O Holocausto, uma memória do guetto de
Varsóvia, ou o crime que nos devia ajudar a ser Humanos
Por
Paulo Mendes Pinto*
Se há dia comemorativo ou de
memória que é imagem do que de pior podemos fazer, esse dia é o «Dia
Internacional da Lembrança do Holocausto» (dia 27 de janeiro, pela resolução
60/7, de 1 de dezembro de 2005, da Assembleia Geral das Nações Unidas).
Hoje, num quadro em os
Direitos Humanos em tantos aspectos e geografias parecem perder importância,
torna-se imperioso olhar para estas más memórias, dando-lhes um sentido
didático, procurando fazer com que o olhar para esses momentos de terror sejam,
ao menos, instrumento possível para o presente.
De facto, nada melhor que
olhar para o Holocausto, a Shoa, e ver como somos bons a matar, como somos
eficazes na carnificina, como somos capazes das maiores crueldades em nome de
ideias e de modelos. Como somos, enfim, iguais a nós mesmos, em quase nada
diferentes dos nossos antepassados que fizeram esses gestos hediondos a que
chamamos Holocausto.
E o passado não está assim
tão distante. É muito próximo e corre-nos nas veias como que querendo tomar
conta do nosso corpo em qualquer momento, despoletado por um qualquer discurso
xenófobo ou intolerante.
Há bem pouco tempo, o papa
Francisco falava do “silêncio cúmplice” de todos nós que sabemos o que está a
contecer, quer com as comunidades cristãs do Médio Oriente, quer mesmo com as
comunidades islâmicas que nessa região sofrem de forma única às mãos dos
criminosos do Daesh, quer, ainda, com o que deixamos acontecer nesta epopeia
vergonhosa dos refugiados.
O que mais me aflige em todo
este quadro, seja o actual, seja o do Holocausto Nazi, é esse dito “silêncio
cúmplice”. Deixamos acontecer, não saindo do nosso lugar de conforto, negando a
mais elementar fraternidade para com os da nossa espécie. Se há o “Silêncio dos
Inocentes”, temos em nós o “Silêncio dos Cúmplices”.
Sem dúvida, o silêncio é a
mais aviltante arma da apatia. Há uns anos, estive em Varsóvia. Gostei
bastante. Foi uma viagem importante a vários níveis. Mas talvez um dos mais
importantes tenha residido na construção da minha própria pessoa.
Numa tarde, previamente
combinada, com a Presidente de uma fundação judaica, fui ao guetto da cidade.
Sim, o guetto onde os nazis reuniam os judeus da região para os deportar para
campos de concentração.
Nessa vasta zona da cidade,
terão morrido milhares e milhares de pessoas. Os números, como diz Saramago,
são das menos exactas coisas que há no mundo. Contudo, aqui os números perdem a
noção dos zeros que lhes colocamos para dar escala. São muitos os zeros, e
foram muitas as pessoas.
Fizemos o roteiro habitual.
Fomos aos locais de memória. Aos monumentos, aos sítios que se encontram
marcados na paisagem para que sempre se saiba o que ali aconteceu.
Mas foi nos espaços sem
memória do guetto que me senti verdadeiramente mal. Numa rua qualquer, entre
prédios sempre iguais, construídos algures entre os anos 50 e os 70, uma vala
normalíssima mostrava que tinha lugar uma mudança de canos de água. Nada de
anormal, se não fossem os tijolos que daquela vala se viam. Iguais aos das
poucas construções que restam desses sangrentos anos 40, eles eram a memória
esquecida do quotidiano de pessoas como nós que, apenas nisso, foram
diferentes: foram tratadas de forma sub-humana e morreram como não desejamos
ver morrer animal algum.
Nesse momento, deixei de ser
turista. Passei a ser um sofredor num caminho inexplicável: que fazem moradias
naquele longo cemitério? Sim, aquele que fora o guetto de Varsóvia é agora um
bairro residencial construído nas décadas de domínio soviético.
A memória é, de longe, o
mais estranho e bizarro instrumento de inteligência que temos. Tanto consegue
os mais brilhantes gozos, como nos consegue os mais desculpabilizantes
esquecimentos. Como é fácil regressar, século após século, a discursos de
radicalização que parece nada terem bebido nos dramas e nas lágrimas já antes
vertidas?
Como se vive numa dessas
habitações? Que memórias, que fantasmas? Que dores ou que gozos?
Dei por mim a olhar para um
idoso que saía de uma dessas portas comuns. Teria idade mais que suficiente
para já ser vivo quando naquele mesmo espaço morreram milhares de pessoas. Como
consegue ele deitar-se naquela grande vala comum?
Ou, melhor, como conseguimos
nós deitar-nos nas valas comuns das nossa memórias e das apatias e dos
silêncios que comodamente nos ajudam a nada ver e muito menos a reagir?
Escreveu primorosamente
Sophia de Mello Breyner Andresen que “Vemos, ouvimos e lemos / Não podemos
ignorar”... ignoramos, sim, a todo o momento. Aliás, como a História nos
comprova abundantemente, para além de matar, ignorar é ainda o que fazemos
melhor.
FONTE:
PINTO,
Paulo Mendes. SILÊNCIO DOS CÚMPLICES. 27 jan. 2017. Disponível em: <http://visao.sapo.pt/opiniao/bolsa-de-especialistas/2017-01-27-Silencio-dos-Cumplices>.
Acesso em: 28 jan. 2017.
* Coordenador da área de
Ciência das Religiões da Universidade Lusófona. Embaixador do Parlamento
Mundial das Religiões e fundador da European Academy of Religions. É
especializado em História das Religiões Antigas (mitologia e literaturas
comparadas), mas dedica parte dos seus trabalhos a questões relacionadas com a
relação entre o Estado e as religiões. Na área da Ciência das Religiões, é o
responsável por diversos projectos de investigação, especialmente na relação
entre as Religiões e a escola, assim como no desenvolvimento de uma cultura
sobre as religiões como componente de cidadania. É ainda investigador da
Cátedra de Estudos Sefarditas «Alberto Benveniste» da Universidade de Lisboa. É
Membro do Conselho Consultivo da Associação de Professores de História. É
director da Revista Lusófona de Ciência das Religiões. Recebeu a Medalha de
Ouro de Mérito Académico da Universidade Lusófona em 2013.
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