Por
Giridhari Das
Extraído
de encontros com S.S. Hridayananda das Goswami em maio 2002 e janeiro 2003.
INTRODUÇÃO
Uma definição bastante ampla do termo védico é
tudo aquilo que é baseado em conhecimento. Afinal, a palavra veda significa
conhecimento em sânscrito. Assim, védico seria aquilo que é fruto de um
conhecimento mais completo, mais elevado. Uma definição mais precisa é que
védico é aquilo que nos leva a conhecer Krishna, que nos aproxima de Deus,
conforme a definição dos Vedas que Krishna explica no Bhagavad-gita,
verso 15.15[1]. Assim, em última análise, védico é aquilo que nos traz
conhecimento de Deus, de Krishna, que é o conhecimento mais elevado e mais
completo.
Portanto, o ponto inicial mais importante de se
compreender é que védico não significa indiano. Existe uma grande confusão a
esse respeito. O que acontece é que o conhecimento védico manifestou-se
primariamente naquela parte do mundo que hoje chamamos de Índia e foi lá que
foi mais preservado. Porém, misturado ao conhecimento puro védico está uma
enorme bagagem cultural local, muito influenciada pelos invasores muçulmanos e
também fruto da decadência típica da nossa atual era. Assim, podemos encontrar
superstições (muito comum na Índia), rituais de todo tipo (também algo muito
popular na religiosidade do povo da Índia) e outros elementos da cultura
mundana local. Um exemplo prático disso é visto no Caitanya Bhagavata,
onde, na descrição do casamento de Sri Caitanya Mahaprabhu com Srimati
Vishnupriya, é descrito que entre os tradicionais rituais védicos de casamento
muitos outros costumes locais foram também observados. Ou seja, mesmo há mais
de 500 anos, na cidade onde o Senhor apareceu, distinguia-se entre a cultura
védica e a cultura local.
“Há muitas coisas na Índia que são mais védicas
que no ocidente, e muitas coisas no ocidente que são mais védicas que na Índia”
(Sua Santidade Hridayananda Das Goswami Acharyadeva).
Como separar o joio do trigo? Baseando-se nas
escrituras confirmadas por todos os grandes acaryas (mestres
espirituais) de nossa linha de sucessão discipular (parampara), que
inclui a própria Suprema Personalidade de Deus, Sri Caitanya Mahaprabhu, ou
seja: o Srimad Bhagavatam, Bhagavad-gita, Sri Caitanya
Caritamrta, etc. Afinal, o que Srila Prabhupada trouxe ao Ocidente foi uma
ciência espiritual perfeita, não o hinduísmo. Certa vez, em um discurso dado na
sua volta triunfal à Índia, Srila Prabhupada enfaticamente disse aos seus
compatriotas: “Se vocês tentarem converter um ocidental ao hinduísmo, ele vai
lhes dar um chute na cara!” Não é isso que Prabhupada veio fazer no Ocidente.
Ele veio trazer algo puro, acima de qualquer influência geográfica ou temporal,
algo verdadeiramente universal. É essa ciência universal da consciência de
Krishna que ele, e todo nosso parampara, deseja ver sendo distribuída ao
mundo. O mundo não está interessado em mais uma manifestação mundana de cultura
e religiosidade. As pessoas estão cada vez mais querendo encontrar um
conhecimento científico puro e completo para dar sentido e propósito à vida; um
conhecimento universal que torne nossas vidas mais saudáveis e felizes. E é
exatamente isso que o Srimad Bhagavatam e o Bhagavad-gita
ensinam.
ASPECTOS EXTERNOS
É claro que não há dúvida quanto ao aspecto
verdadeiramente espiritual e filosófico das práticas dentro da ISKCON. As
escrituras são detalhadas e os comentários de Srila Prabhupada as tornam cem
por cento compreensíveis. A essência de nossas práticas — como os princípios
reguladores e o canto do maha-mantra, todo o vasto acervo de informações
acerca do mundo espiritual e a vida em outras partes do universo material, o
nome, forma e passatempos de Deus, etc. — tudo isso é perfeitamente fidedigno,
explicado nas escrituras e por todos acaryas de nosso parampara.
Esse é nosso grande tesouro, o conhecimento claro e perfeito acerca do Absoluto
que a sociedade humana tanto necessita e que transforma a vida de todos que o
recebem.
Porém, em muitos casos, existem alguns aspectos
externos de nossas práticas e da forma com a qual apresentamos esse
conhecimento no Ocidente que precisam ser examinados, onde há uma nítida
confusão entre aquilo que é verdadeiramente védico e aquilo que é apenas
indiano, hindu ou simplesmente inventado.
Entre devotos praticantes da consciência de
Krishna (vaisnavas) e até mesmo entre acadêmicos, é reconhecido que o Srimad
Bhagavatam (também conhecido como Bhagavata Purana) é a mais elevada
e importante escritura de devoção a Krishna. Sabemos que alguns textos védicos
(outros Puranas, o Mahabharata, etc.) sofreram alterações e não
foram perfeitamente preservadas, porém sabe-se e é aceito que tanto o Srimad
Bhagavatam como o Bhagavad-gita permanecem inalterados, não
existindo qualquer controvérsia quanto a esse ponto. Agora se formos analisar
esses dois textos, em especial o Srimad Bhagavatam, em termos de tentar
entender os aspectos externos (roupa, arquitetura, tipo de culinária, etc.) das
civilizações védicas ali descritas, veremos que pouquíssimos detalhes podem ser
apurados. Às vezes na tradução vemos termos como saris ou algum nome
específico de preparação culinária, mas, ao analisarmos o sânscrito, veremos
que os termos são bastante vagos, como “roupa superior” ou “preparo feito com
leite”. Como explicar que um texto tão vasto (cerca de 18 mil versos) e tão
importante não contenha tais explicações? A resposta é muito simples: porque
não são importantes. O propósito do texto é explicar o que é realmente
importante, o que é realmente védico: a consciência de Krishna e o que isso
implica em termos de diferentes técnicas de bhakti-yoga, estilo
de vida, comportamento, organização social, etc. Ou seja, o texto nos apresenta
o que é verdadeiramente védico e não os detalhes externos que variam de tempos
em tempos, de um local para outro.
RISCOS
Poderia então se perguntar agora: e qual o
problema de estar praticando algo indiano ou hindu? Mas o problema de fato é
muito sério. Isso porque nossa missão não é de ser um mero representante da
cultura indiana ou hindu, por mais bela e nobre que possa ser. Nosso destino
não é de conquistar um pequeno território no campo das culturas e etnias
mundiais. Nosso destino é salvar o mundo. Afinal, estamos representando
Prabhupada e Krishna, o devoto puro e Deus (re-presentar, apresentar
novamente). Prabhupada não veio ao Ocidente para iniciar uma rede de missões
culturais da Índia. Ele veio para salvar a humanidade. Portanto, se estamos de
alguma forma afetando a imagem de nosso Movimento de forma negativa ou mesmo
mal representando a verdadeira cultura védica, então estamos falhando
gravemente em nossa atuação, em nossa missão. Afinal, o aspecto externo é
aquele que é primeiro visto. Se esse aspecto externo, por alguma falha nossa, é
algo pouco atraente, desinteressante ou até mesmo ridículo, estamos então prejudicando
a vida espiritual daqueles que, graças a nossa má atuação, perderam o interesse
em nossa mensagem, na mensagem de Krishna e Prabhupada antes de conhecê-la. Até
mesmo do ponto de vista psicológico, é sabido que o corpo e mente têm uma
resistência natural a mudanças. Portanto, quanto mais mudanças, especialmente
externas, parecemos exigir, menor será o número de pessoas dispostas a
aceitá-las ou sequer se interessar pelo processo, especialmente aqueles já bem
sucedidos e estabelecidos na sociedade. Em outras palavras, é de máxima
importância apresentarmos apenas a essência, a verdadeira ciência espiritual,
para tornar nossa mensagem mais acessível, atraente e mais facilmente
aplicável.
O QUE PODE MUDAR?
Devemos ser muito mais cuidadosos na
compreensão do sentido verdadeiro do termo “cultura védica”. Não devemos seguir
em frente com modelos apenas por que têm sido usados até momento. Pelo
contrário, devemos ter a humildade de reconhecer que precisamos mudar, pois, em
termos práticos, quase 40 anos após a chegada de Prabhupada no Ocidente,
pode-se dizer que nossa influência na sociedade ocidental é zero. Sim, milhões
de seres humanos e outros seres vivos se beneficiaram enormemente da
consciência de Krishna. Sim, centenas de milhões de livros e revistas foram
distribuídos. Incontáveis toneladas de prasadam foram distribuídas mundo
afora. Tudo isso é certo, maravilhoso e louvável. Porém, o problema é que
nossos objetivos, os objetivos de Prabhupada, são muito mais grandiosos.
Estamos aqui para radicalmente mudar a consciência, de materialista para
espiritual, de uma significativa parcela dos habitantes do planeta,
especialmente seus líderes. Portanto, é válido iniciarmos uma discussão sobre
nossos métodos e hábitos, no intuito de aperfeiçoar nossa apresentação e melhor
representar a verdadeira cultura védica e a consciência de Krishna ao mundo.
Resistir a isso é natural. Todo ser humano tem um mecanismo psicológico onde
qualquer prática ou ritual ligado a nossa espiritualidade, se realizada por
tempo suficiente e por um número suficiente de pessoas, se torna parte
integrante de nossa vida religiosa. Sem considerar a origem, praticidade ou
autenticidade dessa prática ou ritual, achamos que nossas vidas espirituais
serão seriamente ameaçadas se forem interrompidas ou alteradas. É justamente
esse tipo de coisa que nos levou a abandonar nossas tradicionais religiões e
nos aprofundar na consciência de Krishna. Não devemos ser sentimentalistas e
sim verdadeiro cientistas. Falamos muito que a consciência de Krishna é uma
ciência espiritual e não apenas uma religião. Portanto, devemos manter isso em
mente ao questionar alguns aspectos de nossas práticas, não só agora, mas
sempre. Vale sempre lembrar que isso não é uma licença para a especulação
mental. Agir cientificamente em termos espirituais significa se basear cem por
cento em guru, sastra e sadhu. Na ISKCON isso implica em levar a
cabo as ordens de Srila Prabhupada, especialmente as contidas em seus livros, e
não contrariar ou comprometer seus ensinamentos de forma alguma.
Vamos agora analisar alguns aspectos externos
praticados na ISKCON:
Roupas
Aquilo que chamamos de “roupa devocional”, ou
seja, dhoti, kurtas e saris, não é roupa devocional. Dhotis
são usados por pessoas que odeiam Krishna, como os membros do Taliban e outros
grupos muçulmanos radicais. Até Osama Bin Laden os usa. Dhotis não
passam de roupas usadas na Índia e por outros povos entre o Oriente Médio e o
sul e sudeste da Ásia. Roupas usadas por ateus, mayavadis, shivaistas,
etc. Saris também são apenas roupas asiáticas, usadas por todo tipo de
gente e não é, de forma alguma, algum tipo de exclusividade vaisnavas ou
védica. E agora um fato realmente interessante: em todas nossas escrituras
antigas sequer podemos encontrar a palavra dhoti ou sari – não
são palavras sânscritas. O que se encontra no Mahabharata, na descrição
de uma roupa apropriada, é o termo “casto”. Ou seja, a roupa verdadeiramente
védica é aquela que é casta, limpa e digna. Isso sim é vestir-se de acordo com
a cultura védica. Muitas vezes vemos saris que nem sequer védicos são,
pois ao expor em demasiado a barriga de uma mulher deixa de ser uma roupa digna
e casta. E, ademais, uma roupa não pode ser devocional ou não, e sim a
consciência de quem a usa. Ou seja, não é a etnia da roupa que irá determinar
se a consciência de uma pessoa é devocional ou não, e sim a apresentação
(castidade, limpeza, dignidade) e comportamento em geral dessa pessoa. Também
temos que abandonar essa idéia que todos que praticam a consciência de Krishna
são monges e, portanto, precisam se vestir como tal ao ir ao templo, quando na
verdade 99% dos membros da ISKCON vivem em casa e se ocupam em atividades não
monásticas. Apenas os sacerdotes diretamente responsáveis pelo programa do
templo precisam se vestir, serem identificados, como tais. Os demais membros da
congregação apenas devem se vestir de forma “normal”, de forma verdadeiramente
védica (casta, limpa e digna). Mesmo aqueles que são sannyasis e
sacerdotes no templo, ao sair na rua, podem se vestir de forma discreta (casta,
limpa e digna), não com as mesmas roupas que usariam ao realizar um culto ou
dar uma aula. Essa é a etiqueta observada no Ocidente, seguida quase na
totalidade por sacerdotes de outras religiões. Portanto, não há razão para
escolher uma roupa que cause estranheza, uma roupa asiática que nem sequer os
líderes desses países usam, como sendo o uniforme de uma ciência espiritual
universal, quando podemos optar por algo védico adequado a atual cultura
global. A conseqüência disso seria fantástica. Imaginem como melhoraria nossa
imagem se nos apresentássemos desta forma. Estaríamos derrubando uma enorme
barreira que erguemos. Seria fantástico se as pessoas associassem o devoto como
aquele que se veste de forma casta, limpa e digna. É essa a imagem que queremos
transmitir.
Música
Achamos que músicas e instrumentos musicais do
Ocidente não podem ser védicos. Isso é um grande engano. Pensamos que o
harmônio, shenai, mrdanga e kartalas são verdadeiramente
védicos. Porém o harmônio é um instrumento de origem alemã e o shenai é
do Oriente Médio. Portanto, a origem ou tipo do instrumento não faz diferença
alguma e sim o resultado final. Música védica é aquela que é realizada com
“conhecimento”. Isso significa conhecimento musical e conhecimento
transcendental. Ou seja, a música védica é aquela que não só demonstra um alto
grau de harmonia, graça e beleza musical, mas também que eleva nossa
consciência a Deus. Por exemplo: Vivaldi era um padre, Bach viveu num mosteiro
e Hendel era muito religioso e usava sua música como forma de elevar as pessoas
e a glorificar Deus — todos são reconhecidos como gênios musicais. Portanto,
suas músicas são cem por cento védicas. Isso é apenas um exemplo; existem, é
claro, muitos outros no Ocidente e certamente em outras culturas também. O
ponto é entender que védico não significa apenas indiano.
Por outro lado, não basta apenas adicionar o
elemento espiritual aos santos nomes de Deus ou Seus passatempos e instruções,
para tornar um som em música védica. Se ligarmos uma britadeira e uma serra
elétrica e ao mesmo tempo cantarmos o maha-mantra, não podemos afirmar
que isso é música devocional. É certo que os santos nomes são absolutos, mas
música não. Achar que qualquer barulho é música é fruto de uma sociedade
ignorante e certamente contraria o princípio de uma cultura védica, uma cultura
de excelência, onde em tudo se busca a perfeição e a elevação. A música na
cultura védica, como tudo mais, deve ser uma oferenda a Deus. Da mesma forma
que deixamos apenas nossos melhores cozinheiros preparem os alimentos para as
Deidades, também precisamos deixar apenas nossos melhores músicos tocarem e
cantarem para as Deidades. O kirtana nos templos é uma oferenda musical
à Deidade, não algo feito para nosso prazer e desfrute. Portanto, sons
estridentes ou perturbadores (como se obtém ao ter vários kartalas e/ou mrdangas
sendo mal tocadas simultaneamente), excessivos barulhos (que já levou muitos
devotos à perda parcial de audição) e falta de musicalidade é tão ofensivo
quanto oferecer um alimento demasiadamente salgado ou queimado para as
Deidades. Nossa ciência espiritual diz que devemos cultivar o modo da bondade,
para então transcendê-lo à pura espiritualidade. Onde está o modo da bondade
num kirtana onde as pessoas correm o risco de perder sua audição? Onde
instrumentos de percussão são usados como uma espécie de terapia primal? Onde o
som que é produzido dificilmente seria interpretado como música por qualquer
pessoa sana? Vemos nos passatempos do Senhor Caitanya como Ele
pessoalmente escolhia os músicos e cantores para seus kirtanas,
escolhendo, é claro, os melhores. Até mesmo no início da ISKCON, na década de
1960, ninguém poderia tocar diante da Deidade sem antes passar por um
treinamento e ser aprovado. Veja como Prabhupada tocava a mrdanga, que
maravilha que é! Mrdanga é um verdadeiro instrumento, que necessita de
treinamento e estudo para ser bem tocado. Quem for tocá-lo, especialmente
diante das Deidades e dos outros devotos, deve seguir os passos de Prabhupada,
estudando e praticando seriamente. Como seremos respeitados por termos o mais
elevado conhecimento e forma de viver se a expressão musical pela qual somos
conhecidos e que oferecemos a Deus em nossos templos é algo tão parecido com o
som heavy metal e punk? Por acaso os líderes da sociedade global glorificam ou
apreciam esse tipo de música? Quantas pessoas respeitáveis de nossa sociedade,
professores, médicos, empresários, etc., seriam capazes de se sentirem
inspirados ao ouvir um kirtana assim? Podemos fazer lindos kirtanas,
verdadeiramente doces (madhu, madhu, dizia Bhaktivinode Thakur) —
kirtanas que invocam o modo da bondade, a devoção, não a paixão
desenfreada. Não devemos fazer um show de êxtase devocional, correndo, berrando
e estraçalhando as karatalas e mrdangas. Existe um grande risco
de confundir êxtase devocional com uma manifestação da nossa cultura original,
ou seja, uma cultura onde predomina o modo da ignorância (barulho e dor) e
paixão (cantar/tocar a todo volume e ritmo frenético).
No caso de Harinam nas ruas, o efeito é
ainda pior, muito mais grave, pois estamos forçando as pessoas a se submeterem
a algo que para a maioria não é nada atraente (curioso e engraçado na melhor
das hipóteses). Em Bombaim, Prabhupada proibiu o Harinam quando
descobriu que era mal visto pela classe alta local. Por acaso a elite das
sociedades no Ocidente acha o Harinam atraente e bonito? Na época dos
hippies pode ter sido um grande sucesso e altamente eficaz (em atrair hippies),
mas será que isso é aplicável ao nosso tempo, lugar e circunstância? E se
realmente formos sair às ruas cantando e tocando instrumentos não deveríamos
ser duplamente cuidadosos na escolha dos músicos e na roupa que usarão ao nos
representarem diante de todo o público?
Cultura do piso
Temos na ISKCON a errônea idéia que cultura
védica significa sentar, comer e dormir no chão. Achamos que isso é tão nobre e
benéfico, que obrigamos nossos visitantes a fazerem o mesmo em nossos templos.
O Srimad Bhagavatam e outras escrituras estão repletas de descrições de
móveis, camas, etc. Isso é um bom exemplo de como os devotos da ISKCON
assumiram uma cultura artificial, mesmo contrariando as sugestões de
Srila Prabhupada, o que dizer, então, da antiga cultura védica. Um exemplo
famoso é o de Los Angeles. Quando Prabhupada foi ver a igreja que mais tarde a
ISKCON comprou e onde, até hoje, se situa o templo de Los Angeles, os bancos
ainda estavam lá. Srila Prabhupada falou para os devotos que eles deveriam
deixar os bancos lá para o público ficar mais confortável. Mas, no entusiasmo,
os devotos os tiraram, e até hoje continua sem bancos. Não há razão alguma para
não termos lugares para nossos convidados sentarem. É um absurdo achar que
devemos impor tal desconforto a aqueles que estão se aproximando de Krishna e
Prabhupada e até mesmo impor isso à nossa congregação. Quando devotos têm suas
próprias casas, sempre encontramos confortáveis sofás, camas e cadeiras. Por
que achamos que no templo o padrão deve ser inferior? Onde está a ciência
espiritual nisso?
Talheres
O mesmo pode ser dito da cultural de comer com
as mãos. Tudo bem que Srila Prabhupada fazia assim, mas ele foi criado assim.
Viveu toda uma vida numa cultura onde se comia assim. É óbvio, portanto, que
ele não mudaria ao chegar no Ocidente. Mas esse não é nosso caso e muito menos
nossa cultura. Não há vantagem alguma em comer com a mão, se termos talheres
disponíveis. Não é mais higiênico ou mais prático. O efeito que tem em nossos
visitantes é muito ruim, pois no Ocidente isso não é bem visto. É considerado
um tanto grosseiro e estranho, até mesmo repugnante. Portanto, não podemos
correr o risco de transmitir uma impressão tão ruim assim por conta de algo que
não é védico, nem de forma alguma necessário.
Vamos refletir um momento e pensar o que um
ocidental pensaria ao ver pessoas vestindo uma roupa asiática que mais parece
uma gigante fralda, sentados no chão, comendo com as mãos... E o pior que nada
disso é védico, é necessário ou nos ajuda a desenvolver a consciência de
Krishna. Pior ainda prejudica enormemente nossa missão, nosso verdadeiro dever,
de difundir a ciência espiritual pura de bhakti-yoga.
Comida
Tanto no Bhagavad-gita como no Srimad
Bhagavatam encontramos descrições do tipo de alimento que devemos oferecer
a Deus e comer. Diversas vezes é explicado que devemos oferecer e então comer
alimentos no modo da bondade. Tais alimentos são descritos no BG (17.8)
como sendo aqueles que aumentam a duração da vida, são saudáveis, purificam
nossa existência, nos dão força, felicidade e satisfação. Isso, portanto, é
comida védica. Não há necessidade alguma de ser comida indiana. Nem tampouco
podemos achar que podemos comer todo tipo de fritura e doce ou pratos cheios de
queijos industriais (todo queijo amarelo no Brasil contém coalho bovino!).
Basta ver a saúde precária de muitos devotos antigos, que se submeteram a uma
dieta nada saudável de excessiva gordura e açúcar. Os devotos não deveriam ser
conhecidos como aqueles que fazem saborosos pratos Indianos (um rótulo étnico),
mas, sim, como aqueles que fazem saborosos pratos que, “aumentam a duração da
vida, são saudáveis, purificam nossa existência, nos dão força, felicidade e
satisfação” (que seria reconhecimento de um conhecimento superior e
científico). Cada vez mais as pessoas buscam tais alimentos e deveríamos
ensinar ao mundo como comer assim, uma vez que isso é uma parte intrínseca da
verdadeira ciência espiritual da consciência de Krishna.
Cantando japa nas ruas
Até mesmo o simples ato de cantar japa
nas ruas, com a mão no saquinho, tem resultados contraproducentes para nossa
pregação. Vamos apenas refletir na aparência de alguém com a mão enfiada num
saquinho, com um dedo para fora, sacudindo-o e falando para si mesmo (e muitas
vezes fazendo alguma careta em concentração). Vamos deixar de lado por um
momento o fato de sabermos que o ato em si (cantar japa) é maravilhoso e
benéfico e vamos imaginar o que uma pessoa normal no Ocidente pensa ao ver
isso. Esse é o ponto. Não devemos apenas agir de forma a nos beneficiar, mas
sim agir de forma que outros também se beneficiem. Se algo que fazemos, que
pode ser alterado sem comprometer nossos verdadeiros princípios, causa
estranheza ou afeta nossa imagem de forma negativa, então continuar a agir
assim é irresponsável e egoísta. Irresponsável porque estamos ignorando a ordem
máxima de Prabhupada de apresentar a consciência de Krishna de forma
inteligente e atrair o máximo número de pessoas e egoísta porque estamos
pensando apenas em nosso avanço espiritual.
Dança, arte e arquitetura
O mesmo princípio aplica-se a todos os demais
aspectos da cultura védica. Dança, arte e arquitetura védicas também não são
necessariamente indianos. Prabhupada freqüentemente apreciava a arquitetura
clássica ocidental. Nossos templos não necessitam ter aquela decoração
rebuscada e colorida que costumeiramente possuem. Nem há razão para sempre
termos shows de dança indiana em nossos programas como Ratha Yatra. Isso só faz
estereotipar nossa imagem, limitando assim a visão que as pessoas poderiam ter
da ISKCON, de estar representando algo realmente universal e prático.
JUSTIFICATIVA
De acordo com os ensinamentos de Prabhupada e
das escrituras essas mudanças podem ser feitas na ISKCON? A resposta é sim.
Podem e devem. É nosso dever. Prabhupada falou que ele tinha apenas criado a
estrutura básica1 e que cabia a nós dar o acabamento. Podemos ver que em seus
60 volumes, ele não fala sobre esses pequenos detalhes, sabendo que isso é uma
questão de tempo, lugar e circunstância. Como poderia um movimento durar 10 mil
anos sem alterar tais detalhes? Como poderia uma ciência ser válida por todo
tempo em todos os universos se ficasse presa a esse tipo de coisa? O ponto é
que Prabhupada sempre falava, “apenas acrescente Krishna”2. Ele não dizia para
apagarmos tudo e começar do nada, e sim deixar tudo do jeito que está, mas
acrescentar Krishna, pois aí o resultado seria maravilhoso. Um dos pontos mais
importantes da nossa filosofia, que Prabhupada enfatiza repetidamente, é o
princípio de adaptar a ciência espiritual ao tempo, lugar e circunstância3.
Prabhupada não veio ao Ocidente para tirar nossas calças ou os talheres de
nossas mãos, nem nossas cadeiras. Tampouco ele veio para substituir a
arquitetura, dança e música clássica ocidental. Ele veio para trazer Krishna e
a ciência de conectar tudo a Ele novamente.
CONCLUSÃO
Na verdade, a cultura védica não é algo
externamente padronizado, em termos do tipo de música, roupa, arquitetura,
culinária, etc. Varia de um lugar para o outro e de uma época para outra. Não é
que por todo universo, por toda Vaikuntha, onde quer que predomine a cultura
védica iremos encontrar exatamente o mesmo tipo de roupa, arquitetura, arte,
dança, culinária, etc. Se mesmo num minúsculo planeta como o nosso encontramos
simultaneamente tantas culturas vastamente diferentes, o que dizer da
inconcebível criação de Deus? Não é por omissão que nossas principais
escrituras, e nossos grandes acaryas, incluindo Prabhupada, não tocam
nesses assuntos. É porque isso é uma questão variável, uma questão superficial.
O que não é variável na cultura védica é a ciência espiritual, as diferentes
formas de auto-realização e avanço espiritual, culminando em puro serviço
devocional a Sri Krishna. Também não é variável o fato que cultura védica
significa esmerar pela perfeição, pelo conhecimento máximo em tudo que se faz.
Assim, a ISKCON deveria se esforçar para mostrar ao mundo esse ideal de buscar
a qualidade máxima em tudo que se faz como uma oferenda a Deus. Quem pode
argumentar contra um objetivo tão perfeito? Quem poderia se opor a um Movimento
que trabalhasse assim? Se realmente estamos levando a sério a ordem e a missão
de Srila Prabhupada, devemos entender que não há outra alternativa. No mundo
globalizado vemos duas principais tendências: a busca pela excelência e a
padronização de uma cultura universal. Empresas e governos sérios investem
bilhões de dólares em educação e treinamento para seus funcionários, exigindo
deles um nível cada vez maior de eficiência e qualidade. Praticamente nenhuma
empresa grande consegue sobreviver sem estar constantemente aperfeiçoando seus
produtos e processos. Nos países mais desenvolvidos, o povo também exige de seu
governo crescente qualidade e excelência. E, já há muitas décadas, vemos que
aquilo que é considerado como sendo algo digno e respeitável em Nova York, será
igualmente digno e respeitável em Xangai, Deli, Paris ou São Paulo. O mundo
busca universalidade para essa nova realidade. É insensato e contraproducente
tentar apresentar uma mensagem, não importa quão maravilhosa seja, imersa num
formato étnico exótico. Agindo dessa forma estamos dizendo ao mundo que não
estamos interessados nele, e, em contrapartida, o mundo não está interessado em
nós. Estamos totalmente fora de sintonia com a realidade atual. Claro que nossa
filosofia é perfeita e na verdade pessoalmente não precisamos da aprovação de
ninguém, nem estamos interessados em seguidores, fama, etc. Mas, como uma
instituição, como pregadores, não podemos pensar assim. Temos que nos esforçar
e fazer tudo que podemos para nos manter atuais e relevantes, se quisermos que
nossa mensagem seja ouvida.
NOTAS
1 “Now I have built the skyscraper
framework, you fill it in nicely” (Carta a Rupanuga, Delhi, 10 de dezembro de
1971).
Tradução:
“Eu construí a estrutura de um arranha-céu, agora preencham-na
apropriadamente”.
2 “They are interested to get
knowledge, but the materialistic knowledge will lead them astray from real goal
of their intelligence, and all of their credits in education will only add up
to so many zeros. But if you yourself are very much well-acquainted with our
Krishna philosophy, you will be able to convince them that if they make Krishna
or God the center of their learning process, never mind they’re scientists,
chemists, politicians, whatever they may be, if they put Krishna in front of so
many zeros they will come out with a huge sum and their life will be very much
perfect” (Carta a Tribuvannatha, Los Angeles, 16 de junho de 1972).
Tradução:
“Eles estão interessados em obter conhecimento, mas o conhecimento materialista
os desviarão do objetivo real da inteligência deles, e todos os seus créditos
em educação adicionará somente muitos zeros. Mas se você mesmo está muito bem
informado com nossa filosofia de Krishna, você estará apto a convencê-los que
se eles tornam Krishna ou Deus o centro de seus processos de aprendizado, não
tem importância se eles são cientistas, químicos, políticos, o que quer que
eles sejam, se colocam Krishna em frente de muitos zeros, eles irão revelar uma
enorme soma e suas vidas se tornarão muito perfeitas”.
3 “The method of worship — chanting
the mantra and preparing the forms of the Lord — is not stereotyped, nor is it
exactly the same everywhere. It is specifically mentioned in this verse that
one should take consideration of the time, place and available conveniences.
Our Krsna consciousness movement is going on throughout the entire world, and
we also install Deities in different centers. Sometimes our Indian friends,
puffed up with concocted notions, criticize, “This has not been done. That has
not been done.” But they forget this instruction of Narada Muni to one of the
greatest Vaishnavas, Dhruva Maharaja. One has to consider the particular
time, country and conveniences. What is convenient in India may not be
convenient in the Western countries. Those who are not actually in the line
of acaryas, or who personally have no knowledge of how to act in the
role of acharya, unnecessarily criticize the activities of the ISKCON movement
in countries outside of India. The fact is that such critics cannot do anything
personally to spread Krsna consciousness. If someone does go and preach, taking
all risks and allowing all considerations for time and place, it might be that
there are changes in the manner of worship, but that is not at all faulty
according to sastra. Srimad Viraraghava Acharya, an acharya in the disciplic
succession of the Ramanuja-sampradaya, has remarked in his commentary that
candalas, or conditioned souls who are born in lower than sudra
families, can also be initiated according to circumstances. The formalities may
be slightly changed here and there to make them Vaishnavas” (SB 4.8.54,
Significado).
Tradução:
“O método de adoração – cantar mantras e preparar as formas do Senhor – não é estereotipado,
nem é exatamente o mesmo em todos os lugares. Ele é especificamente
mencionado neste verso que deve-se tomar consideração do tempo, lugar e
conveniências disponíveis. Nosso
movimento para a consciência de Krishna está em andamento através do mundo
todo, e nós também instalamos Deidades em diferentes centros. Às vezes, nossos
amigos indianos, inflados com noções forjadas, criticam, “Isto não tem sido
feito. Aquilo não tem sido feito”. Mas eles esquecem esta instrução de Narada
Muni para um dos maiores Vaishnavas, Dhruva Maharaja. Tem-se que considerar o
tempo particular, país e conveniências. O que é conveniente na Índia pode
não ser conveniente nos países Ocidentais. Aqueles que não estão atualmente
na linha dos acaryas (mestres espirituais), ou que pessoalmente não tem
conhecimento de como agir na posição de acarya, desnecessariamente
criticam as atividades do movimento ISKCON nos países fora da Índia. O fato é
que tais críticas não podem pessoalmente difundir a consciência de Krishna. Se
alguém não vai e prega, correndo todos os riscos e concedendo todas as
considerações para tempo e lugar, isto pode parecer que há mudanças na maneira
de adorar, mas que não está tudo imperfeito de acordo com o shastra
(escritura). Srimad Viraraghava Acarya, um acarya na sucessão discipular
da Ramanuja-sampradaya, tem observado em seus comentários que candalas,
ou almas condicionadas que são nascidas em famílias mais baixas que sudras
(classe social mais baixa), também podem ser iniciadas de acordo com as
circunstâncias. As formalidades podem ser levemente mudadas aqui e lá para
torná-los Vaisnavas”.
[1]
Estou situado nos corações de todos, e é através de Mim que vêm a lembrança, o
conhecimento e o esquecimento. Através de todos os Vedas, é a Mim que se
deve conhecer. Na verdade, sou o compilador do Vedanta e sou aquele que
conhece os Vedas.
REFERÊNCIA:
DAS, Giridhari. O
que é védico? Disponível em: https://www.guardioes.com/o_que_e_vedico.htm.
Acesso em: 18 ago. 2023.