Segue um texto que produzi em 2004. Espero que gostem.
Por
João Florindo B. Segundo
Muita gente assistiu Matrix e suas fatídicas
continuações. Só que poucas pessoas
entenderam o enredo: trocando em miúdos, podemos dizer a vocês que na verdade
toda a história do Escolhido foi um plano das máquinas para a manutenção do
sistema Matrix, usando os humanos que imaginavam adquirir liberdade, como parte
da estratégia. Pois bem, falemos agora daquilo que está oculto em Matrix, o
que, dependendo da imaginação, pode ser uma porção de coisas. Trataremos nesse
texto apenas da questão da liberdade, da transcendência e da interação entre
ciência e religião, tocando também em um espinhoso assunto – a questão da
análise crítica das religiões – nos quais a trilogia tocou bem..., bem de leve
mesmo.
Em Matrix reloaded ocorre o famoso e
parnasiano diálogo entre Neo e o Arquiteto. Este último, trajando todo de
branco, não é um ser transbordante de amor por suas criaturas e muito menos
demonstra perdoar os seus “pecados”, mas sim, grande insatisfação com as
mesmas. Vários aspectos aqui chamam a atenção, e vislumbramos a possibilidade
de traçar um paralelo entre os enunciados da personagem sobredita e a análise
dos sistemas políticos pelo filósofo grego Platão (429-347 a.C.) em sua obra A República, inserida dentro do grupo
dos diálogos construtivos ou da maturidade do autor, para o que devemos lembrar
de início que o sentido da filosofia é o de conduzir o homem do mundo das
aparências ao mundo da realidade.
Na parte do filme em
que tal diálogo se passa, observamos que o herói, e todo o público até então,
pensava que houvera uma só versão da Matrix, porém, através do Arquiteto,
descobrimos que já houve cinco versões antes daquela em que a ação do filme se
passa, todas sobrepujadas por não se ajustarem à constituição ideal, tal como
as formas de governo analisadas por Platão em A República.
À primeira e perfeita
Matrix podemos comparar as primeiras comunidades humanas, onde todos viviam: a) em um estado de liberdade plena para Rosseau; b) para Locke,
em um estado de paz instável; e c) em um estado de guerra segundo Hobbes, o
chamado estado de natureza (escolha sua opção e boa sorte!). Daí em diante, os
indivíduos doaram parte de sua liberdade através de um pacto (você acredita
nisso?), firmado com o fim de garantir os direitos fundamentais do homem que,
no estado de natureza, eram continuamente ameaçados, nascendo daí o Estado e
seu governo (o pequeno agricultor realmente se intera e participa das decisões
do Estado, não é mesmo?).
As constituições
corrompidas, das quais Platão faz sucinta análise, são a timocracia, a
oligarquia, a democracia e a tirania. Estas quatros seriam as formas de
governos de forma real, que se afastam, em grau maior ou menor, da forma ideal
(monarquia e aristocracia). Uma seria o resultado da desagregação da forma
anterior, chegando ao ápice da degeneração com a tirania.
O Arquiteto explica a
Neo que os indivíduos presos à primeira Matrix (totalmente perfeita) acabavam
não acreditando em tamanha perfeição e entrando em colapso e que as falhas do pai
do programa decorriam de sua incapacidade de compreender a falibilidade humana.
Assim, ele concebeu um programa capaz de estudar a psique humana, a Oráculo, a
qual concluiu que 99,9% dos pesquisados aceitaria a existência virtual imposta
pela Matrix, desde que acreditassem ter a escolha de abandonar aquele universo.
A Oráculo passou a ser uma espécie de Mãe Dinah, auxiliando algumas pessoas a
se libertarem do sistema, fazendo-lhes crer nesse tipo de transcendência.
Voltando a A República, podemos observar a seguinte
referência de Platão à transcendência: “Mas talvez haja um exemplo de tal
Estado no céu, para quem queira encontra-lo, ajustando-se a ele no governo de
si próprio.”; para o filósofo, o transcendente é um estado de adequação à
realidade, às responsabilidades que nós temos e de entendimento dos deuses e de
sua relação com a humanidade, o que na prática se processa de forma grandemente
diferente. Outrossim, não se confunda o transcendente (que não resulta do jogo
natural de uma certa classe de seres ou de ações, mas que supõe a intervenção
de um princípio que lhe é superior, ultrapassando a nossa capacidade de
conhecer; que é de natureza diversa da de uma dada classe de fenômenos), com o
transcendental kantiano (o que se refere ao conhecimento das condições a priori
da experiência, e o que ultrapassa os limites da experiência). Iremos ao longo
do presente texto enfocar os dois aspectos assinalados.
A saída para o
sistema Matrix era dar às pessoas esperanças de algo mais, algo além, daí
porque, analogamente, a maior parte das pessoas não admite qualquer crítica à
sua crença religiosa; elas não querem que lhe seja tirada sua maior
“certeza”(?), razão de tanto sangue e lágrimas vertidos e a verter deste e do
outro lado do rio (para refletir sobre o assunto, quem agüentar ainda, ouça Metal
contra as nuvens, de Legião Urbana). Não estamos aqui dizendo que o Criador nos
dá o livre arbítrio para crermos em um mundo transcendental como um engodo da
parte dEle: não acreditamos em um deus mau e enganador, capaz de incendiar
cidades inteiras com crianças inocentes dentro. Neste ponto, uns alegam que
após a morte nada mais há (ateus e estóicos), outros que a alma reencarnará até
alcançar a iluminação, e outros que ela retornará em um corpo eterno (imaginem
viver eternamente em um corpo físico, devendo todos os dias acordar, comer,
trabalhar, etc., etc. “Que abuso!”).
Para Sartre, que
possuía uma noção de transcendência imanentizada, em virtude da sua atitude ateia,
a liberdade não é uma propriedade da essência humana, mas constitui a natureza
humana em si, precede a essência e a torna possível: o homem é livre porque ele
não “é”. Aquilo que “é” não pode ser livre, pois, nem pode deixar de ser, nem
pode ser diferente. O homem, como ser-para-si – e não em-si –, ao perceber o
nada que se faz ser no seu coração, passa a ser livre. Ele não recebe ou aceita
uma determinada natureza, mas a constrói por uma escolha que é inclusive
gratuita. O homem seria soberano mestre de seu destino. Sobre o ateísmo e o
existencialismo, brevemente escreveremos detalhado texto, deixando-lhes,
contudo, com o seguinte ensinamento do Concílio Vaticano II: “Todo homem
permanece para si mesmo problema insolúvel, apenas confusamente pressentido.
Ninguém pode, na verdade, evitar inteiramente esta questão em certos momentos,
e, sobretudo nos acontecimentos mais importantes da vida. Só Deus pode
responder plenamente e com total certeza” (GS 21).
No que tange à alma,
há grupos religiosos ocidentais “seguidores da Bíblia”, que alegam que o ser
humano não possui uma alma imortal, “retornando o homem completamente ao pó
após a morte”, mas que, os que merecerem, serão ressuscitados no fim dos
tempos. Contudo, se não sobrou nada de você (nem substância material nem
etérea), de onde o Supremo lhe traria de volta? Baseado em quê? Se não sobrará
nada de você, que certeza temos de que esse futuro ressurreto será você?
Imaginemos então que o Supremo lhe refará (caso você seja um dos “eleitos”) com
base nas memórias suas que Ele “guardou”. Isso nos parece, até certo ponto, uma
apologia a pensamentos de segmentos religiosos que esses cristãos renegam
(leia-se orientais). Na medida em que na cultura hindu há a figura de Akasha,
os arquivos divinos em que estão registrados todos os dados do Universo (porém,
o hinduísmo acredita na reencarnação, inclusive na metempsicose). Uma ligeira e
incidental analogia extrapolada a este conceito é dada no filme Inteligência Artificial quando os
extraterrestres, baseados nas informações dispersas no espaço, ressuscitam a
mãe do menino-robô David (muita embora Akasha não funcione ao bel-prazer de
qualquer senhor).
O outrora exposto
suscita a teoria dos campos mórficos de Rupert Shaldrake, autor de Cães que sabem quando seus donos estão
chegando; tais campos seriam responsáveis, por exemplo, pelo padrão de
formação e crescimento dos seres vivos (campos morfogenéticos, originalmente
fruto de pesquisas de um grupo de biólogos na década de 1920), pela telepatia –
capacidade extra-sensorial pesquisada pela parapsicologia e que, segundo
Shaldrake, é avançada em animais como cães e gatos – e até mesmo pelos padrões
repetitivos de respostas a determinadas situações: pela teoria de Shaldrake,
por exemplo, a solução de um jogo de palavras cruzadas publicado em um jornal
vai ficando mais fácil ao longo do dia na medida em que as pessoas vão
respondendo-o, pois, de forma inconsciente, acessamos os campos mórficos que
contêm as soluções obtidas por outras pessoas.
Os campos, imateriais, funcionariam como um suporte para que a
informação flua entre e pelos organismos. Este tema vem se relacionando –
inicialmente no âmbito formal – com a hipótese dos memes (redução do grego mimeme,
imitação), apresentada pelo zoólogo Richard Dawkins, em seu livro O gene egoísta (1976), dando origem a
uma nova área do conhecimento: a memética. Em sua obra, o pesquisador alega que
o DNA tem como único objetivo replicar-se e que a seleção natural englobaria
também qualquer situação em que unidades replicadoras disputam entre si pela
oportunidade de acompanhar as gerações futuras, bem como que os memes incluem
em sua categoria qualquer representação mental que dependa dos recursos do
cérebro humano para existir e se difundir – hábitos, doutrinas, etc. – contudo,
tal entidade ainda não foi devidamente delimitada pela teoria: quantos memes
são necessários para constituir, p. ex., um movimento estudantil inteligente?
Outrossim, há quem
alegue que o meme explicaria fatos sobrenaturais – e é aí que o assunto se
relaciona com os campos mórficos, como a lenda do centésimo macaco: um primata
da ilha japonesa de Koshima que aprendeu a lavar os alimentos sujos de areia
antes de come-los e ensinou a técnica a outros 99 companheiros, ao tempo em que
a nova idéia chegou “pelo ar” aos primatas de outras ilhas japonesas, conforme
relatado pelo zoólogo Lyall Watson em livro de 1979. Apesar das controvérsias
(cientistas alegam que a telepatia nunca foi provada cientificamente), há quem
acredite que o meme é o meio através do qual se dá o fenômeno telepático,
alegando inclusive que se todos invocarem o meme necessário à idéia de paz no
mundo, ele contaminará todas as mentes do planeta, numa clara distorção da
memética. Não esqueçamos ainda das palavras da psicóloga Susan Blackmore,
autora de The Meme Machine: “Estou
convencida de que essa idéia está correta, de que é a melhor forma de explicar
a natureza humana. Mas no momento ainda não é possível prová-la.”
Ainda mais estranha é
a teoria de John Archibald Wheeler – criador do termo buraco negro –, que deu
origem à da física digital, segundo a qual cada partícula, cada campo de força
e até mesmo o espaço-tempo derivam suas funções, seu sentido e sua existência
de escolhas binárias, de bits. O que chamamos de realidade surgiria de questões
como sim/não, ou seja, a matéria em seu nível mais diminuto seria composta de
informação. Assim sendo, restaria saber que tipo de programa o Universo estaria
rodando: para alguns, tal software talvez não tenha mais de quatro instruções
básicas, repetidas muitas vezes desde o inicio dos tempos até gerar tudo o que
conhecemos: quem o afirma é o físico Stephen Wolfram, autor do software Mathematica.
Podemos observar,
nesta miscelânea cultural, uma maior interação de conceitos científicos e
religiosos nestes últimos tempos e, no âmbito de Matrix, uma amálgama de temas
extraídos do cristianismo e de outras religiões e filosofias (o pluralismo
religioso), que não sabemos precisar se os irmãos Wachowski pretendiam endossar
ou apenas retratar como mitos interessantes (pelo nível dos filmes II e III,
acho que a segunda opção é a certa), muito embora a trilogia seja permeada de
um nível de violência e profanação em claro desacordo com os valores
religiosos.
O pluralismo
religioso não pode ser compreendido como uma teoria única, mas como uma família
de teorias relacionadas, podendo ser distinguidas quatro variedades principais:
a) pluralismo extremo, em que todas as
crenças são igualmente válidas e verdadeiras: totalmente falso pelas
contradições entre as diversas doutrinas;
b) pluralismo de ensinamentos fundamentais,
em que os ensinamentos fundamentais de todas as principais religiões são
verdadeiros: o que em essência recai no mesmo erro da categoria anterior;
c) conhecimento da verdade pela amálgama de
crenças de várias religiões: incorre em dificuldades quando transplanta uma
doutrina religiosa para fora da estrutura de sua religião de origem (veja-se o
caso da concepção de alma, acima citada); e
d) pluralismo transcendental, em que todas
as principais tradições religiosas estão em contato com a mesma realidade
Divina suprema, mas essa realidade é experimentada e conceituada de diversas
formas, dentro de cada tradição.
Esta última corrente
foi recentemente defendida pelo filósofo John Hick, alegando que a Realidade
Suprema é totalmente transcendente e inefável, excedendo todos os conceitos
humanos, consistindo todas as religiões, apesar disso, em caminhos validos para
a salvação. Contudo, se não temos a menor compreensão do que é o Real em si,
por que deveríamos achar que ele tem alguma ligação com a religião, em vez de,
p. ex., com o preconceito racial e a corrupção política? Ademais, se um cristão
praticante passa a acreditar que a doutrina crista é “mitologicamente
verdadeira” – literalmente falsa –, mesmo que ainda útil como elo de ligação
com o Real, como será possível permanecer sendo cristão sem aceitar nenhum dos
conceitos principais que distinguem o cristianismo de outras religiões? Como
alcançar os frutos morais e espirituais de uma religião se não acreditamos que
ela ensina a verdade?
Destarte, os
pluralistas alegam que o aprimoramento moral de seguidores de diversas
religiões é a prova cabal de que a experiência do Real pode ser encontrada em
qualquer segmento, em detrimento do pensamento exclusivista (uma única religião
correta), bem como que as alegações de privilégios epistêmicos em relação a
pessoas de outras crenças (“Só minha religião está certa”) é clara demonstração
de arrogância intelectual, incorrendo, contudo, eles também em arrogância, até
por não concordarem com a liberdade de pensamento. Os pluralistas argumentam
ainda que nenhuma religião tem base objetiva para comprovar sua maior
proximidade da verdade que as demais, contudo, oferecendo raramente amparo para
tal contestação.
Em suma, mesmo que
analisemos racionalmente o fenômeno religioso, deparamo-nos irremediavelmente
com a fé do outro, e a indescritível incapacidade de reconhecer o UM no todo.
Kant estima que o edifício da ética fica incompleto sem a afirmação da
liberdade, da vida eterna e da existência de Deus. Há que apelar para estes
três postulados, porque sem elas não completamos a ordem prática da moral.
Trata-se, pois, de concepções não conhecidas diretamente, mas que devemos
postular para explicar o que experimentamos. Por isso, estes postulados em que
faltam razões objetivas repousam na convicção do sujeito e Kant chama a fé esta
convicção: “Tive de deslocar a razão para dar lugar à fé.”
Devemos, pois,
respeitar as crenças alheias, embora nelas não acreditemos, conforme Voltaire:
“Não concordo com nenhuma de suas palavras, mas defenderei até à morte o seu
direito de dizê-las”. Outrossim, qualquer expressão fundamentalista latente
deve ser coibida dentro dos princípios dos direitos humanos, a fim de
resguardar a liberdade religiosa de todos. Ao reconhecermos a distância que nos
separa do próximo, estaremos em condições de entabular com ele um diálogo que
mereça esse nome; e somente à medida que aceitarmos a diferença, nos
aproximaremos do mistério do outro. E no que tange a Matrix, a trilogia não
explica nada, mas é ponto de partida para interessantes análises da realidade.