Por João Florindo Batista Segundo
“Epistemologia” trata-se da tradução por Eduardo
Rodrigues da Cruz do Capítulo 1.3 da coletânea organizada por Michael Stausberg
e Steven Engler, que tem por título The
Routledge Handbook of Research Methods in the Study of Religion. (Londres: Routledge,
2011, p.40-53). O texto é de autoria de Jeppe Sinding Jensen, professor do
Departamento de Cultura e Sociedade da Universidade de Aarhus, Dinamarca; já o
tradutor é professor titular do Programa de Estudos Pós-graduados em Ciências
da Religião da PUC-SP e a ação fez parte de um projeto iniciado pela REVER em
2011, com o fim de verter para o português parte deste compêndio (seis
capítulos), preocupada com questões epistemológicas e metodológicas de fundo em
Ciências das Religiões em face dos recentes desenvolvimentos na área no mundo
anglo-saxônico e norte-europeu.
Jeppe Sinding Jensen, embora proeminente membro da
IAHR, com inegável contribuição à reflexão metateórica no âmbito das Ciências
das Religiões, ainda é pouco estudado no Brasil. Nesse texto, percebe-se como
ele debruça-se sobre a Epistemologia de uma maneira incomum aos leitores de
obras acadêmicas brasileiras.
Jensen inicia seu texto
afirmando que a Filosofia da Ciência e seus componentes, tais como questões
epistemológicas, são necessários a um estudo mais robusto das religiões, capaz
de contemplar e resolver alguns dos seus problemas.
De início, deve-se considerar quão
diametralmente opostas são as alegações científicas e as religiosas, dado que
estas últimas não podem ser validadas pela ciência, especialmente no que tange às
verdades ou agentes, o que não inviabiliza o estudo da religião enquanto comportamentos
humanos, ideias e instituições perscrutados sob a ótica das ciências humanas e
sociais. Contudo, há certos pontos que merecem destaque em relação à Epistemologia,
a saber: a questão da natureza dos dados, os modos de raciocínio inferencial,
as consequências do relativismo; as razões de argumentação e justificação, a
questão da “virtudes epistêmicas”, e o problema do “conhecimento dos
inobserváveis”.
Por Epistemologia entenda-se a
teoria do conhecimento, do que este consiste, de como obtê-lo e de como
defendê-lo e justificá-lo. Suas principais abordagens são:
(1) Empirismo: o conhecimento do mundo é oriundo da experiência, por meio
de sensações nas quais baseamos as crenças básicas e realizamos asserções, de
modo que o conhecimento procede da indução. Não há conhecimentos inatos e tampouco
verdades a priori, e até os conceitos abstratos e universais partem de fatos
concretos.
(2) Racionalismo: emprego de mecanismos cognitivos na formação da
experiência, os quais atuam como operação mental, discursiva e lógica para se
chegar a constatar se uma ou outra proposição é verdadeira, falsa ou provável,
de modo que a razão sobrepuja a experiência do mundo sensível como via de
acesso ao conhecimento. Baseia-se nos princípios da busca da certeza,
demonstração e análise, de modo que o conhecimento não é inato, mas decorrente exclusivamente
do emprego da razão.
(3) Construtivismo: afirma a responsabilidade; as forças sociais são responsáveis
pelo conhecimento e pelos processos de formação do conhecimento, com foco na
intersubjetividade e na viabilidade pragmática.
O autor procura então responder
onde o questionamento termina em cada uma dessas abordagens, propondo como
solução a “conciliação” de Susan Haack: para ela, o melhor conhecimento deve se
encaixar tanto nas evidências disponíveis quanto nas teorias atualmente
consideradas válidas.
Além disso, o autor descreve o positivismo
enquanto o ato da ciência se concentrar nas questões cujo conhecimento é positivo
e confiável, do qual se beneficiou o estudo da religião em suas investigações;
hoje, o positivismo está em descrédito e o conhecimento busca incluir as
premissas para pesquisa. E o reducionismo também é considerado depreciativo no
estudo da religião.
Por reducionismo metodológico entenda-se
a ideia de que as explicações científicas devem ser reduzidas às entidades mais
simples possíveis, de modo a melhor compreendê-las e assim apreendermos o todo.
Para tanto, um método, uma técnica são essenciais, pelo qual o objeto de estudo
seja particionado em busca de verdade cientifica. Pode-se considerá-lo ainda uma
explicação que considere certas ordens de fenômenos sujeitas a leis mais bem
estabelecidas.
No âmbito das ciências humanas e
sociais, a formação do conhecimento tem descurado da busca de princípios
básicos e justificativas confiáveis, chegando ao ponto de serem considerados
campos não-científicos. Constata-se aí a apologética religiosa na formação do
conhecimento em estudos das religiões, vez que têm estado sob a influência de
um modelo derivado da cristandade ocidental. Demonstra ainda que enquanto as
ciências naturais são nomotéticas, vez que busca leis naturais gerais, as
ciências humanas e sociais são ideográficas, pois explicam fenômenos singulares,
de modo que sem trabalhos comparativos é impossível haver generalização ou
testes de hipóteses.
Em seguida, Jensen apresenta os
tipos e níveis de explicações prevalentes entre os filósofos da ciência em uma
escala do nomotético e causal até o ideográfico e contextual:
1. Explicações de “lei de cobertura”: ou explicação
dedutiva-nomológica, especifica uma relação lógica entre o que deve ser
explicado (o explanandum) e as condições
que o explicam (o explanans), de modo
que algo é explicado se pode ser comprovadamente deduzido como uma consequência
necessária de uma lei geral e uma série de condições iniciais.
2. Explicações causais: intimamente ligadas a explicações nomológico-dedutivas,
porém é cada vez mais difícil definir o que é uma “causa”.
3. Explicações estatísticas: comum nas ciências sociais e no estudo da
religião e tem uma força preditiva, ainda que seja um conceito filosoficamente
e logicamente dúbio.
4. Explicações disposicionais: explicações de motivos e razões,
“intencionais” ou ligadas a propósitos. Encontradas na análise psicológica de
sonhos, em discurso astrológico e em sistemas religiosos, pois estão
profundamente enraizadas na cognição humana.
5. Explicações “contextuais” ou posicionais: generalizada nas ciências
humanas e sociais, podem tratar de estruturas e mecanismos subjacentes em
vários níveis teóricos; explicam o significado de algo em um contexto.
6. Explicações funcionais: subconjunto das explicações posicionais abundante
no estudo da religião, da cultura e da sociedade; concentram-se nas
propriedades funcionais de fenômenos religiosos, a exemplo das funções sociais
da adivinhação e oráculos nos processos políticos da sociedade antiga. Podem
ser geralmente reveladoras, mas a direção de causa-efeito deve ser monitorada
de perto e criticamente.
No que concerne a interpretação e explicação,
atualmente entende-se como sendo atividades mutuamente compatíveis, vez que a
interpretação inclui geralmente uma medida de explicação. Exemplo disso que os
produtos humanos, como culturas, línguas e religiões são composições semânticas
e semióticas que necessitam ser explicados para serem compreendidos, de modo
que para a análise de ações e instituições humanas, o caráter explicativo da
interpretação pode ser ainda mais estendido conforme seja adequado. À guisa de
exemplo, Levi-Strauss explicou a natureza simbólica de sistemas de parentesco
da forma seguinte:
Porque são sistemas de símbolos, os sistemas de parentesco fornecem ao
antropólogo um campo privilegiado, no qual seus esforços quase (e insistimos no
quase) atingem os da ciência social mais desenvolvida, isto é, a linguística.
Mas a condição desse encontro, de que se pode esperar uma melhor compreensão do
homem, é jamais perder de vista o fato de que, tanto no caso do estudo
sociológico como no do estudo linguístico, estamos em pleno simbolismo. E se é
legítimo, até inevitável, em certo sentido, recorrer à interpretação naturalista
para tentar compreender o surgimento do pensamento simbólico, uma vez dado
este, a explicação deve mudar radicalmente de natureza, tanto quanto o fenômeno
recém-surgido difere de todos os que o precederam e prepararam. (LEVI-STRAUSS apud JENSEN, 2013, p. 182).
Jensen lembra que os dados são
dependentes da teoria e interpretados por indução, abdução e dedução. A dedução,
indispensável às ciências naturais como uma ferramenta de previsão, goza de
reputação conturbada nas Ciências das Religiões, vez que é predominante em
questões normativas em Teologia e Filosofia. Já a abdução consiste em se fazer
inferências e melhores suposições com base no que é conhecido, o que se pode
prever e o que melhor se ajusta a nossos modelos e teorias. Em Ciências das
Religiões vem-se debatendo a construção e aperfeiçoamento de modelos, de modo
que alguns se tornaram obsoletos, a exemplo do “fetichismo”, “pré-animismo” ou “dinamismo”.
Além dos acima expostos, também
são critérios para a caracterização da ciência, as relações coerentes entre
teoria e dados empíricos e a busca de leis e princípios gerais. Para Jensen, a
descoberta científica é um achado que foi estabelecido com base em métodos
reconhecidos como científicos, ainda que não existam correlações abrangentes o
suficiente para contemplar todas as ciências, ao que se apresenta como solução “Epistemologia
pluralista” de “realismo promíscuo”.
Patente então que a ciência
enquanto conjunto de práticas que buscam o conhecimento revela-se como uma
mistura de teoria, evidência e normas institucionais, ao que nosso autor complementa
afirmando a impossibilidade de sustentar uma versão forte da unidade científica
(defendida por reducionistas clássicos) e a impossibilidade de uma demarcação
entre o que é ou não é ciência.
Jensen afirma ainda que há padrões
epistemológicos normativos disponíveis e que são muito diferentes das práticas
estabelecidas, sendo necessário uma “virtude epistemológica” que trate da sensibilidade
à realidade empírica, de premissas plausíveis, da coerência com outras coisas
conhecidas, da exposição das críticas de uma ampla variedade de fontes etc.
De acordo com o pesquisador, ao
se ampliar o conceito de ciência, resolve-se o problema da demarcação e
permite-se uma maior amplitude das Ciências das Religiões em termos teóricos e
metodológicos, abrindo mão do emprego de cópias de desatualizadas concepções
cientificistas da ciência.
E no tocante às implicações metodológicas
constata-se que os métodos e procedimentos de pesquisa também devem primar pela
objetividade, imparcialidade, honestidade, reflexividade e autocrítica. Deste
modo, conhecer virtudes epistêmicas, em tese, leva por conseqüência à prática
de virtudes metodológicas que resultarão em uma investigação marcada pela “virtude
epistemológica”. Este é um norte a ser seguido, ainda que sua prática seja mais
difícil que o mero discurso a respeito. Neste sentido:
A ciência, interpretada simplesmente como o conjunto
de praticas que buscam conhecimento, às quais se atribui aquele título,
revela-se como uma mistura. O papel da teoria, evidência e normas
institucionais irá variar muito de uma área da ciência para a próxima. A minha
sugestão de que a ciência deve ser vista como um conceito de semelhança
familiar parece implicar não apenas que não se pode sustentar nenhuma versão
forte da unidade científica do tipo defendida por reducionistas clássicos, mas
também que não pode haver resposta possível ao problema da demarcação [ou seja:
a distinção entre o que é ciência e o que não é ciência] (DUPRÉ apud JENSEN, 2013, p. 186).
Quanto ao conhecimento de assuntos
inobserváveis (questões incompreendidas), estas vieram a colidir com as
nascentes ferramentas e teorias certas a lhes solucionarem, citando o autor, à
guisa de exemplo, a demonstração científica da gravidade; o lapso de tempo
entre o conhecimento por experiência e a demonstração à luz da ciência e sua
confluência final denota que a observação empírica e o conhecimento teórico
caminham lado a lado.
No âmbito das Ciências das
Religiões, as tradições religiosas são prenhes de reivindicações quanto à
existência de agentes e ações “invisíveis” e “transcendentes” (logo, não
observáveis), mas, à luz da Epistemologia, tais idéias já não são
inobserváveis, vez que já se tornaram tópicos em sistemas simbólicos e de linguagem
e até alçaram-se à condição de fatos sociais. Percebe-se nas Ciências Sociais que
vários dos temas capitais à vida humana são inobserváveis e saber como adquirir
conhecimento a respeito deles e traduzi-los epistemicamente é basilar a ditos
campos. Aí a importância dos conceitos para o entendimento das ações observadas
e de textos lidos para a composição de metalinguagens conceituais e acadêmicas,
mediações essenciais à expansão do conhecimento humano, no qual os “dados
brutos” são traduzidos não apenas como fatos científicos, mas também como fatos
sociais e postulados culturais.
No âmbito acadêmico, conceitos
são construídos a fim de traduzir em linguagens teóricas significados diferentes
às palavras anteriormente conhecidas, de modo a perceber as coisas, discorrer sobre
elas, elaborar teorias a respeito, ainda que tais “coisas” não existam
“realmente”. É sob este enfoque que as “coisas” não observáveis – ideias,
crenças e convicções, por exemplo – ganham vida. Os rituais das diversas
religiões são exemplo de observação tangível de conceitos abstratos que seriam
inobserváveis a princípio, o que demonstra uma mútua dependência teórica e
escopo interpretativo.
Por fim, Jensen assevera que
apresentou soluções desestressantes para muitas das cotidianas preocupações
epistemológicas, defendendo que as virtudes científicas são extensões e
continuações das faculdades humanas que evoluíram ao longo do tempo. Há uma
semelhança entre a prática científica e as práticas humanas em geral,
perceptível quando somamos ao estudo as obrigações da vida social e a
normatividade da linguagem. Logo, para Jensen, devemos buscar um cenário
“virtuoso” e abrangente em detrimento da busca por um conjunto de regras
rígidas e estanques no estudo das Ciências das Religiões.
REFERÊNCIAS:
JENSEN.
Jeppe Sinding. Epistemology. In: The
Routledge Handbook of Research Methods in the Study of Religion. Michael
Stausberg et Steven Engler
(organizadores). Londres: Routledge, 2011. p. 40-53.
JENSEN. Jeppe Sinding. Epistemologia. Eduardo
Rodrigues da Cruz (tradução). Rever. ano 13. n. 02. jul-dez. 2013. Disponível
em:
<https://revistas.pucsp.br/index.php/rever/article/download/18418/13662>.
Acesso em: 12 nov. 2018.