Por Juliana
Gonçalves
Enquanto a Operação Carne
Fraca assusta os brasileiros sobre a péssima qualidade da carne que chega a sua
mesa, alguém questiona a forma como os animais são abatidos neste processo? Em
geral, se a criação e o abate seguem ou não a Lei de Proteção Animal e se o
gado sofre ou não maus-tratos não são preocupações que costumam passar pela
cabeça dos consumidores.
No entanto, quando o tema é
o abate de animais em rituais religiosos, as reclamações chegam até o Supremo
Tribunal Federal. É na Corte que, sob a proteção de um crucifixo no plenário,
os ministros vão decidir se o uso de animais em ritos de matriz africana viola
a Constituição, que em seu artigo 225 coíbe a crueldade contra animais. Como a
Carta também garante o livre exercício de cultos religiosos, a discussão
reacende o debate sobre cerceamento de uma religião por parte do Estado.
“O que eu diria é que a
opinião pública jamais associa o abate comercial a maus-tratos e a intolerância
faz com que se associe o abate religioso ao sacrifício. Para acabar com o abate
religioso, teria que acabar com qualquer tipo de abate”, comenta Hédio Silva
Jr., jurista que participou de uma
comitiva composta por representantes das religiões de matriz africana que levou
ao ministro Marco Aurélio Mello – relator da ação – um parecer técnico para
auxiliar no julgamento do caso.
“A gente não faz sacrifício,
quem sacrifica é a Friboi.”
O método utilizado no abate
religioso é o da degola, catalogada pelo Ministério da Agricultura como método
humanitário. De acordo com a Lei de Proteção Animal, não dar morte rápida,
livre de sofrimento prolongado do animal cuja a morte é necessária para consumo
ou não é o que caracteriza o mau-trato.
“No abate religioso, o
animal não sofre maus-tratos. Nós sacralizamos o animal, e depois ele é
consumido como alimento. A gente não faz sacrifício, quem sacrifica é a
Friboi”, afirma o babalorixá Ivanir de Santos, que é interlocutor da Comissão
de Combate à Intolerância Religiosa. O abate faz parte de um preceito litúrgico
do candomblé e de alguns segmentos da umbanda, que consomem parte da carne como
alimento .
Ainda sem data para
julgamento, a ação no STF diz respeito a uma ação direta de
inconstitucionalidade apresentada pelo Ministério Público do Rio Grande do Sul.
O texto pede a anulação de uma lei estadual que exime as religiões de matriz
africana de processos por maus-tratos a animais e da proibição do sacrifício
animal religioso.
A decisão, se entender que a
lei gaúcha é inconstitucional, vai ferir o artigo V da Constituição Federal,
que garante a liberdade de crença e das cultos religiosos. Ela seria um retrocesso, um retorno ao tempo em que as
religiões chamadas espíritas no Brasil – incluindo o Kardecismo – tinham seus
cultos interrompidos pela polícia. Ou ainda, indo um pouco mais atrás, quando
os escravos eram proibidos de cultuar seus orixás.
Em 1993, uma discussão
semelhante chegou à Suprema Corte norte-americana. O abate religioso na
Santeria (religião levada ao país por cubanos) tinha sido proibido na Flórida.
Por lá, prevaleceu a Constituição e a tolerância religiosa.
Com a benção do agronegócio
Assim como as religiões de
matriz africana, muçulmanos e judeus, na alimentação kosher (judaica) e halal
(islâmica), seguem rituais de abate. A diferença é que, por aqui, quando se
trata das outras duas religiões, a questão é vista com bons olhos e passa longe
do STF.
Setores do agronegócio
brasileiro até mesmo se especializaram no abate religioso para garantir o
mercado de exportação para os países que seguem essas religiões. A Friboi é a
maior exportadora de carne halal do país – os animais são abatidos por degola,
com dizeres do alcorão e voltados para Meca. A BR Foods já tem 25% da sua
produção voltada para o mercado islâmico – mesmo com denúncias de que a degola
não é feita dentro dos preceitos da religião. Ambas são alvos da operação Carne
Fraca.
Do mesmo lado, na bancada
ruralista do Congresso, com a justificativa de proteger os rebanhos do
agronegócio, o deputado federal Valdir Colatto (PMDB-SC) apresentou o projeto
de lei 6268/16, que libera a caça de animais silvestres. O texto permite o
abate de animais exóticos que possam ameaçar plantações ou o gado, além de prever a criação de reservas privadas para a prática
de caça desportiva.
Também por pressão da
bancada ruralista, mesmo após decisão desfavorável do STF, a PEC da Vaquejada
foi aprovada e a prática passou a ser considerada patrimônio imaterial do
Brasil. A emenda ainda pode ganhar um adendo que visa liberar a rinha de galo.
“Não há paralelo possível
entre a vaquejada, onde o animal fica confinado e tem seu saco escrotal
amarrado, com o abate religioso, onde não existe sofrimento. E na rinha de galo
muito vezes o galo perdedor vem a falecer. Nestes casos não há dúvidas de
maus-tratos”, afirma Hédio Silva Jr.
Ao que parece o conceito de
maus-tratos é relativo. O Brasil estaria mesmo preocupado com os animais nos
ritos de matriz africana?
REFERÊNCIA:
GONÇALVES,
Juliana. BRASIL SE ASSUSTA COM A CARNE
QUE CHEGA A SUA MESA, MAS FECHA OS OLHOS PARA DISCUSSÃO SOBRE ABATE. 17 mar. 2017. Disponível em:<https://theintercept.com/2017/03/17/brasil-se-assusta-com-carne-que-chega-a-sua-mesa-mas-fecha-os-olhos-para-discussao-sobre-abate/>.
Acesso em: 02 abr. 2017.
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