno e, aliás, façam
tanto mal que só possam se manter sob sua própria tutela e instar-se das leis e
de suas penas através de sua proteção. Grande é a série que vem depois deles. E
quem quiser seguir o rastro não verá os seis mil mas cem mil, milhões que por
essa via se agarram ao tirano, formando uma corrente ininterrupta que sobe até
ele. Daí procedia o aumento do poder do senado sob Júlio César, o
estabelecimento de novas funções, a escolha para os cargos - não para
reorganizar a justiça, mas sim para dar novos sustentáculos à tirania. Em suma,
pelos ganhos e parcelas de ganhos que se obtêm com os tiranos chega-se ao ponto
em que, afinal, aqueles a quem a tirania é proveitosa são em número quase tão
grande quanto aqueles para quem a liberdade seria útil. Que condição é mais
miserável que a de viver assim, nada tendo de seu e recebendo de um outro sua
satisfação, sua liberdade, seu corpo e sua vida! Mas eles querem servir para
amealhar bens. O que torna um amigo seguro do outro é o conhecimento de sua
integridade. Entre os maus, quando se juntam, há uma conspiração, não uma
sociedade; Eles não se entre-apoiam mas se entre-temem. São cúmplices”.
Quero justificar a longa
citação pelo seu teor de atualidade, quer dizer, todo sistema de poder se
aglutina em torno de uma rede de servidão. Se o seu princípio se sustentar na
tirania, tornar-se-á frágil por natureza, de onde, a todo instante assomam-se
os escândalos, pois o tirano não tem amigos, não ama nem é amado. Na ilusão de
que estamos livres, fundamentam-se os três caminhos que nos levam à servidão
(hábito, covardia e participação). Não estamos verdadeiramente livres, mas
podemos conquistar a justiça que liberta. Posto que se a servidão voluntária é
inerente ao ser, a citação de Aristóteles traz esperança: "A Justiça é um
hábito que nunca morre".
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