Nos meandros da ficção e da
realidade: alguns aspectos comuns entre castálicos e beneditinos em O Jogo das Contas de Vidro
Into the meanders of fiction
and reality: some common aspects between Castalian and Benedictines in The Glass Bead Game
Raphael Novaresi Leopoldo*
* O autor é discente
da Pós-Graduação em Literatura da Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC
além de estudante e técnico do grupo de pesquisa Teopoética – Estudos Comparados entre Teologia e Literatura, este
também vinculado à federal catarinense. Tem se aplicado
sobretudo à dialogicidade entre Teologia e Literaura. E-mail para contato:
raphanova@gmail.com.
Resumo
Com este trabalho,
objetiva-se evidenciar a instigante similitude engendrada por Hermann Hesse em O jogo das contas de vidro na criação de
uma instituição ficcional e secular, que pode ser chamada de Ordem castálica, e
na representação literária de outra, por sua vez, existente na realidade
não-literária e confessional, a Ordem beneditina. Buscando-se lograr tal
intento, expor-se-á ambas as congregações assim como apresentadas pelo narrador
do romance em questão, concentrando-se características esparsas pelo correr da
estória, além de reportar-se aos beneditinos enquanto organismo factual quando
estes possuírem traços subentendidos no romance que aparentem contribuir ao
estudo comparativo pretendido.
Palavras-chave: Teologia e
literatura; Romantismo alemão; Beneditinismo.
Abstract
This paper aims at
making clear the striking similarity managed by Herman Hesse in The glass bead game in the making of a
fictional secular institution, which can be called the Castalian Order, and in
the literary portrayal of another one, existing at the faithful non-literary
reality, the Benedictine Order. In order to achieve such goal, we will expose
both congregations as they are presented by the novel’s narrator, while we
focus on sparse characteristics along the story. Besides, we will report to the
Benedictines as an actual organism when they appear to possess traits unstated
in the romance which may contribute to the present comparative study.
Keywords: Theology and literature; German romanticism; Benedictines.
Musik des Weltalls
und Musik der Meister
Sind wir bereit in
Ehrfurcht anzuhören,
Zu reiner Feier die
verehrten Geister
Begnadeter Zeiten zu beschwören.1
Begnadeter Zeiten zu beschwören.1
..............................
(Das Glasperlenspiel)
Obsculta, o
fili, praecepta magistri, et inclina aurem cordis tuis, et admonitionem pii
patris libenter excipe et efficaciter comple [...].2
(Regula Sancti Benedicti)
No difícil ano de 1943, o mundo estava envolto nas agruras da II Grande
Guerra. Ainda assim, na França,
Saint-Exupéry lançava Le petit prince; no Brasil, Érico
Veríssimo tomava
emprestado um verso de Shakespeare para nomear um novo livro,
O
resto é silêncio; na Suíça, Hermann Hesse3 – autoexilado (SANTOS, 1946, p. 1) e produzindo literatura para sobreviver psicologicamente ao conflito
externo (HESSE, 2011) – publicava
Das Glasperlenspiel (O jogo das contas de vidro),4 seu derradeiro e mais extenso trabalho.5
Detendo-se na última obra, porém sem a pretensão de
fixar-se na controversa questão do que viria ser, na prática, a atividade
lúdica cujo nome é também o título do livro, o presente escrito propõe
discorrer a respeito de um aspecto, ao que parece, ainda não analisado das
certamente várias possibilidades de abordagem literária no que tange o acento
místico do romance em questão. Isso posto, não pretendendo
nem mesmo sugerir a vinculação de Hesse a crença ou crenças religiosas
porventura figuradas na ficção narrativa em voga, sabendo-se que vida e obra
não são algo necessariamente vinculados.
Mais propriamente, constata-se que em O jogo das contas de vidro Hesse
constrói duas societatis que se
relacionam e possuem características análogas apesar de se prestarem a
objetivos declaradamente distintos. A primeira delas
(castálica), trata-se de uma Ordem basicamente literária, realizada no espaço
ficcional; a segunda (beneditina), parte de uma organização real, isto é, que
existe extra-ficcionalmente. Busca-se, com a
exposição a seguir, identificar aspectos desse labor literário hessiano sobre
ambas as organizações.
Ajunte-se também que este breve estudo situa-se
propriamente dentro da dialogicidade existente na linha dos Estudos Comparados
entre Teologia e Literatura, que não se traduz por prédica proselitista na
academia ou mesmo propensão a pendores religiosos. Diferente disso, ainda que
naturalmente em diálogo constante com o religioso, mantêm-se aqui a nítida
noção da literatura como laico ponto de partida e também de chegada.
O recorte
temático e seu contexto
Em linhas gerais, a estória ou “esboço biográfico” (JCV, p. 132), nas palavras do próprio
livro, sobre o protagonista José Servo se passa em um tempo futuro, posterior
ao século XX.6 O protagonista, de origem modesta, ainda criança,
destaca-se sobremaneira no estudo da música a ponto de atrair a atenção de seu
professor. Com isso, após averiguação de cunho seletivo com resultado
favorável, o aluno é enviado para uma Província Pedagógica, situada na região
de Castália (do grego, fonte do saber),7
da grande e influente instituição denominada Ordem, de larga fama e
reconhecimento, que instrui, especializa e sustém seus membros, uma controversa
elite erudita e esteta.
Um encargo incomum naquele mundo à parte é que uma
seção específica de congregados, a casa Cela Silvestre, deve praticar e evoluir
o enigmático jogo de avelórios ou jogo das contas de vidro, tradicional especialidade castálica,
“[...] uma linguagem e um método universais, para exprimir todos os valores e
conceitos do espírito e da arte, levando-os a um denominador comum” (JCV, p. 87). Sobre
ele, o romance muito discorre filosoficamente, mas pouco explica de forma
concreta ao leitor, advertindo: “Não esperem portanto de nós a história e a
teoria completa do Jogo de Avelórios. Mesmo
autores de maior méritos e com mais competência que nós, não estariam em
condições de fazê-lo” (JCV, p. 3). E,
dentre outras coisas, é se tornando um exímio jogador de avelórios e
pertencendo à elite dos jogadores que José Servo ganha à confiança dos
superiores a ponto de o incumbirem de sucessivas missões. A primeira delas
trata-se da ida e permanência na Abadia8
do Rochedo Santa Maria.
Dos diversos aspectos que se possa levantar sobre a
citada incumbência do protagonista, o primeiro ponto a sublinhar é que esse
filho de Castália parte para uma operação de fundo diplomático – fato
esclarecido ao leitor e ao próprio Servo apenas na segunda parte da permanência
deste entre os monges, quando ele já está suficientemente ambientado na Abadia.
O objetivo é aproximar Castália da Igreja Católica,9 conforme
esclarece a José Servo o Mestre do Jogo de Avelórios Tomás Von der Trave, alta
autoridade castálica: “[...] pretendemos, cedo ou tarde, ter uma representação
permanente de nossa Ordem no Vaticano, esperando outro tanto da Igreja, se for
possível” (JCV, p. 141).
O grande intuito por trás dessa medida, que chega a ser
engenhosa, fica explícito nas seguintes palavras do narrador:
E o Mestre
Tomás continuou, na sua forma de falar persuasiva e bela, dizendo que agora
chegara o momento histórico, ou estava bem próximo, de construírem uma ponte
sobre o abismo que separava Roma da Ordem [castálica], pois em futuros perigos
essas duas instituições teriam sem dúvida inimigos comuns, participariam do
mesmo destino e seriam aliados naturais. (JCV,
p. 140).
Essas temidas adversidades por vir dizem respeito ao
contexto sociopolítico mundial. A hierarquia castálica pauta-se na constatação
histórica de que a Igreja, bem ou mal, sobreviveu a todo o tipo de crises
eclodidas dentro e fora dela. Em seu caráter terreno, esta
é sustentada pelo mundo que, mesmo estando por vezes submerso em graves
problemas, não consegue arrasar a estrutura eclesiástica. Temendo o próprio futuro, Castália pretende se
associar ao grande organismo a quem possa socorrer e, de igual forma, ser
socorrida, perenizando-se.
Para tanto, as autoridades castálicas mostram-se bem
informadas sobre a discreta via de acesso à cúpula da Igreja, vereda representada pelos monges beneditinos do Rochedo Santa Maria, ou melhor, um deles, em
particular: Ir. Jacobus. Mais que isso, a
hierarquia castálica demonstra trabalhar empenhadamente para atingir a meta
traçada, apesar do malogro da primeira tentativa, anterior a José Servo, ou
ainda do tempo gasto nessa espécie de manobra política – Servo leva cerca de
três anos para alcançar o intento.
Visão unívoca e
olhar pluralista de duas ordens
Constitui-se ponto-chave para esta leitura unir
coordenadas esparsas em O jogo das contas
de vidro objetivando-se chegar a um quadro de representação expressiva e
correspondente do concebido tanto para Castália como para a Abadia do Rochedo
Santa Maria. Iniciando-se por quem organiza a estória e a apresenta sob seu
ponto de vista, o narrador, cabe dizer que esta personagem ficcional se revela
castálica pela conjugação verbal presente no texto, ou seja, ao se referir à
Ordem existente em Castália, o narrador usa a primeira pessoa do plural. Além
disso, ele dá ares de narrador onisciente, pois parece dominar o universo
ficcional apesar de, segundo relata, basear-se totalmente em esparsos
documentos dos arquivos do jogo de avelórios e se situar no tempo posterior aos
acontecimentos que conta (JCV, p. 1).
Perfilando-se as principais características da Ordem
voltada à erudição, isto é, a castálica, cabe principiar pela apresentação da
rígida e bem delineada hierarquia desde seus primeiros estágios, como comenta o
Mestre de Música, quem examinou Servo e aprovou o ingresso deste na Província
Pedagógica: “A nossa Castália não deve ser apenas um lugar de seleção, mas
antes de tudo uma hierarquia, um edifício em que cada pedra só recebe seu
sentido por pertencer ao conjunto” (JCV,
p. 58). Dentro dessa estrutura, encontram-se membros adultos – formados e
envolvidos na docência ou na pesquisa, estes “[...] em atividades de pura
erudição” (JCV, p. 42) – bem como
notáveis jovens alunos – “[...] os mais belos talentos em todas as regiões e
escolas do país10 [...]” (JCV, p. 40). Dentre as regras mais básicas, a obediência irrestrita
consta taxativamente, como esclarece ainda o Mestre de Música:
Dentro da
Hierarquia, ele [o aluno aspirante a Ordem] deixa sempre que o coloquem no
lugar e na função escolhidos para ele pelos seus superiores – caso as coisas
não se passem ao contrário e sejam as qualidades, o talento e os erros do aluno
que obriguem os professores a colocá-los [sic] nesse ou naquele lugar” (JCV, p. 49).
E, nas palavras do narrador, abstinência sexual e
desapego material também vigoram: “[...] [os castálicos] subordinam-se durante
toda a sua existência às regras da Ordem, de que faz parte, entre outras, a
renúncia aos bens materiais, [sic] e o celibato” (JCV, p. 41).
No tocante a mística, há lugar reservado ao cultivo
diretamente espiritual, como de se esperar, dentro da proposta de
“espiritualidade intelectual-estética” (JCV,
p. 127). Conforme o narrador, “A técnica e o exercício da contemplação era
comum a todos os membros da Ordem e das Ligas do Jogo [de Avelórios]
pertencentes às Escolas da Elite, onde esses membros se dedicavam com o máximo
cuidado à arte de contemplar e meditar” (JCV,
p. 23). Abstinência de álcool (JCV,
p. 130) e jejum também se fazem presentes, sendo este praticado em preparação a
grandes celebrações rituais, como o anual “Ludus
sollemnis”, a solenidade do Jogo de Avelórios (JCV, p. 158), ou ainda outras ocasiões de cunho místico: “Duas
vezes vamos encontrá-lo [Servo] em Terramil, sede da Direção da Ordem, como
participante da “grande prática”, os doze dias de jejum e meditação” (JCV, p. 91, destaque do autor).
Feito isso, cabe registrar, agora de maneira mais
detida e precisa, uma percepção possivelmente instigante que por certo têm em
comum leitores atentos da obra hessiana em estudo além de conhecimentos em
estrutura eclesial: a Ordem castálica possui sensível semelhança com certos
organismos católicos que figuram entre os denominados oficialmente de institutos de vida consagrada.11
São eles espécies de famílias religiosas cujos membros vivem em comum, sob
juramento (votos) e dedicando-se a uma missão ou trabalho específico que
consideram seu foco.
Não menos curioso pode ser o fato de tais similitudes se
mostrarem voltadas mais exatamente para a mimese de um mosteiro característico
da Ordem de São Bento, esta de identidade católico-romana, com cerca de 1500
anos de existência, cujos membros são comumente chamados de beneditinos e vivem em comunidades
semi-enclausuradas dirigidas por um abade (do grego, pai) eleito entre eles próprios. Consideram-se filhos espirituais de Bento de Núrcia,12
organizador do monaquismo ocidental, adotando por guia de conduta a minuciosa
regra de vida escrita por ele, a quem chamam de patriarca (LEMAÎTRE; QUINSON; SOT, 1999, p. 59).
Adentrando-se no panorama sociopolítico, o trabalho
desenvolvido pelos monges, posto ao lado do progresso espiritual – daí o
dístico dual Ora et Labora
(latinismo, reza e trabalha) –,
fizeram os mosteiros beneditinos transformaram-se em centros de resguardo da
cultura humana, salvaguardando bibliotecas, mantendo escolas e desenvolvendo e
registrando até mesmo técnicas agrícolas em tempos rudes ou belicosos. Enfim,
como comenta Mircea Eliade e Joan Couliano (1992, p. 227, tradução nossa),
“[...] Bento cria centros relativamente protegidos cujo
propósito, em última instância [...], será o de cultivar as elites intelectuais
capazes de florir não apenas quando as condições externas mostrarem-se as mais
favoráveis.”
Na ficção romanesca de Hesse, a Abadia do Rochedo Santa Maria – que a versão portuguesa do Brasil
toma por “convento”13 – é cenário no qual se desenrolam dois
capítulos da estória, intitulados “Duas Ordens” (JCV, p. 108-133) e “A missão” (JCV,
p. 134-157). Sob aspectos também dados pelo narrador inominado, a comunidade
beneditina criada na estória conta com hierarquia definida, indo do noviço Antão
ao abade Gervasius,14 que podem lembrar, por contraste, a iniciação
e plenitude na Ordem. A erudição parece residir ou resistir15 na
imagem da “imensa biblioteca de teologia da Idade Média” (JCV, p. 116) e de Ir. Jacobus, “o mais competente historiador da
Ordem dos beneditinos” (JCV, p. 121).
Além disso, vigora na Abadia “severa regra de castidade” (JCV, p. 121) e a mística de “um cristianismo praticado diariamente”
(JCV, p. 132).
Não obstante o expresso com propriedade por Anatol
Rosenfeld (1998, p. 42), que, “Na ficção em geral, o raio de intenção se dirige
à camada imaginária, sem passar diretamente às realidades empíricas
possivelmente representadas”, a Abadia presente em O jogo das contas de vidro parece tão bem ajustada a um mosteiro
beneditino real que talvez seja cabível ainda algum acréscimo.
Apesar do escritor não fazer constar no livro em
questão, ao menos de modo explícito, as práticas de rigorosa obediência e
algumas abstinências e jejuns como vigília a celebrações litúrgicas importantes
também fazem parte da vivência beneditina, como consta na Regra, o documento máximo da Ordem de São Bento. Prescreve
tal documento sobre a obediência: “O primeiro grau da humildade é a obediência
sem demora. [...] [os bons monges] desconhecem o que seja demorar na execução
de alguma coisa, logo que ordenada pelo superior, como sendo por Deus ordenada”
(BENTO DE NÚRCIA, 1999, p. 63 – cap. 5, v. 4) e mais: “[...] tudo deve ser
feito com a vontade do Abade” (Ibid., p. 243 - cap. 49, v. 10).
Quanto à privação voluntária de alimentos, orienta-se
a “Amar o jejum” (Ibid., p. 49 - cap. 4, v. 13) e, referindo-se à Quaresma, um
tempo especialmente penitencial, têm-se “dias principais de jejum, que não se
possa violar” (Ibid., p. 253 - cap. 53, v. 10). A respeito das bebidas, faz-se
o elogio da abstinência alcoólica: “Aqueles, porém, aos quais Deus dá a força
de tolerar a abstinência [de vinho, única bebida alcoólica tolerada], saibam
que receberão recompensa especial” (Ibid., p. 205 - cap. 40, v. 4) e, no
capítulo reservado às piedades quaresmais, prescreve-se “abstinência de comida
e bebida” (Ibid., p. 241 - cap. 49, v. 5). Em outras palavras, Castália vai ao
encontro de exercícios beneditinos extraficcionais.
Saliente-se que, com tais colocações, não se busca
fazer qualquer tipo de batismo de Castália ao catolicismo nem de sugerir uma
conversão de Hesse também ao catolicismo pelos inegáveis conhecimentos
monásticos do romancista. Aliás, Hesse tinha uma
relação complexa com vinculações religiosas. Filho de protestantes ortodoxos e ex-aluno do Seminário Evangélico de
Maulbronn, escola para formação de pastores, a herança cristã-pietista lhe
causou profundas crises psíquicas ao longo da vida (KUSCHEL, 1999, 129-164).
Nas palavras dele, “na juventude, fui obrigado a aceitar por força a verdade
cristã de forma inadequada” (HESSE apud GELLNER, 2011, p. 2, tradução nossa).
Diante disso, poder-se-ia questionar, muito a
propósito, se essas equivalências inter
ordines não se deram como que por mera coincidência ou, até mesmo, por
influências sofridas por Hesse, ainda que sob meios não premeditados – uma
admiração pelo monaquismo, por exemplo, ou o fato do seminário de Maulbronn
estar sediado nos prédios do que fora um mosteiro medievo –, havendo então a
existência de um autor-implícito. Todavia, no próprio
romance há resposta justamente para tal inquirição.
Passadas as primeiras dezenas de páginas, o leitor se
depara com uma classificação explicita que adjetiva Castália como “uma
comunidade monacal” (JCV, p. 42). Soma-se
a isso, em especial, um dos vários colóquios entre Ir. Jacobus e José Servo,
quando há uma ratificação dessa noção. No livro, como não poderia deixar de
ser, o beneditino critica duramente o que via como aspecto arremedador por
parte de Castália: “[...] uma imitação das congregações cristãs, e no fundo uma
imitação sacrílega, já que a Ordem castálica não tinha por fundamento nenhuma
religião, nenhum Deus ou igreja” (JCV,
p. 123-124). Expressando-se também sobre o que se constitui como um sacrário, o
tabernáculo castálico, isto é, o jogo de avelórios, na mesma linha de
combatibilidade, declara o monge a Servo:
O vosso mais
excelso mistério e símbolo é também uma brincadeira, um jogo, o Jogo de
Avelórios. Reconheço
que vós tentais elevar esse bonito Jogo a uma espécie de sacramento, ou pelo
menos a um meio de edificação da alma. Mas os sacramentos não surgem dessas tentativas, e
jogo é sempre jogo. (JCV, p. 144)
O religioso ainda tece muitas outras colocações
expressando seu desagrado por certas peculiaridades de Castália que tem por
inautênticas. Nesses momentos, o papel de Servo é sempre de ouvinte atento,
buscando rebater alguns argumentos do interlocutor e concordando, ainda que
silente e meditativo, com outros. Em poucas palavras, tais passagens parecem
atestar que Hesse arquitetou tudo isso com perspicácia.
Possibilidade crítica
A tal ponto, cabe trazer presente outro aspecto digno de
nota. Não obstante O
jogo das contas de vidro dar mostras de reconhecer a tradicional imagem da
Ordem de São Bento (macrocosmo) como milenar domus sapientia pelas já citadas figuras, Servo pode estar
apontando para a existência de uma quebra desse status ao comentar ou precisar
que Santa Maria (microcosmo) “Outrora
fora a sede principal da erudição e da arte de discutir escolásticas [...]” (JCV, p. 116, destaque nosso).
Reforça a ideia da descontinuidade o seguinte trecho,
agora especificamente sobre Jacobus: “[...] parecia ser o único erudito que
trabalhava com real seriedade” (JCV,
p. 121), complementado, páginas adiante: “[...] no sentido castálico, esse
Convento [Abadia], com exceção do Padre [Ir.] Jacobus, não era nenhum jardim ou
exemplo de intelectualidade [...]” (JCV,
p. 131).
Some-se ainda a isso, a observação de que os
frequentadores da preciosa biblioteca eram “raros” (JCV, p.123) e que a “ingênua superficialidade” (JCV, p. 120) que o abade possuía em
alguns assuntos chineses – apesar de justificável a um prelado, cuja
preocupação aponta para necessidades outras enquanto dignatário eclesiástico –,
tinham-na, em mesmo grau, os então habitantes do mosteiro em relação aos
conhecimentos científicos e aparentavam satisfazer-se com isso [!] (JCV, p. 120).
Mencione-se também que, dentro desses registros, o
leitor se depara com uma cena na qual o jovem Antão fica admirando Jacobus
imerso no labor intelectual, enquanto o silente Servo repara o ocorrido e,
conforme o narrador,
[...] veio-lhe
[a Servo] um pensamento levemente irônico, que quase o envergonhou: quão
diminuto devia ser o número de verdadeiros eruditos nessa instituição, se o único
que trabalha com seriedade era olhado pelos jovens como um animal raro e
fabuloso. (JCV, p. 122).
Enfim, tendo-se ponderado sobre o assunto, fica o
questionamento: a crítica em voga, no pensar de Hesse, seria aplicável, por
extensão, a toda a Ordem de São Bento por sua hipotética letargia nos últimos
tempos?
Ainda a face orientalista
Ultrapassando o catolicismo, é fato que em O jogo das contas de vidro, pela boca de
suas personagens, Hesse cita também o protestantismo com certo respeito,
discorrendo sobre o que Jacobus entende como “figuras de valor excepcional” (JCV, p. 124) que estiveram ligadas a
este modo de ser cristão; homens como Leibniz, Zinzendorf e sobretudo Bengel. Além
disto, o romancista reafirma seus conhecimentos sobre confissões não cristãs,
mais devidamente, de origem oriental.
A própria dedicatória do livro em análise, oferecido “Aos
peregrinos do oriente”, certamente faz conexão com um romance anterior de
Hesse, Siddhartha (1922). Nesse livro, o sacerdote brâmane Sidarta, que empresta
seu nome ao título da estória, deixa a casa paterna objetivando partir em busca
da sabedoria. Para tanto, segundo Kuschel (1999, p. 149) “[...] Hesse
utiliza seus muitos anos de estudo sobre filosofia e religião da Índia [...]”,
estando incluída a leitura de clássicos espirituais como Bhagavad-Gita, Tao-Te-King
e Diálogos de Confúcio (KUSCHEL,
1999, p. 142), além de sua detida visita in loco à Índia, “onde vivera
asceticamente” (SANTOS, 1946). Quanto a viagens à Índia, convém dizer que os
pais de Hesse lá estiveram com a intenção missionária de propagação da fé
cristã. O autor, no extremo-oposto a isso, ao invés
de tentar converter alguém a algo, bebe nas águas da religiosidade hindu.
O que parece destacável é que Hesse consegue incutir,
dentro dos próprios beneditinos, um pouco mais do que admiração e respeito pelo
conjunto das crenças do Oriente. Contudo, talvez o mais intrigante, sem
fazê-los entrar em choque com a sua catolicidade de monges. O abade Gervasius, por exemplo, dá mostras de ser
signo de ecumenismo mesmo em tempos anteriores ao Concílio Vaticano II
(1962-1965), nos quais, salvo particularidades, a Igreja não se mostrava aberta
a questões desse tipo. É excerto do romance:
Sucedeu então
que um belo dia, no decorrer de uma conversa com o Abade, sem querer
escapou-lhe [de Servo] dos lábios uma alusão ao I Ching chinês; o Abade ouvi-o,
fez algumas perguntas, e ao perceber inesperadamente que seu hóspede tinha
grande prática no chinês e no Livro das Metamorfoses, não pôde esconder sua
alegria. [...]
sua conseqüência foi um pedido a Servo para ministrar a esse venerando senhor,
duas vezes por semana, uma aula de I Ching. (JCV, p. 119- 120)
E Servo, de fato, ensina a Gervasius. No entanto,
concentra o estudo não no idioma, porém em outros aspectos orientais: “Não
ensinava a língua chinesa ao Abade Gervasius, mas a manipulação das varetas de
aqüilégias, e um método aperfeiçoado de meditar sobre as sentenças do Livro dos
Oráculos” (JCV, p. 130). Na segunda
temporada no Rochedo Santa Maria, o protagonista do romance reúne-se várias
vezes com o abade para colóquios sinológicos, ou seja, tratar sobre história,
língua e escrita das instituições e dos costumes chineses (JCV, p. 151).
Ir. Jacobus, por sua vez, homem de ciência, também
exterioriza sua admiração por valores orientais, como quando se refere a pontos
que o atraíram para seu trabalho como historiador: “O que me atraiu na história
não foi a gritaria aguda de Ágora, mas tentativas como a dos pitagóricos ou da
academia platônica, ou entre os chineses a longa existência do sistema
confucionista [...]” (JCV, p. 129).
Conclusão
Buscou-se aqui compartilhar algumas elucubrações sobre
O jogo das contas de vidro, livro a
respeito do qual se tem comentado pouco em língua portuguesa, ainda que, fruto
de 11 anos (1932-1943) de trabalho de Hermann Hesse (2011, s.p.), integre a
literatura clássica (KUSCHEL, 1999, p. 129) e deixe transparecer maior
equilíbrio e serenidade por parte do romancista (Ibid., p. 161). Mas é preciso
complementar dizendo que a unidade analítica deste artigo abarca apenas um dos
inúmeros aspectos passíveis de leitura acadêmica sobre o referido romance:
semelhanças entre o religioso e o não sacro.
Concentrando-se em dois capítulos da obra nos quais a
temática aqui discutida consta mais expressivamente, tomou-se outros trechos
que complementam aquelas partes ou ajudam a entendê-las. Tais associações levaram a uma espécie de quadro
comparativo da aproximação entre a Ordem beneditina e a castálica. Elencando
os itens de tal quadro de modo pontual, são eles: estrutura hierárquica,
obediência, castidade celibatária, comedimento material, privação temporária ou
contínua de certos alimentos e bebidas e, o que se sobressai, vivência espiritual.
Todavia, o leitor criterioso pôde perceber que, apesar
de os mesmos pontos elencados terem sido desenvolvidos sobre ambas as Ordens,
foram eles trabalhados aleatoriamente por peculiaridades do discurso textual
que, conforme o que se ia glosando, como que chamava melhor a si este ou aquele
ponto. Além disso, faz-se mister expor que a
abordagem da Ordem beneditina alongou-se um pouco mais que a da castálica pelo
fato de naquela, além das características ficcionais, ter-se comentado alguns
aspectos dos beneditinos enquanto coletividade do plano real.
Como certamente se depreende deste escrito, a
possibilidade de confluências entre áreas a priori
heterogêneas como a teologia e a literatura vem mostrando suas possibilidades e
razão de ser, pois, muitas vezes discreto ou coberto como que por um véu, o
teológico mostra habitar a literatura.
NOTAS
1. “Música do cosmos,
música dos mestres,/Estamos prontos a ouvir com respeito,/A conjurar para uma
casta festa/Venerandos espíritos de abençoados tempos” (original alemão de
HESSE, Hermann. Das Glasperlenspiel. Zurich: Suhrkamp, 1962 e versão
portuguesa de HESSE, 1971, p. 364.).
2. “Escuta, filho, os
preceitos do Mestre, e inclina o ouvido do teu coração; recebe de boa vontade e
executa eficazmente o conselho de um bom pai [...]” (original latino e
versão portuguesa de BENTO DE NÚRCIA, 1999, p. 2 – Prologus, v. 1.).
3. Escritor e
aquarelista - 1877 (Calw, Alemanha) a 1962 (Montagnola, Suíça).
4. Doravante o título do livro em
análise será representado pela sigla JCV
e, havendo citação dele, a referência acrescentará à convencionada redução
apenas a paginação, tomando invariavelmente por base: HESSE, Hermann. O jogo
das contas de vidro: ensaio de biografia do Magister Ludi José Servo, acrescida
de suas obras póstumas. Trad. Lavinia A. Viotti e Flávio V. de Souza.
12. ed. Rio de Janeiro: Ed. Record, 1971.
5. Apesar de não conterem relações
diretas entre si, as obras citadas apenas sinalizam que a guerra não estancou a
produção literária além de dar exemplo de livros escritos durante o combate.
6. Estabelece José Geraldo Nogueira
Moutinho em seu Prefácio à edição em língua portuguesa do romance, sem maiores
explicações: “[...] a Castália aqui descrita é espaço para episódios sucedidos
no ano de 2.200 [...]” (JCV, p. IX).
7. Além desse sentido etimológico,
um outro, explicitado no próprio livro (JCV,
p. 20), parece bem completar a significação do topônimo Castália,
caracterizando-a como sede de uma casta.
8. Local onde se estabelece e se
abriga uma comunidade religiosa monástica, de identidade católico-romana, cujos
habitantes são designados por monges.
9. Aliás, em cujo rol pontifício
constam cerca de duas centenas de papas oriundos do monaquismo, sobretudo da
Ordem de São Bento (Cf. FISCHER-WOLLPERT, Rudolf. Léxico dos papas: de
Pedro a João Paulo II. Trad. Antônio E. Allgayer. Petrópolis: Vozes, 1991).
10. O Estado é aludido
algumas vezes, como esta, e dele enumera-se algumas poucas características,
como “montanhoso” (JCV, p. 40), porém
seu nome não chega a ser mencionado.
11. Nomenclatura
empregada na Seção I, cân. 573-607 do CODEX IURIS CANONICI/ CÓDIGO DE DIREITO
CANÔNICO. Trad.
CNBB. 12. ed. revista e ampliada. Ed. Loyola, 2003. Ed. bilíngue.
12. Cerca de 480
(Núrcia-Itália central) a 547 (Monte Cassino-Lácio).
13. A tradução que se
obteve acesso, uma das únicas encontradas em língua portuguesa, utilizada ainda
em edições brasileiras recentíssimas, parece falha em alguns pontos. Em se
tratando de vocabulário religioso, por exemplo, além do referido, emprega o
designativo “padre” onde beneditinamente se usaria o título dom (cerimonial) ou
irmão (comum); chama de “quarto” o que se designa monacalmente de cela.
Conhecendo-se o léxico beneditino em língua portuguesa, optou-se, neste
trabalho, pelo uso vocabular mais adequado.
14. Hesse mostra-se
atento na escolha do nome de cada monge que, como na tradição beneditina real,
foram tomados dentre célebres varões da própria Ordem religiosa, que soma alto
número de canonizados.
15. A próxima seção
explicará o porquê deste termo.
REFERÊNCIAS
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FONTE:
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Acesso em: 02 abr. 2018.