domingo, 2 de abril de 2017

MÁ SORTE TER SIDO... (DIA DA) MULHER




Por Paulo Mendes Pinto

É longo e continua a ser dramático o percurso do lugar da mulher na sociedade dos países ditos “ocidentais”. Passado que é mais um dia 8 de Março, fazemos o balanço e fomos bombardeados com os números que colocam verdadeiramente a nu aquilo que somos: uma sociedade machista, que diz ser igualitária mas que mata, rouba e trata de forma desigual as mulheres.

Mas o problema é muito mais profundo e complexo. E sigamos apenas duas das possíveis linhas de pensamento. Por um lado, a mulher é tratada de forma inferior, a não ser que, muitas vezes, use dos seus atributos de beleza ou sexuais para conseguir o sucesso, sofrendo, assim, uma dupla violentação por terem de se render a uma lógica de trocas sexuais numa sociedade que as olha constantemente como objecto.

Mas, por outro lado, esta catadupa de dados e factos, de valores, de números que nos mostram o quanto a sociedade é apenas igualitária nas intenções, é a demonstração de que, pior que fazer-se a discriminação, fazêmo-la tendo dela pleno conhecimento e valorizando-a como negativa. Isto é, nada fazemos apesar de se conhecerem ao pormenor as mecânicas da discriminação, como se ter um Dia da Mulher fosse um bem superior, uma catarse e uma demonstração de valores que fizesse alguma diferença. Não, não faz nada enquanto não se mudarem as mentalidades.

E é para o campo do que muda muito lentamente na História que nos devemos voltar para tentar compreender em que camisa de forças parece estarmos retidos, pouco fazendo para alterar o estado de coisas. De facto, é devido a um misto de aspectos antigos e muito consolidados de mentalidade, especialmente de origem religiosa, e falhanços muito graves da nossa sociedade em termos políticos e de protecção social, que vemos diariamente mulheres a serem mortas, assim como outras a serem empurradas para uma prostituição não desejada para conseguirem sobreviver.

Mas mais que aspectos simplesmente religiosos, que são aqui fortíssimos, estamos perante aspectos de mentalidade profundamente consolidados em milénios de discriminação de uma sociedade que desde, pelo menos, as idades dos metais – Calcolítico e Idade do Bronze –, se tornou fundamentalmente guerreira, valorizando as qualidades do homem nessas funções.

A linguística mostra-nos um sem número de casos significativos, como uma das formas mais comuns para, em inglês, designar a mulher: «female» e «women». Sendo consensual a diferente origem etimológica entre «male» e «female», assim como entre «women» e «men», não deixa de ser brutalmente significativo que a evolução das diferentes raízes ao longa da Idade Média tenha evoluído para esta aparente oposição em que a palavra referente ao feminino parece ser construída pela aposição de um prefixo à palavra que representa o masculino, criando como que uma dependência de um sexo em relação ao outro.

Mas muito mais se poderia apontar, como a ainda mais inconsciente realidade de em quase todas as situações de substantivos neutros ser a forma masculina que os representa, ou, mais interessante, ainda, o plural, desde que integre um único masculino, torna-se quase sempre masculino: numa turma de 20 meninas e um único menino, todos são «alunos» ou «meninos».

Se o nosso olhar for para o universo religioso, os dados são menos subtis mas mais dramáticos. Quantas religiões e tradições proíbem a entrada nos espaços sagrados a mulheres menstruadas? Quantas mais vedam os sacerdócios ao género feminino?

Obviamente, na construção da nossa mentalidade, aqui neste rectângulo europeu, a realidade cristã é muito importante. E essa está repleta de verdadeiros mitos que lançaram a mulher para uma situação que nos deixou profundas marcas na estrutura de pensamento, mesmo depois de décadas de lutas e depois de já termos corpos legais praticamente igualitários.

De facto, desde que se lançou para o quadro genesíaco a ideia de queda, de pecado original, vendo-se em  Eva o papel mais activo, que tudo se encaminharia muito mal para as fêmeas desta espécie. Obviamente, a caracterização daquela que viria como que desfazer o que Eva fizera perder, sendo a mãe do Messias, em nada ajudou: virgem, sem pecado, ela é mulher mas é tudo menos comum, é um modelo inatingível. Numa instituição feita e comandada por homens que cada vez mais recusam a prática sexual, com Maria coloca-se num patamar de impossibilidade a perfeição que se quer para a mulher.

E se a questão da virgindade de Maria é, no texto bíblico hebraico que profeticamenta a fundamenta, nada consensual, a caracterização de Maria Madalena como prostituta ou resultou de crasso e grosseiro erro de um Papa, ou foi, então, propositada montagem para reter no medo uma população de Roma num momento de convulsões, de fomes e de doença. De facto, no Novo Testamento, Maria Madalena nunca surge como prostituta, tendo sido Gregório Magno (apara na passagem do séc. VI para o VII) que, num sermão proferido num quadro de fomes e doença generalizada em Roma, o afirmou.... O facto desta mentira ter sido tida por verdade por quase milénio e meio mostra como estava, e está, formatada a nossa cabeça.

A verdade é que pouco melhorou na concepção da mulher, antes pelo contrário. Mais que rejeitado o papel da mulher nas funções eclesiásticas cristãs, o que em nada corresponde à verdade dos textos mais antigos, foi toda a noção de corpo e de vivência da sexualidade que foi agrilhoada numa sociedade que foi complexificando os mecanismos de autorrepressão, as formas de censura e o desejo de fuga e uma ideia de pecado omnipresente. Só muito recentemente a Igreja Católica abriu espaço para que a prática sexual, sem conduzir directamente à procriação, pudesse ser algo de direito.

Citando a peça de John Ford que uso como base no título neste texto, parece que, mesmo numa sociedade que tende a ver e a tratar a mulher como igual ao homem, a via da afirmação sexual continua a ter uma força tremenda e a ser uma marca de uma certa infantilidade de que não saímos.

Será preciso que nos dispamos completamente das identidades herdadas, das tradições dos nossos antepassados para conseguir, finalmente, conviver com as mulheres como simples e vulgares seres humanos?

De facto, eu diria que é preciso ir a esse absurdo de ruptura, não apenas em relação aos preconceitos contra a mulher, mas como em muita outra coisa. É que são as próprias palavras que traem as tentativas de avançar e de mudar.

No limite irónico, dizemos com satisfação que uma mulher é virtuosa, elogiando-a. Ora, sintomaticamente, a palavra "virtude" vem do latim virtus, palavra criada com base em "vir", "varão", a raíz da nossa palavra "viril", também. O que nos vai na cabeça? Simples: para uma mulher ser virtuosa, é preciso ser... homem.

Com este léxico não vamos lá...


REFERÊNCIA:

PINTO, Paulo Mendes. MÁ SORTE TER SIDO... (DIA DA) MULHER. 09. mar. 2016. Disponível em <http://lifestyle.publico.pt/religiaonacidade/359025_ma-sorte-ter-sido-dia-da-mulher>. Acesso em: 02 abr. 2017.

BRASIL SE ASSUSTA COM A CARNE QUE CHEGA À SUA MESA, MAS FECHA OS OLHOS PARA DISCUSSÃO SOBRE ABATE



Por Juliana Gonçalves

Enquanto a Operação Carne Fraca assusta os brasileiros sobre a péssima qualidade da carne que chega a sua mesa, alguém questiona a forma como os animais são abatidos neste processo? Em geral, se a criação e o abate seguem ou não a Lei de Proteção Animal e se o gado sofre ou não maus-tratos não são preocupações que costumam passar pela cabeça dos consumidores.

No entanto, quando o tema é o abate de animais em rituais religiosos, as reclamações chegam até o Supremo Tribunal Federal. É na Corte que, sob a proteção de um crucifixo no plenário, os ministros vão decidir se o uso de animais em ritos de matriz africana viola a Constituição, que em seu artigo 225 coíbe a crueldade contra animais. Como a Carta também garante o livre exercício de cultos religiosos, a discussão reacende o debate sobre cerceamento de uma religião por parte do Estado.

“O que eu diria é que a opinião pública jamais associa o abate comercial a maus-tratos e a intolerância faz com que se associe o abate religioso ao sacrifício. Para acabar com o abate religioso, teria que acabar com qualquer tipo de abate”, comenta Hédio Silva Jr., jurista que participou  de uma comitiva composta por representantes das religiões de matriz africana que levou ao ministro Marco Aurélio Mello – relator da ação – um parecer técnico para auxiliar no julgamento do caso.


“A gente não faz sacrifício, quem sacrifica é a Friboi.”

O método utilizado no abate religioso é o da degola, catalogada pelo Ministério da Agricultura como método humanitário. De acordo com a Lei de Proteção Animal, não dar morte rápida, livre de sofrimento prolongado do animal cuja a morte é necessária para consumo ou não é o que caracteriza o mau-trato.

“No abate religioso, o animal não sofre maus-tratos. Nós sacralizamos o animal, e depois ele é consumido como alimento. A gente não faz sacrifício, quem sacrifica é a Friboi”, afirma o babalorixá Ivanir de Santos, que é interlocutor da Comissão de Combate à Intolerância Religiosa. O abate faz parte de um preceito litúrgico do candomblé e de alguns segmentos da umbanda, que consomem parte da carne como alimento .

Ainda sem data para julgamento, a ação no STF diz respeito a uma ação direta de inconstitucionalidade apresentada pelo Ministério Público do Rio Grande do Sul. O texto pede a anulação de uma lei estadual que exime as religiões de matriz africana de processos por maus-tratos a animais e da proibição do sacrifício animal religioso.

A decisão, se entender que a lei gaúcha é inconstitucional, vai ferir o artigo V da Constituição Federal, que garante a liberdade de crença e das cultos religiosos. Ela seria um  retrocesso, um retorno ao tempo em que as religiões chamadas espíritas no Brasil – incluindo o Kardecismo – tinham seus cultos interrompidos pela polícia. Ou ainda, indo um pouco mais atrás, quando os escravos eram proibidos de cultuar seus orixás.

Em 1993, uma discussão semelhante chegou à Suprema Corte norte-americana. O abate religioso na Santeria (religião levada ao país por cubanos) tinha sido proibido na Flórida. Por lá, prevaleceu a Constituição e a tolerância religiosa.

Com a benção do agronegócio

Assim como as religiões de matriz africana, muçulmanos e judeus, na alimentação kosher (judaica) e halal (islâmica), seguem rituais de abate. A diferença é que, por aqui, quando se trata das outras duas religiões, a questão é vista com bons olhos e passa longe do STF.

Setores do agronegócio brasileiro até mesmo se especializaram no abate religioso para garantir o mercado de exportação para os países que seguem essas religiões. A Friboi é a maior exportadora de carne halal do país – os animais são abatidos por degola, com dizeres do alcorão e voltados para Meca. A BR Foods já tem 25% da sua produção voltada para o mercado islâmico – mesmo com denúncias de que a degola não é feita dentro dos preceitos da religião. Ambas são alvos da operação Carne Fraca.

Do mesmo lado, na bancada ruralista do Congresso, com a justificativa de proteger os rebanhos do agronegócio, o deputado federal Valdir Colatto (PMDB-SC) apresentou o projeto de lei 6268/16, que libera a caça de animais silvestres. O texto permite o abate de animais exóticos que possam ameaçar plantações ou o gado,  além de prever a  criação de reservas privadas para a prática de caça desportiva.

Também por pressão da bancada ruralista, mesmo após decisão desfavorável do STF, a PEC da Vaquejada foi aprovada e a prática passou a ser considerada patrimônio imaterial do Brasil. A emenda ainda pode ganhar um adendo que visa liberar a rinha de galo.

“Não há paralelo possível entre a vaquejada, onde o animal fica confinado e tem seu saco escrotal amarrado, com o abate religioso, onde não existe sofrimento. E na rinha de galo muito vezes o galo perdedor vem a falecer. Nestes casos não há dúvidas de maus-tratos”, afirma Hédio Silva Jr.

Ao que parece o conceito de maus-tratos é relativo. O Brasil estaria mesmo preocupado com os animais nos ritos de matriz africana?


REFERÊNCIA:

GONÇALVES, Juliana. BRASIL SE ASSUSTA COM A CARNE QUE CHEGA A SUA MESA, MAS FECHA OS OLHOS PARA DISCUSSÃO SOBRE ABATE. 17 mar. 2017. Disponível em:<https://theintercept.com/2017/03/17/brasil-se-assusta-com-carne-que-chega-a-sua-mesa-mas-fecha-os-olhos-para-discussao-sobre-abate/>. Acesso em: 02 abr. 2017.