Voltaire com
28 anos, por Nicolas de Largillière.
Por
E. Figueiredo
Enciclopédia
é o conhecimento universalizado. É uma obra, geralmente, em forma de
dicionário, que trata de todos os assuntos de ciência, arte ou, se
especializada, de todos os assuntos de determinado setor científico ou
artístico. Na enciclopédia se expõe, metodicamente, o conjunto dos
conhecimentos universais ou específicos de um campo do saber, agrupados em
temas ou dispostos em ordem alfabética.
A
famosa Enciclopédia Francesa do Século XVIII (que é considerada a primeira)
iniciou-se em 1751, quando saíram a lume seus dois primeiros volumes, e foi
ultimada em 1780, perfazendo 35 volumes. Foi um quadro geral dos esforços do
intelecto humano em todos os gêneros e em todos os séculos. O enciclopedismo
veio combater as ideias pagãs do direito divino dos reis, que
justificavam o absolutismo dos tronos; em consequência disso surgiu a Revolução
Francesa, rasgo grandioso de heroísmo humano. O modo como a Enciclopédia e os Iluministas
desenvolveram as ideias às quais a Revolução Francesa dada consequência
prática, configurou a passagem da postura filosófica à postura política,
patenteando a negação do direito divino da Igreja ao monopólio da verdade, e, consequentemente,
o direito divino dos governantes ao monopólio do poder. Os primeiros volumes
foram proibidos, como ofensivos ao rei e à religião; os jesuítas tentaram
continuar a obra, porém não conseguiram, retornando aos enciclopedistas.
A
publicação permitiu que as novas ideias difundissem‑se, não só na Europa, mas
em toda a América, cuja influência, também, se exerceu no Brasil, e, a
Inconfidência Mineira (1789) é um grande exemplo. É tida como obra capital do
Iluminismo do Século das Luzes, como ficou conhecido na História o Século
XVIII, radiosa época em que o dogma religioso inquestionável foi eclipsado pela
crença na razão e na perfectibilidade humanas.
Diderot
foi o idealizador da Enciclopédia (Encyclopédie ou Dictionnaire Raísonné des Sciences, des Arts et des Métiers), que
reuniu 150 colaboradores, que passaram a ser chamados de"enciclopedistas", dentre
eles D'Alembert, Rousseau, Montesquieu, Turgot e Voltaire. É de Voltaire que
vamos falar.
Poeta,
dramaturgo, historiador, epistológrafo e prosador francês, Voltaire cultivou
todos os gêneros: a tragédia, a história, o conto, a crítica, a epopeia e
sobretudo a filosofia. A sua influência literária e social foi enorme tornando‑o
escritor francês por excelência, claro, límpido, preciso, espirituoso e
elegante. Sua obras tornaram‑se clássicas, como Brutus, Epístola a Urânio,
História de Carlos XII, O Templo do Gosto, Cartas Filosóficas e outras. Mas é Cândido, publicada em 1758, sua obra mais famosa, um conto
filosófico onde atacou as opiniões otimistas de sua época, que consideravam o
homem como uma criatura que havia alcançado a felicidade e a liberdade. Não
obstante, o maior meio de propagação das ideias de Voltaire foi sua extensa
correspondência: mais de dez mil cartas, que são, até hoje, leitura fascinante,
que, infelizmente, nunca foi inteiramente ou corretamente editada.
A
vida de Voltaire é a história dos avanços que as artes devem ao gênio, de poder
exercer sobre as opiniões de seu Século, da longa guerra contra os
preconceitos, declarada já em sua juventude e mantida até seus últimos
momentos.
Voltaire
nasceu em Paris a 21 de Novembro de 1694, filho de François Arouet, um
parisiense notário abastado, e de uma dama de nobre estirpe, Marie Marguerite
Daumart. Fez seus primeiros estudos com os jesuítas no Colégio de Clermont,
onde se revelou um aluno brilhante, porém, levando a seguir uma juventude
dissoluta. Iniciou o curso de direito, mas não terminou. Frequentou a Societé du Temple, de libertinos e
livres pensadores. Voltaire, cujo verdadeiro nome era François‑Marie Arouet,
foi uma das figuras mais evidentes das letras francesas no Século XVIII, e que
tomou parte preponderante no enciclopedismo.
Em
virtude do seu temperamento e ideias revolucionárias, em 16 de Abril de 1717,
foi preso na Bastilha pela autoria suposta de um panfleto contra Luís XIV. Na
prisão, aproveita o tempo para escrever a sua primeira tragédia, O Édipo, cujo sucesso, abre‑lhe a
entrada aos meios intelectuais, compôs uma grande parte de um poema épico (Henriada), de que é herói Henrique
IV, rei de França, e mudou, por algum motivo ignorado, o nome para
"Voltaire" (provavelmente anagrama de Arouet leu jeune, segundo
Thomas CarIyIe (1795‑1881). Parece, entretanto, que o nome existiu na família
de sua mãe.
Foi
Voltaire quem introduziu na França a mecânica de Isaac Newton (1642‑1727) e a
psicologia de John Locke (1632‑1704), dando começo à Era da Luz. Na França do
Século XVIII, onde os intelectuais se achavam em rebelião contra um despotismo
antiquado, corrupto e impotente, a Inglaterra era considerada como a pátria da
liberdade, sendo que eles se achavam predispostos a favor do filósofo inglês Locke,
face às suas doutrinas políticas. Na verdade, a filosofia, no Século XVIII,
estava dominada pelos empiristas britânicos, dos quais Locke, Berkeley e Hume
podem ser considerados os principais representantes.
Às
vésperas da Revolução Francesa, a influência de Locke, na França, foi reforçada
pela de David Hume (1711‑1776), um grande filósofo escocês, que vivera algum
tempo na França e conhecia, pessoalmente, muitos de seus principais sábios e
eruditos. Mas, o principal transmissor da influência inglesa à França, é
creditado a Voltaire. E é de Voltaire o maior passo na conquista das liberdades
individuais, que lutou contra toda limitação à liberdade de pensamento,
reconhecendo a todos o direito de manifestar suas ideias.
Espirituoso,
dotado de invejável facilidade de escrever, e além disso, excepcionalmente
culto, foi Voltaire o autor mais lido e festejado do seu tempo. Escarneceu com
fervor a teoria do "Direito Divino", e, como considerasse a Igreja
Católica um dos sustentáculos do regime vigente, atacou‑a com audaciosa e
desabrida irreverência.
A
repressão que Voltaire mais odiava era a da tirania organizada pela religião.
Explodia a sua indignação contra a "monstruosa crueldade da Igreja",
que torturava e queimava homens bons, honestos e inteligentes, por terem ousado
duvidar dos seus dogmas. Combateu, implacavelmente, esse sistema de ortodoxia
privilegiada e perseguição, adotando como lema ‑ contra a Igreja Católica ‑
"Écrasez L'infâme!" (Esmagai a infame!). "L"infâme"
era a ortodoxia privilegiada e perseguidora, e foi contra ela a grande e
verdadeiramente heroica luta de Voltaire.
Obrigado
a deixar a França, asilou‑se em Londres, onde entrou em contato com teorias de
vários filósofos de vanguarda da Inglaterra, principalmente Locke.
Retoma
à França empenhando‑se na divulgação das idéias dos filósofos ingleses. Graças
a seu estilo eminentemente vivo e atraente e à sua ironia, conseguiu criar, em
inúmeros espíritos, um sentimento de profundo desprezo pelas instituições e
crenças até então dominantes, tendo sido o mais violento destruidor da
estrutura tradicional da Europa.
Quisessem‑no
ou não os governantes, Voltaire, representava o espírito francês no que tinha
de mais vivo e de mais ousado. Vinte e cinco anos antes da Tomada da Bastilha,
Voltaire foi o profeta de uma revolução inevitável'. As mudanças vieram com
algumas vias imprevistas da Revolução, que, infelizmente, ao radicalizar‑se,
afastou‑se da moderação voltairiana. Teria, certamente, condenado as
violências, adotadas pelo movimento, cujo preparo contribuiu como ninguém. Como
Rousseau, Diderot e Montesquieu, ele trouxe a palavra revolução para a
filosofia política. Foi admitido na Academia Francesa em 1746.
Por
demonstrar suas virtudes cardeais (Sabedoria, Coragem, Justiça e Temperança),
Voltaire foi convidado a ingressar na Maçonaria, e, sua passagem pela Sublime
Ordem é tida como inusitada. Muitos contestam, quanto à validade da sua
iniciação, face ao seu espírito, sistematicamente, céptico e da sua
irreligiosidade arraigada. Odiava a Igreja Católica e todas as formas de
intolerância. Não foi ateu, como muitos pensam, mas um deísta, embora alegando
o argumento de que Deus, se não existisse, deveria ser inventado para refrear
os mais instintos das massas do povo.
Já
há algum tempo se esperava o seu ingresso na Arte Real, pois era em Lojas de
Franco‑Maçonaria onde as distinções de classes não importavam e a ideologia do Iluminismo era propagada com um
desinteressado denodo. Os Maçons, que condenavam todo e qualquer dogmatismo
eclesiástico, não obstante aceitar o Grande Arquiteto do Universo, encontravam
franca correspondência nos filósofos. A doutrina moral dos Maçons estava
completamente de acordo com os princípios das Luzes. A Liberdade, a Igualdade e
em seguida a Fraternidade de todos os homens, slogans criados por Antoine‑François
Momoro (1756‑1794), que os escrevia nos edifícios públicos, (mas que alguns
creditam ao filósofo Louis‑Claude Saint Martins 1743‑1803), eram o brado no
interior dos Templos. No devido tempo se tomaram os slogans da Revolução Francesa.
A
iniciação de Voltaire prendeu, por muito tempo, as atenções de todo o universo maçônico.
Primeiro
encontro de Voltaire com Frederico, o Grande
(Harper’s New Monthly
Maganize, n.º XL, 1870).
No
dia da sua iniciação, Voltaire beirava os 84 anos. Na cerimônia estavam
presentes representantes da Imperatriz Catarina, da Rússia, e do Rei Frederico II, Imperador da Prússia. Havia embaixadores de vários países, como Inglaterra,
Itália, e o famoso Benjamim Franklin representando o Novo Mundo, que acompanhou
Court de Gebelin, o proponente do candidato para a Loja Neuf Soeurs (Nove Irmãs), ao Oriente de Paris.
A
Loja Neuf Soeurs, fundada em 9 de
Julho de 1976, era célebre porque quase todos os grandes escritores do Século
XVIII fizeram parte dela, como Denis Diderot (1713‑1784) e Jean Le Rond
D'Alembert. O ritual ocupava um lugar preponderante nas cerimônias, que eram
longas, de uma sábia cronologia, lentas, entrecortadas de homilias morais com
laivos de filosofia. Falava‑se de tudo e as suas sessões se prolongavam até
tarde da noite.
Era
7 de Abril de 1778. O Templo estava completamente tomado, com vários Irmãos de
grande destaque nas ciências, letras, e na política, dentre os quais os
príncipes Emmanel Salus e Camille Rohan, o sábio abade Tingue e o doutor
Guillotin. O Venerável Mestre era o grande astrônomo Joseph Jerôme Lefrançois
de Lalande (1732‑1807). Nessa memorável noite, e com o mais seleto auditório de
todos quantos até ali se haviam reunido numa Loja Maçônica de França, Voltaire,
pelo braço dos seus proponentes, deu entrada no recinto sob uma chuva de
frenéticos aplausos. Sentou‑se numa grande cadeira de espaldar colocada no
centro do Templo. Não lhe colocaram vendas nos olhos e nem, tampouco, o
submeteram às provas físicas, que a cerimônia exigia. Foi levado em
consideração a sua idade provecta de oitenta e quatro anos, apesar do candidato
estar em pleno uso de todas as suas faculdades e, ainda, ágil em seus
movimentos. A fama de Voltaire contribuiu para isso, e, todo o corpo Maçônico
presente se encheu de orgulho.
O
próprio Lalande recebeu Voltaire, que, muito emocionado, dissertou sobre a
grande honra que estava tendo ao recebê‑lo naquele Augusto Cenáculo, proferindo
palavras sacramentais que consagravam o candidato não apenas como um Aprendiz da Arte Real, mas um verdadeiro
Mestre na plenitude de todos os direitos Maçônicos, como já o era em todos os
ramos do saber humano. Em seguida os embaixadores da Imperatriz Catarina e do
Rei Frederico 11 fizeram suas manifestações de júbilo.
O
abade Cordier de Saint‑Firmin fez um discurso brilhante: "Queridíssimo
Irmão," - diz ele a Voltaire ‑ "éreis Maçom antes mesmo de
receberdes a característica, e, haveis preenchido os deveres antes de
contrairdes sua obrigação entre nossas mãos!"
Seguiram‑se
as de Laplace, Lamarck, e, por último, a de Diderot que falou em nome do
espírito moderno da França e que era, afinal, o espírito da própria Enciclopédia.
Quando
Voltaire se posicionou para usar da palavra fez‑se silêncio absoluto! Falou de
improviso durante duas horas. A torrente das suas palavras, vezes irônicas,
outras proféticas, regurgitava como lavas de um vulcão visto de longe, mas
sentido de perto pelo calor que transmitia e se desenvolvia na assistência,
alertando as consciências e pondo as almas ao rubro. O discurso de Voltaire foi
encarado como o mais completo laboratório de ideias inovadoras, e, como a Enciclopédia, minara a rocha do
despotismo figurada pelo absolutismo do trono e pela tirania da Igreja. As
frases mais candentes eram como setas ervadas que dando volta ao Templo saiam
depois em busca dos grandes alvos. A cerimônia se transformou numa brilhante festa
Maçônica, onde Voltaire, numa assombrosa velocidade, respondeu à todas as
perguntas que lhe foram dirigidas, empolgando todos os presentes.
A
iniciação de Voltaire foi o morrão impiedoso que provocou a maior explosão da
História da Humanidade.
O
segredo da iniciação acabou transpirando e o trono estremecera! Luiz XVI
sentira que a presença dos representantes de Catarina e Frederico 11 fora um
sintoma arrasador.
Mas,
quis o Grande Arquiteto do Universo, que cinquenta e quatro dias da sua
Iniciação, Voltaire morresse. O clero romano, através do cura de sua paróquia,
recusou‑lhe sepultura cristã; o governo proibiu a imprensa de publicar artigos
sobre sua personalidade; os teatros foram proibidos de representar suas obras;
e, a Academia não lhe concedeu as merecidas honras. Somente a Loja Neuf Soeurs, transtornada com a
intransigência eclesiástica, celebrou uma manifestação pública em que lhe foram
prestadas todas as honras fúnebres. Para prevenir qualquer ação da Igreja, seu
corpo foi embalsamado e transferido, secretamente, para a abadia de Scellières,
na Champanhe. Em 1791 suas cinzas foram transferidas, solenemente, para o
Panteão.
Voltaire,
a quem podia faltar um sistema de ideias ou uma doutrina política, mas não
faltava o senso de justiça, bateu‑se contra vários abusos judiciais que ficaram
famosos. Não exerceu, somente, uma espécie de soberania literária, mas reinou,
também, sobre a opinião pública de maneira quase absoluta, sendo procurado por
todos os que sofriam com a intolerância, o fanatismo e as injustiças sociais.
Aliás, acrescente‑se, sua obra, em certo sentido, é menos importante literária
ou ideologicamente do que do ponto de vista histórico; por ter escrito o que
escreveu no momento em que o escreveu, por ter tido as suas ideias na época em que
as teve, é que Voltaire, constitui um dos cimos do pensamento humano e uma das
glórias mais indiscutíveis na história da inteligência.
Como
filósofo, foi o porta‑voz dos Iluministas, em tomo dos quais se congregaram os
adversários do Romantismo, e, como tal, se estendeu até o povo, porém, foi mais
admirado do que conhecido. Acima de tudo, entretanto, ele foi um escritor, isto
é, um homem cuja biografia é a história dos seus livros, e que fez da palavra
escrita o instrumento por excelência da reforma social. Sua personalidade e
talento como escritor deram‑lhe uma influência penetrante em seu tempo, frequentemente
chamado "época de Voltaire".
Voltaire
foi o soberano intelectual do seu século e é uma das maiores personalidades da
Humanidade! No dia em que nos esquecermos de honrar Voltaire, não seremos mais
dignos da liberdade...
E
Voltaire foi um Maçom!
REFERÊNCIAS:
Alencar Renato ‑
Enciclopédia Histórica do Mundo Maçônico.
Boucher, Jules ‑ A Simbólica
Maçônica.
Durant Will ‑ A História da
Filosofia.
Hobsbawm, Eric J. ‑ A Era
das Revoluções ‑ 1789‑1848.
Jacq, Christian ‑ A Franco‑Maçonaria.
Lima, Adelino Figueiredo ‑
Nos Bastidores do Mistério.
Maurois, André ‑ O
Pensamento Vivo de Voltaire.
Mellor, AJec ‑ Dicionário da
Franco‑Maçonaria.
Russel, Bertrand ‑ Filosofia
Moderna.
Tourret, Fernand ‑ Chaves da
Franco‑Maçonaria.
A Revolução Francesa ‑
Edição lstoé Senhor.
Dicionário Enciclopédico
Brasileiro ‑ Editora Globo.
Enciclopédia Barsa.
Grande Enciclopédia Larousse
Cultural ‑ Nova Cultural.
Revista ASTRÉA nº 03 ‑ Março
de 1927.
REFERÊNCIA:
FIGUEIREDO, E. O Enciclopedista Voltaire. In Engenho
& Arte, n. 7, primavera 2000. Rio de Janeiro: Infinity Editorial e
Promocional, 2000, p. 75 - 78.
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