quarta-feira, 13 de fevereiro de 2013

NAVRAS



Segue um texto que produzi em 2004. Espero que gostem.





Por João Florindo B. Segundo


Muita gente assistiu Matrix e suas fatídicas continuações.  Só que poucas pessoas entenderam o enredo: trocando em miúdos, podemos dizer a vocês que na verdade toda a história do Escolhido foi um plano das máquinas para a manutenção do sistema Matrix, usando os humanos que imaginavam adquirir liberdade, como parte da estratégia. Pois bem, falemos agora daquilo que está oculto em Matrix, o que, dependendo da imaginação, pode ser uma porção de coisas. Trataremos nesse texto apenas da questão da liberdade, da transcendência e da interação entre ciência e religião, tocando também em um espinhoso assunto – a questão da análise crítica das religiões – nos quais a trilogia tocou bem..., bem de leve mesmo.

Em Matrix reloaded ocorre o famoso e parnasiano diálogo entre Neo e o Arquiteto. Este último, trajando todo de branco, não é um ser transbordante de amor por suas criaturas e muito menos demonstra perdoar os seus “pecados”, mas sim, grande insatisfação com as mesmas. Vários aspectos aqui chamam a atenção, e vislumbramos a possibilidade de traçar um paralelo entre os enunciados da personagem sobredita e a análise dos sistemas políticos pelo filósofo grego Platão (429-347 a.C.) em sua obra A República, inserida dentro do grupo dos diálogos construtivos ou da maturidade do autor, para o que devemos lembrar de início que o sentido da filosofia é o de conduzir o homem do mundo das aparências ao mundo da realidade.

Na parte do filme em que tal diálogo se passa, observamos que o herói, e todo o público até então, pensava que houvera uma só versão da Matrix, porém, através do Arquiteto, descobrimos que já houve cinco versões antes daquela em que a ação do filme se passa, todas sobrepujadas por não se ajustarem à constituição ideal, tal como as formas de governo analisadas por Platão em A República.

À primeira e perfeita Matrix podemos comparar as primeiras comunidades humanas, onde todos viviam: a) em um estado de liberdade plena para Rosseau; b) para Locke, em um estado de paz instável; e c) em um estado de guerra segundo Hobbes, o chamado estado de natureza (escolha sua opção e boa sorte!). Daí em diante, os indivíduos doaram parte de sua liberdade através de um pacto (você acredita nisso?), firmado com o fim de garantir os direitos fundamentais do homem que, no estado de natureza, eram continuamente ameaçados, nascendo daí o Estado e seu governo (o pequeno agricultor realmente se intera e participa das decisões do Estado, não é mesmo?).

As constituições corrompidas, das quais Platão faz sucinta análise, são a timocracia, a oligarquia, a democracia e a tirania. Estas quatros seriam as formas de governos de forma real, que se afastam, em grau maior ou menor, da forma ideal (monarquia e aristocracia). Uma seria o resultado da desagregação da forma anterior, chegando ao ápice da degeneração com a tirania.

O Arquiteto explica a Neo que os indivíduos presos à primeira Matrix (totalmente perfeita) acabavam não acreditando em tamanha perfeição e entrando em colapso e que as falhas do pai do programa decorriam de sua incapacidade de compreender a falibilidade humana. Assim, ele concebeu um programa capaz de estudar a psique humana, a Oráculo, a qual concluiu que 99,9% dos pesquisados aceitaria a existência virtual imposta pela Matrix, desde que acreditassem ter a escolha de abandonar aquele universo. A Oráculo passou a ser uma espécie de Mãe Dinah, auxiliando algumas pessoas a se libertarem do sistema, fazendo-lhes crer nesse tipo de transcendência.

Voltando a A República, podemos observar a seguinte referência de Platão à transcendência: “Mas talvez haja um exemplo de tal Estado no céu, para quem queira encontra-lo, ajustando-se a ele no governo de si próprio.”; para o filósofo, o transcendente é um estado de adequação à realidade, às responsabilidades que nós temos e de entendimento dos deuses e de sua relação com a humanidade, o que na prática se processa de forma grandemente diferente. Outrossim, não se confunda o transcendente (que não resulta do jogo natural de uma certa classe de seres ou de ações, mas que supõe a intervenção de um princípio que lhe é superior, ultrapassando a nossa capacidade de conhecer; que é de natureza diversa da de uma dada classe de fenômenos), com o transcendental kantiano (o que se refere ao conhecimento das condições a priori da experiência, e o que ultrapassa os limites da experiência). Iremos ao longo do presente texto enfocar os dois aspectos assinalados.

A saída para o sistema Matrix era dar às pessoas esperanças de algo mais, algo além, daí porque, analogamente, a maior parte das pessoas não admite qualquer crítica à sua crença religiosa; elas não querem que lhe seja tirada sua maior “certeza”(?), razão de tanto sangue e lágrimas vertidos e a verter deste e do outro lado do rio (para refletir sobre o assunto, quem agüentar ainda, ouça Metal contra as nuvens, de Legião Urbana). Não estamos aqui dizendo que o Criador nos dá o livre arbítrio para crermos em um mundo transcendental como um engodo da parte dEle: não acreditamos em um deus mau e enganador, capaz de incendiar cidades inteiras com crianças inocentes dentro. Neste ponto, uns alegam que após a morte nada mais há (ateus e estóicos), outros que a alma reencarnará até alcançar a iluminação, e outros que ela retornará em um corpo eterno (imaginem viver eternamente em um corpo físico, devendo todos os dias acordar, comer, trabalhar, etc., etc. “Que abuso!”).

Para Sartre, que possuía uma noção de transcendência imanentizada, em virtude da sua atitude ateia, a liberdade não é uma propriedade da essência humana, mas constitui a natureza humana em si, precede a essência e a torna possível: o homem é livre porque ele não “é”. Aquilo que “é” não pode ser livre, pois, nem pode deixar de ser, nem pode ser diferente. O homem, como ser-para-si – e não em-si –, ao perceber o nada que se faz ser no seu coração, passa a ser livre. Ele não recebe ou aceita uma determinada natureza, mas a constrói por uma escolha que é inclusive gratuita. O homem seria soberano mestre de seu destino. Sobre o ateísmo e o existencialismo, brevemente escreveremos detalhado texto, deixando-lhes, contudo, com o seguinte ensinamento do Concílio Vaticano II: “Todo homem permanece para si mesmo problema insolúvel, apenas confusamente pressentido. Ninguém pode, na verdade, evitar inteiramente esta questão em certos momentos, e, sobretudo nos acontecimentos mais importantes da vida. Só Deus pode responder plenamente e com total certeza” (GS 21).

No que tange à alma, há grupos religiosos ocidentais “seguidores da Bíblia”, que alegam que o ser humano não possui uma alma imortal, “retornando o homem completamente ao pó após a morte”, mas que, os que merecerem, serão ressuscitados no fim dos tempos. Contudo, se não sobrou nada de você (nem substância material nem etérea), de onde o Supremo lhe traria de volta? Baseado em quê? Se não sobrará nada de você, que certeza temos de que esse futuro ressurreto será você? Imaginemos então que o Supremo lhe refará (caso você seja um dos “eleitos”) com base nas memórias suas que Ele “guardou”. Isso nos parece, até certo ponto, uma apologia a pensamentos de segmentos religiosos que esses cristãos renegam (leia-se orientais). Na medida em que na cultura hindu há a figura de Akasha, os arquivos divinos em que estão registrados todos os dados do Universo (porém, o hinduísmo acredita na reencarnação, inclusive na metempsicose). Uma ligeira e incidental analogia extrapolada a este conceito é dada no filme Inteligência Artificial quando os extraterrestres, baseados nas informações dispersas no espaço, ressuscitam a mãe do menino-robô David (muita embora Akasha não funcione ao bel-prazer de qualquer senhor).

O outrora exposto suscita a teoria dos campos mórficos de Rupert Shaldrake, autor de Cães que sabem quando seus donos estão chegando; tais campos seriam responsáveis, por exemplo, pelo padrão de formação e crescimento dos seres vivos (campos morfogenéticos, originalmente fruto de pesquisas de um grupo de biólogos na década de 1920), pela telepatia – capacidade extra-sensorial pesquisada pela parapsicologia e que, segundo Shaldrake, é avançada em animais como cães e gatos – e até mesmo pelos padrões repetitivos de respostas a determinadas situações: pela teoria de Shaldrake, por exemplo, a solução de um jogo de palavras cruzadas publicado em um jornal vai ficando mais fácil ao longo do dia na medida em que as pessoas vão respondendo-o, pois, de forma inconsciente, acessamos os campos mórficos que contêm as soluções obtidas por outras pessoas.  Os campos, imateriais, funcionariam como um suporte para que a informação flua entre e pelos organismos. Este tema vem se relacionando – inicialmente no âmbito formal – com a hipótese dos memes (redução do grego mimeme, imitação), apresentada pelo zoólogo Richard Dawkins, em seu livro O gene egoísta (1976), dando origem a uma nova área do conhecimento: a memética. Em sua obra, o pesquisador alega que o DNA tem como único objetivo replicar-se e que a seleção natural englobaria também qualquer situação em que unidades replicadoras disputam entre si pela oportunidade de acompanhar as gerações futuras, bem como que os memes incluem em sua categoria qualquer representação mental que dependa dos recursos do cérebro humano para existir e se difundir – hábitos, doutrinas, etc. – contudo, tal entidade ainda não foi devidamente delimitada pela teoria: quantos memes são necessários para constituir, p. ex., um movimento estudantil inteligente?

Outrossim, há quem alegue que o meme explicaria fatos sobrenaturais – e é aí que o assunto se relaciona com os campos mórficos, como a lenda do centésimo macaco: um primata da ilha japonesa de Koshima que aprendeu a lavar os alimentos sujos de areia antes de come-los e ensinou a técnica a outros 99 companheiros, ao tempo em que a nova idéia chegou “pelo ar” aos primatas de outras ilhas japonesas, conforme relatado pelo zoólogo Lyall Watson em livro de 1979. Apesar das controvérsias (cientistas alegam que a telepatia nunca foi provada cientificamente), há quem acredite que o meme é o meio através do qual se dá o fenômeno telepático, alegando inclusive que se todos invocarem o meme necessário à idéia de paz no mundo, ele contaminará todas as mentes do planeta, numa clara distorção da memética. Não esqueçamos ainda das palavras da psicóloga Susan Blackmore, autora de The Meme Machine: “Estou convencida de que essa idéia está correta, de que é a melhor forma de explicar a natureza humana. Mas no momento ainda não é possível prová-la.”

Ainda mais estranha é a teoria de John Archibald Wheeler – criador do termo buraco negro –, que deu origem à da física digital, segundo a qual cada partícula, cada campo de força e até mesmo o espaço-tempo derivam suas funções, seu sentido e sua existência de escolhas binárias, de bits. O que chamamos de realidade surgiria de questões como sim/não, ou seja, a matéria em seu nível mais diminuto seria composta de informação. Assim sendo, restaria saber que tipo de programa o Universo estaria rodando: para alguns, tal software talvez não tenha mais de quatro instruções básicas, repetidas muitas vezes desde o inicio dos tempos até gerar tudo o que conhecemos: quem o afirma é o físico Stephen Wolfram, autor do software Mathematica.

Podemos observar, nesta miscelânea cultural, uma maior interação de conceitos científicos e religiosos nestes últimos tempos e, no âmbito de Matrix, uma amálgama de temas extraídos do cristianismo e de outras religiões e filosofias (o pluralismo religioso), que não sabemos precisar se os irmãos Wachowski pretendiam endossar ou apenas retratar como mitos interessantes (pelo nível dos filmes II e III, acho que a segunda opção é a certa), muito embora a trilogia seja permeada de um nível de violência e profanação em claro desacordo com os valores religiosos.

O pluralismo religioso não pode ser compreendido como uma teoria única, mas como uma família de teorias relacionadas, podendo ser distinguidas quatro variedades principais:

a) pluralismo extremo, em que todas as crenças são igualmente válidas e verdadeiras: totalmente falso pelas contradições entre as diversas doutrinas;

b) pluralismo de ensinamentos fundamentais, em que os ensinamentos fundamentais de todas as principais religiões são verdadeiros: o que em essência recai no mesmo erro da categoria anterior;

c) conhecimento da verdade pela amálgama de crenças de várias religiões: incorre em dificuldades quando transplanta uma doutrina religiosa para fora da estrutura de sua religião de origem (veja-se o caso da concepção de alma, acima citada); e

d) pluralismo transcendental, em que todas as principais tradições religiosas estão em contato com a mesma realidade Divina suprema, mas essa realidade é experimentada e conceituada de diversas formas, dentro de cada tradição.

Esta última corrente foi recentemente defendida pelo filósofo John Hick, alegando que a Realidade Suprema é totalmente transcendente e inefável, excedendo todos os conceitos humanos, consistindo todas as religiões, apesar disso, em caminhos validos para a salvação. Contudo, se não temos a menor compreensão do que é o Real em si, por que deveríamos achar que ele tem alguma ligação com a religião, em vez de, p. ex., com o preconceito racial e a corrupção política? Ademais, se um cristão praticante passa a acreditar que a doutrina crista é “mitologicamente verdadeira” – literalmente falsa –, mesmo que ainda útil como elo de ligação com o Real, como será possível permanecer sendo cristão sem aceitar nenhum dos conceitos principais que distinguem o cristianismo de outras religiões? Como alcançar os frutos morais e espirituais de uma religião se não acreditamos que ela ensina a verdade?

Destarte, os pluralistas alegam que o aprimoramento moral de seguidores de diversas religiões é a prova cabal de que a experiência do Real pode ser encontrada em qualquer segmento, em detrimento do pensamento exclusivista (uma única religião correta), bem como que as alegações de privilégios epistêmicos em relação a pessoas de outras crenças (“Só minha religião está certa”) é clara demonstração de arrogância intelectual, incorrendo, contudo, eles também em arrogância, até por não concordarem com a liberdade de pensamento. Os pluralistas argumentam ainda que nenhuma religião tem base objetiva para comprovar sua maior proximidade da verdade que as demais, contudo, oferecendo raramente amparo para tal contestação.

Em suma, mesmo que analisemos racionalmente o fenômeno religioso, deparamo-nos irremediavelmente com a fé do outro, e a indescritível incapacidade de reconhecer o UM no todo. Kant estima que o edifício da ética fica incompleto sem a afirmação da liberdade, da vida eterna e da existência de Deus. Há que apelar para estes três postulados, porque sem elas não completamos a ordem prática da moral. Trata-se, pois, de concepções não conhecidas diretamente, mas que devemos postular para explicar o que experimentamos. Por isso, estes postulados em que faltam razões objetivas repousam na convicção do sujeito e Kant chama a fé esta convicção: “Tive de deslocar a razão para dar lugar à fé.”

Devemos, pois, respeitar as crenças alheias, embora nelas não acreditemos, conforme Voltaire: “Não concordo com nenhuma de suas palavras, mas defenderei até à morte o seu direito de dizê-las”. Outrossim, qualquer expressão fundamentalista latente deve ser coibida dentro dos princípios dos direitos humanos, a fim de resguardar a liberdade religiosa de todos. Ao reconhecermos a distância que nos separa do próximo, estaremos em condições de entabular com ele um diálogo que mereça esse nome; e somente à medida que aceitarmos a diferença, nos aproximaremos do mistério do outro. E no que tange a Matrix, a trilogia não explica nada, mas é ponto de partida para interessantes análises da realidade.

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