SÃO
FRANCISCO E O SULTÃO – III
Por Frei
Almir Guimarães
O que
as fontes falam desse encontro?
Estamos sempre na companhia
de André Vauchez, notável historiador da Idade Média e de seu relato histórico
abordando o encontro de São Francisco com o Sultão do Egito (1219).
♦ A respeito deste famoso
encontro, registrado por muitos cronistas e hagiógrafos, e imortalizado por
Giotto no ciclo de afrescos que pintou em torno de 1300 na Basílica superior de
Assis [e na Capela Sassetti, Igreja da Santa Trindade, em Florença, Itália;
imagem abaixo], há ao menos duas tradições: para os cronistas exteriores à
Ordem franciscana, Francisco teria procurado – na realidade em vão – converter
o sultão e seu povo. Tiago de Vitry, testemunha do acontecimento, assim escreve
em sua carta de 1220 ao Papa: “Ardente de zelo pela fé cristã, (Francisco) não
teve medo em atravessar o campo do inimigo, e depois de ter pregado por uns
dias a Palavra de Deus aos sarracenos, não conseguiu grandes resultados (modicum profecit).
♦ Retomando o tema em
sua Historia occidentalis em
1226, o referido prelado afirma que a simples presença de Francisco
transformara o Sultão do Egito de animal feroz que era no início, em ouvinte
dócil, tendo permitido que Francisco lhe dirigisse a palavra por alguns dias.
Temendo, no entanto, que ele viesse a converter seus súditos, determinou o sultão
que o Poverello fosse
reconduzido ao campo dos cruzados, pedindo que rezasse a Deus pedindo que ele
lhe revelasse a lei e a fé que mais lhe agradavam. Nesse meio tempo acontece o
fracasso da Cruzada e Francisco já estava sendo considerado um santo. Em seu
relato, Tiago de Vitry engrandece e dramatiza o acontecimento acentuando que o
Sultão ficou muito impressionado com as palavras de Francisco e pouco faltou
para se converter à fé cristã.
♦ Para os autores
franciscanos, ao contrário, o Poverello teria
ido ter com o Sultão ansiando pelo martírio. Desta maneira, na Vita prima de
Tomás de Celano o fim trágico do martírio seria prefigurado pelos maus-tratos
infligidos pelos soldados do Sultão que o haviam prendido. Al-Kamil tê-lo-ia
tratado com amabilidade e teria ouvido o Santo defender o cristianismo contra
os doutores da lei muçulmana que estavam à sua volta. Depois da disputa
oratória, o Sultão quis agradar a Francisco oferecendo-lhe presentes que ele
recusou dizendo “desprezá-los como esterco”, o que teria causado admiração ao
soberano. Não querendo empalidecer a imagem de seu herói pela evocação de um
fracasso, o hagiógrafo conclui sua elaboração justificando que a recusa de Deus
de lhe dar o martírio tinha uma explicação: uma graça singular estava reservada
para ele no alto do Alverne com a impressão do estigmas de Cristo em seu corpo.
Na Legenda Maior (IX, 8),
Boaventura afirma ter obtido um relato de Frei Iluminado de Rieti, único
companheiro de Francisco que estava com ele na ocasião: depois de terem sido
maltratados pelos soldados que o haviam prendido, os dois foram levados à
presença do Sultão que os acolheu com benevolência e que questionou a respeito
do motivo daquela visita. Francisco respondera “que tinha sido enviado de além
dos mares, não por qualquer homem mas pelo Deus Altíssimo; que vinha
indicar-lhe e a seu povo, o caminho da salvação e anunciar-lhe o Evangelho da
verdade. Depois pregou ao Sultão os mistérios da Trindade e da Redenção”.
♦ Dando-se conta que o
Sultão hesitava em se converter, propôs que se submetesse ao julgamento de Deus
propondo-lhe uma “ordália” (um desafio): os sacerdotes muçulmanos e entrariam
no fogo e ver-se-ia, concluída a prova, qual seria a religião superior. Os
“clérigos” muçulmanos rejeitaram a prova por considerarem-na uma loucura.
Francisco propôs ao Sultão de enfrentar a prova sozinho. Este último recusou.
Ficou no espírito do Sultão admiração por Francisco e até mesmo um certo desejo
de se converter ao cristianismo. Não o fez temendo reação por parte de seu povo.
Ofereceu então, presentes a Francisco que ele não aceitou retornando ao
acampamento dos cristãos porque não via em Al-Kamil sinal algum de autêntica
piedade. Tal versão dos fatos foi imortalizada por Dante em alguns versos
famosos da Divina Comédia:
“Para lá se dirigiu, com sede pelo martírio, para pregar
Cristo e seus apóstolos na presença do orgulhoso Sultão.
Encontrando, contudo, um povo difícil de se converter
e não querendo ficar inativo,
foi recolher alguns frutos no solo da Itália”.
♦ Embora à primeira vista
nenhum episódio relatado nas Vidas possa parecer mais legendário no mal sentido
do termo, o encontro do Pobre de Assis com o Sultão do Egito é, sem dúvida, um
dos mais bem atestados do ponto de vista histórico, mesmo que seu significado
mais preciso nos escape. Talvez seu significado devesse ser explicado por
aquele momento dos acontecimentos: momento em que cada campo procurava
contemporizar as coisas já que de lado a lado não havia perspectiva de vitória.
É sabido que Al-Malik Al-Kamil era pessoa tolerante e aberta em matéria de
religião. Um clérigo alemão e futuro cardeal, Olivier de Paderborn (+1227),
feito prisioneiro pelos muçulmanos, no momento da derrota final dos cruzados em
agosto de 1221, fez, numa carta que dirigiu ao Sultão depois de sua libertação,
um vibrante elogio por sua magnanimidade e bondade. O Sultão do Egito mostrara
a esse visitante cristão inesperado que a hospitalidade muçulmana não era uma
questão de palavras. Não se deve estranhar que o Sultão tenha colocado o
visitante sob sua proteção.
♦ O comportamento de
Francisco, segundo a descrição de Boaventura, surpreende, antes de tudo, pela
proposta da aposta-desafio (ordália)
aos clérigos muçulmanos, procedimento estranho da parte de um homem evangélico.
Não podemos, no entanto, esquecer que Francisco era alguém que se alimentava de
referências bíblicas e que algumas delas exerceram influência sobre seu modo de
agir, como é o caso da passagem do livro dos Reis (1Rs 18,20-48). Lá vemos
Elias confrontando-se com os sacerdotes de Baal para provar ao rei Acab a
superioridade do Deus de Israel sobre Baal de quem Jezabel defendia o culto:
apesar de todo empenho dos sacerdotes não conseguiram com que o fogo queimasse
o sacrifício que estavam oferecendo, enquanto que o de Elias foi imediatamente
consumido pelas labaredas, razão pela qual os sacerdotes de Baal foram
degolados pela multidão que veio a se converter ao Deus de Israel.
♦ Se Francisco não conhecia
este texto certamente não podia ignorar o cântico dos três jovens na fornalha
ardente (Dn 3, 1-30) ou a história de Daniel na cova dos leões (Dn 6, 1-30)
tantas vezes mencionada na liturgia, relatos de mártires que tiveram como
desfecho a confusão dos perseguidores e o reconhecimento do verdadeiro Deus por
parte de Nabucodonosor.
♦ De outro lado, nos
movimentos religiosos populares que floresceram na Itália nos séculos XI e XII
dos quais Francisco fora herdeiro e continuador o recurso à prova de fogo era
conhecido. Basta lembrar um certo Pedro, qualificado de “Ígneo”, quer dizer,
homem de fogo, um eremita toscano que, em meados do século XI, atravessou nu um
braseiro para convencer os padres simoníacos de se juntarem aos partidários da
reforma da Igreja o que foram obrigados a fazer depois da prova em questão.
♦ Dispomos, por fim do testemunho
de um autor árabe do século XV, Ibn al-Zayyat, que evoca um epitáfio colocado
sobre o túmulo do grande místico Fakhr al-Din, conselheiro espiritual de
Al-Kamil, que se podia ver no cemitério do Cairo que dizia: “Este tem virtude
conhecida de todos. Sua célebre aventura com Al-Malik Al-Kâmil e o que lhe
aconteceu devido a um monge, tudo é muito conhecido”. Segundo Louis Massignon,
que por primeiro sentiu sua atenção atraída por um tal texto, o monge cristão (rahib) não seria outro senão Francisco
de Assis e parecendo correto identificar Fakhr al-Din, que morreu nonagenário,
ao sábio que, segundo o relato de São Boaventura, teria tomado distância no
momento em que Francisco propusera a prova do fogo, sem dúvida, menos por medo,
mas pelo fato de reprovar procedimento tão bárbaro em matéria de religião.
REFERÊNCIA:
GUIMARÃES,
Almir. São Francisco e o Sultão – III.
Disponível em: <https://franciscanos.org.br/carisma/franciscosultao.html>.
Acesso em: 04 out. 2019.